domingo - 23/03/2025 - 12:50h

Depoimento – VIII

Por Ayala Gurgel

Arte ilustrativa gerada com Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa gerada com Inteligência Artificial para o BCS

B.O: N° 09-6492/2020

NATUREZA: INQUÉRITO INVESTIGATIVO

DATA DA COMUNICAÇÃO: 21 DE JULHO DE 2020

COMUNICANTE: ELEANOR DAS DORES E SILVA

O senhor Eleanor das Dores e Silva, vulgo Nanô, sessenta e oito anos, casado, carroceiro licenciado, nascido e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia na companhia de advogado, devidamente identificado na forma da lei, para oferecer versão dos fatos, perante mim, escrivã de polícia, sobre ato que consta em inquérito investigativo. O depoente disse ter conhecimento da denúncia e dos fatos que foram trazidos a esta delegacia por meio da jovem Pâmela Chair da Costa Rodrigues e suas testemunhas e acha um absurdo o poder público, por meio desta delegacia de polícia, ser envolvido numa questão simplória como a apresentada. Declarou que, realmente, reside na mesma rua da reclamante há mais de cinquenta anos, antes mesmo da mãe dela nascer. Que a família dela é conhecida por ter muita gente feia e já saiu reportagem sobre isso. Que tem uma música de Falcão sobre gente feia que os ouvintes costumam dedicá-la a eles na rádio comunitária. Os que escaparam da feiura são bem poucos. Mas, assegurou o depoente perante esta delegacia, que sempre teve boa relação com os Costa Rodrigues e nunca antes fez qualquer ofensa nem brincadeira que pudesse ser mal interpretada. Que, na qualidade de homem casado e pai de família, sabe se comportar e respeitar os mandamentos da lei de Deus, em especial os que mandam não matar, não roubar e não desejar a mulher do próximo. Que é preciso respeitar o próximo e procura fazer isso. Que, no dia em questão, estava na rua da matriz conversando com sua madrinha, dona Titonha, sobre a morte de seu Guilhermino e como essa doença é uma praga infeliz. Que a morte de seu Guilhermino foi por covid, a quinta no bairro em que mora e tem certeza que não será a última, e, por conta disso, tem raiva das pessoas que não usam máscaras e não se protegem contra a doença. Que tem toda a certeza do mundo que Guilhermino só morreu porque o neto dele levou a doença pra dentro de casa, pois os jovens de hoje estão brincando com fogo e não respeitam os mais velhos. Solicitado para se ater aos fatos importantes para o inquérito, o depoente retomou dizendo que naquele dia falava sobre a morte de Guilhermino com dona Titonha e estava muito triste por ter que se despedir de mais um amigo, sem poder sepultá-lo com a dignidade que ele merecia. Naquela hora, viu que havia um grupo de jovens na praça, a poucos metros de onde estavam, e percebeu que estavam rindo, bebendo e furando a quarentena. Como percebeu que alguns estavam sem máscaras, começou a ficar incomodado com aquele comportamento e avisou a dona Titonha que iria lá para reclamar. Que dona Titonha se posicionou contra o que ela chamou de intromissão e até alertou que os jovens de hoje têm uma língua muito grande, e ele podia ouvir uma resposta que não iria gostar. Que não levou nada disso em consideração e apenas pensou na morte dos amigos e no sofrimento que todo mundo vem passando por conta da pandemia e como aumentaram os riscos por conta de pessoas que não se cuidam. Que ele mesmo tem muito medo de contrair a doença, de precisar ser entubado e morrer. Que tem mulher e filhos que dependem de seu trabalho como carroceiro, não tem aposentadoria e não pode morrer agora. Que, munido desse sentimento, decidiu ir até o grupo de jovens e pedir que colocassem a máscara e respeitassem a quarentena. Disse que se dirigiu ao grupo e manteve distância de dois metros, o suficiente para ser ouvido e seguro para não ser contaminado. Que, dessa distância, pediu ao grupo para que respeitassem a quarentena e os que estavam sem, colocar a máscara. Que nesse momento, a moça de nome Pâmela se virou para ele, tirou a máscara e perguntou se ele era da vigilância sanitária para querer obrigá-la a ter que usar a máscara. O depoente disse que a reclamante estava, até aquele momento, com máscara e somente quando ela retirou, ele a reconheceu como sua vizinha e lhe pediu para colocar a máscara de volta. Que a jovem não atendeu o pedido e ainda respondeu que não tinha covid e ninguém iria obrigá-la a usar máscara. Que, diante disso, pensando nos amigos que já morreram, o sangue lhe subiu pela cabeça e falou a frase que se tornou objeto de denúncia, para a qual veio prestar seus esclarecimentos. Que na raiva, olhou para a reclamante e falou que no caso dela era melhor colocar a máscara, porque ninguém era obrigado a conviver com uma feiura tão medonha. Era o que tinha a relatar.

Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental

*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:

Leia também: Depoimento (02/02/2025)

Leia também: Depoimento II (09/02/2025)

Leia também: Depoimento III (16/02/2025)

Leia também: Depoimento IV (23/02/2025)

Leia também: Depoimento V (02/03/2025)

Leia também: Depoimento VI (09/03/2025)

Leia também: Depoimento VIII (16/03/2025)

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Categoria(s): Conto/Romance

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