Por Ayala Gurgel
B.O: N° 06-6492/2020
NATUREZA: NOTÍCIA SOBRE AÇÃO CRIMINOSA
DATA DA COMUNICAÇÃO: 06 DE ABRIL DE 2020
COMUNICANTE: JOSÉ JOAQUIM EFRAIM DA SILVA BRITO
O senhor de nome José Joaquim Efraim da Silva Brito, vulgo Zé Brito, vinte e nove anos, divorciado, porteiro, residente nesta freguesia, compareceu de livre e espontânea vontade a esta delegacia para narrar, perante mim, escrivã de polícia, notícia da qual diz ter conhecimento sobre a verdadeira razão da morte do senhor José de Ribamar da Anunciação, porteiro falecido e ex-ocupante do cargo do qual o depoente diz ter se desligado na manhã de hoje. O depoente disse que assumiu a função de porteiro no Residencial Portal do Paraíso há dois dias e na noite de ontem teve seu primeiro plantão noturno. Que assumiu essa vaga após a morte do referido porteiro, que o antecedeu e foi encontrado morto no local de trabalho, ao amanhecer do dia. Que a causa da morte foi dada como natural, mas ele tem informações fidedignas a repassar que o levam a crer que a morte do colega de profissão não foi de causa natural. Disse que há nas filmagens armazenadas do condomínio em questão as provas que a delegacia precisa e pede que sejam solicitadas ao síndico com a máxima urgência. Que este tem o hábito de apagar as filmagens pela manhã cedo, dizendo que não gosta de guardar imagens da noite, a não ser que haja algum crime ou ato obsceno. Que é sobre as filmagens que pretende falar, mas que para isso precisa explicar como é o sistema de vigilância eletrônica do condomínio. Que há câmeras espalhadas por quase todos os lugares, da entrada do prédio aos corredores, passando pelos elevadores, e que só não há câmeras nos banheiros, dentro da guarita, dos apartamentos e nas escadas que ligam um piso ao outro. Que os corredores são bastante longos. Que há trinta unidades por andar, quinze de cada lado. O depoente fez questão para que registrasse que, apesar de todo esse sistema de monitoramento, a iluminação em alguns corredores é precária, pois muitas lâmpadas foram desligadas para economizar energia e em alguns pontos o sensor de presença não funciona, de modo que as câmeras nem sempre capturam uma boa imagem do que aconteceu. Dito isso e verificado que foi anotado por mim em seu depoimento, o depoente continuou e disse que na noite em que estava na guarita tinha como olhar pelo monitor as imagens produzidas pelas câmeras e numa delas viu passar um vulto, mas não se preocupou, pois na hora pensou que pudesse ser apenas uma criança correndo ou alguém andando rápido. Que viu novamente o vulto, e desta vez estava parado no final do corredor, no sexto andar, que é mal iluminado, e lhe chamou a atenção o fato de o vulto estar de camisola, dessas que só velho ainda usa, e parado. Disse que pensou ser alguma senhora de idade que ficou presa fora do apartamento, ou pior, sonâmbula. Que, com o intuito de ajudar e interfonar para o apartamento correto, selecionou a câmera que capturava a imagem e ficou de olho, tentando identificar ou entender o que se passava, mas não havia como dar mais zoom e a iluminação não era boa. Para sua surpresa, num piscar de olhos, o vulto sumiu. Que imaginou na hora que pudesse ter sido um delay da imagem. Que a câmera tivesse parado de funcionar e quando voltou ao normal a pessoa já tivesse conseguido entrar no apartamento. Por conta disso, relaxou, mas não demorou, o vulto tornou a aparecer, na mesma posição, no corredor do andar de baixo, que também é mal iluminado. Que ficou pensativo e focado naquilo, até porque não havia outra coisa com a qual se preocupar, a noite estava calma e chuvosa. Que, com a câmera fixa, percebeu que o vulto se movimentava vagarosamente, como se não mexesse os pés, em direção às escadas, mas sempre que acontecia alguma interferência estática, a imagem borrava e o vulto sumia, até que viu, numa imagem melhor, que o vulto andava pelo corredor do terceiro andar. Ao ser indagado, disse que não tinha como saber se era homem ou mulher, mas como estava de camisola e touca, concluiu que se tratava de uma senhora. Que percebeu um padrão nas imagens: que o vulto aparecia, andava lentamente em direção às escadas, acontecia um pouco de estática, sumia e reaparecia no andar de baixo. Sempre aparecia próximo às escadas, na ponta do corredor, quando começava a atravessar o corredor. E foi assim até chegar ao primeiro andar. Como nas escadas não há câmeras, ele deixou as do primeiro andar e as do térreo, que dão para as saídas das escadas, fixadas no monitor. Desta vez não havia como sumir, pois o vulto voltava para o corredor de onde tinha saído ou apareceria no térreo, pelas escadas. Que isso demorou de dez a quinze minutos e não apareceu nada. Que desta vez não teve estática e as imagens estavam boas, e não havia como se esconder, a pessoa só podia estar parada nas escadas, mas fazendo o quê, se perguntava. Disse que estava decidido e não tiraria os olhos do monitor enquanto o vulto não aparecesse novamente, nem que passasse a noite inteira olhando parra as telas. Que assim estava, quando sentiu a presença de alguma coisa. O ar ficou mais frio e ouviu uma respiração pesada em suas costas. Ficou com muito medo de se virar, pois tinha certeza que era o vulto atrás dele. O depoente disse que, congelado de medo, começou a rezar um Pai Nosso e pediu a proteção da Virgem Maria. Disse que tinha certeza que aquela seria sua última noite na terra. Aquele vulto estava ali para matá-lo. Estava só esperando ele se virar. Que aquilo demorou mais de meia hora, até que um trovão estourou nos céus e ele pensou que era chegada a hora. Que, para a sua sorte, não foi o que aconteceu. Quando o som dissipou, não havia mais nada, não sentia nenhuma presença, mesmo assim, não olhou para trás em nenhum momento. Na manhã seguinte, mal esperou o síndico aparecer, pediu demissão e veio direto a esta delegacia. Por fim, o depoente disse que tem certeza sobre a forma da morte do porteiro que o antecedeu, que foi a coragem dele de se virar para trás que o matou. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:
Leia também: Depoimento (02/02/2025)
Leia também: Depoimento II (09/02/2025)
Leia também: Depoimento III (16/02/2025)
Leia também: Depoimento IV (23/02/2025)
Leia também: Depoimento V (02/03/2025)
Passo a semana esperando esses depoimentos. Gosto do suspense. Jamais serei porteira
Obrigado pela espera, farei de tudo para que valha a pena