Por Ayala Gurgel
B.O: N° 17-1402/2022
NATUREZA: NOTÍCIA SOBRE AÇÃO DELITUOSA
DATA DA COMUNICAÇÃO: 01 DE ABRIL DE 2022
COMUNICANTE: ALICE DIONÍSIO NEVES FONTES
A jovem Alice Dionísio Neves Fontes, vinte e seis anos, solteira, fonoaudióloga, funcionária da Clínica Ouvindo Melhor, residente nesta freguesia, compareceu de livre e espontânea vontade a esta delegacia para narrar, perante mim, escrivã de polícia, notícia da qual diz ter conhecimento envolvendo a clínica na qual trabalha e alguns de seus clientes. A depoente disse que trabalha na referida clínica desde que estava no último ano da faculdade, ainda como estagiária, e sempre viu o lugar como um espaço acolhedor, familiar e que traz esperanças às pessoas com problemas auditivos, a maioria formada por pacientes adultos ou idosos, com poder aquisitivo em torno de cinco salários mínimos. Que sua vocação para trabalhar com a reabilitação da escuta vem desde a infância, quando passou a conviver com a avó, uma senhora surda, após a separação dos pais. Convivência essa fundamental para aprender a respeitar e procurar entender a pessoa com limitação auditiva, em especial a pessoa idosa. Em função disso, vê, até hoje, em cada paciente que atende a figura da avó e Se lembra a gratidão que tem para com ela, já morta. Que tem sido assim e os pacientes gostam muito da forma como são atendidos por ela, o que tem lhe projetado destaque na empresa e contribuído para que as comissões com vendas de aparelhos sejam satisfatórias. Que nunca induz nenhum paciente a comprar o aparelho auditivo, mas a maioria compra, pois sente a diferença na qualidade de vida quando passa a ouvir melhor. Que tem visto o impacto que o uso frequente do aparelho auditivo causa na vida das pessoas e, justamente por isso, procura indicar somente o que há de melhor para garantir que o paciente não apenas passe a escutar bem, como inicie o processo de recuperação da audição prejudicada. A autonomia auditiva é um aspecto da saúde para o qual a depoente se disse muito sensível e sua vida não faz sentido se não for para ajudar as pessoas que precisam e estão em busca desse bem-estar. Que, em virtude do seu empenho, o gerente da sua unidade clínica a convidou para fazer um workshop, com tudo pago pela empresa que confecciona a principal marca de aparelhos auditivos usada na clínica. Que participou do workshop e recebeu treinamento sobre o produto e suporte técnico necessário, de onde saiu com a chance de se tornar embaixadora da marca na cidade. Informou que a clínica opera atualmente com duas marcas de aparelhos, ambas do mesmo fabricante, ofertadas de acordo com o poder aquisitivo dos pacientes, sendo a marca Alto e Bom Som mais popular e Puro Som mais elitizada. Que é sobre a última que deseja relatar. A depoente disse que depois daquele workshop passou a ter acesso tanto ao sistema de monitoramento à distância do uso dos aparelhos quanto às tabelas de vendas e parcerias da marca. Que esse acesso é importante caso exista a necessidade de atender a algum paciente remotamente ou precise fazer ajustes nos aparelhos. Que passou a usar o sistema com frequência porque alguns pacientes começaram a relatar desconforto auditivo, em virtude de zumbidos. Que sempre colocou a necessidade dos pacientes em primeiro lugar e ficou incomodada com aquilo, mas não conseguiu ver razões objetivas para a reclamação, uma vez que os aparelhos estavam calibrados na frequência programada para cada paciente. Que às vezes isso é normal, uma vez que parte da audição é subjetiva e o processo de adaptação ao aparelho demanda tempo, de modo que algumas pessoas se adaptam mais rápido que outras. Em razão da informação relatada pelos pacientes, ofereceu respostas protocolares pedindo para aguardarem mais tempo, até que estivessem adaptados. Contudo, em virtude do seu compromisso com o bem-estar dos pacientes, decidiu testar um aparelho programado para o seu perfil auditivo e pôde confirmar a queixa. Que havia um ruído quase imperceptível, mas podia se tornar incômodo. Antes de abrir uma reclamação junto à empresa, decidiu entrar no sistema para averiguar a possibilidade de encontrar algo a respeito no FAQ e fazer os ajustes. Que passou várias horas do seu tempo livre fuçando o sistema e procurando entender as tabelas e frequências de som que são usadas, inclusive para o monitoramento à distância. Que foi durante a investigação que notou o aumento de vendas dos produtos das empresas parceiras coincidindo com o aumento da venda e instalação dos aparelhos. Que achou a coincidência um pouco esquisita, em especial por aparecer nos gráficos da empresa, como se alguém quisesse atrelar o uso dos aparelhos ao aumento de consumo de produtos nada associados. Pensou que nada daquilo fazia sentido e não era do seu interesse, uma vez que sua única preocupação era com os ruídos que incomodavam os usuários. Que se debruçou sobre a logística do sistema e funcionamento dos aparelhos até que percebeu a emissão de sons em frequências que não são perceptíveis pelo ouvido humano, mas podem atingir o pavilhão auditivo. Tais frequências eram emitidas sem o controle do operador do sistema, o que significa que não elas tinham nada a ver com ajustes ou reparos solicitados. Pensou que pudesse ser alguma ferramenta do próprio sistema para monitorar o aparelho e sua carga ou sua capacidade de resposta aos estímulos sonoros externos. Que, em virtude de sua curiosidade, decidiu copiar as frequências e traduzi-las de forma triangulada em frequências audíveis que façam sentido ao ouvido humano. Que, para a sua surpresa, conseguiu decifrar as frequências copiadas e notou que eram mensagens enviadas aos usuários de aparelhos auditivos sugerindo que realizassem compras nas marcas parceiras. Que não sabe explicar como isso funciona, mas os gráficos que ela observou mostram que as vendas das marcas indicadas aumentaram à medida que o paciente se tornava usuário do aparelho auditivo. Que não sabe quais outras mensagens foram passadas, mas tem o arquivo das que conseguiu decifrar. Perguntada se essa teoria fazia algum sentido ou não poderia ser classificada como mera conspiração, a depoente disse que não estudou nada sobre o assunto e a única prova que tinha para mostrar era o arquivo decifrado e o testemunho de que ela mesma ouviu os zumbidos reclamados, bem como que a ocorrência dos zumbidos coincide com a hora dos disparos dessas mensagens. Sobre a possibilidade de serem passadas outras mensagens igualmente perigosas, como indução ao suicídio ou do voto, a depoente disse que não sabe informar, pois tudo é muito novo para ela, mas não descarta a possibilidade, uma vez que a parte ativada do cérebro para compras pode ser acessada pelo sistema auditivo e é a mesma para as tomadas de decisões, como votar ou dobrar à esquerda no trânsito. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:
Leia também: Depoimento (02/02/2025)
Leia também: Depoimento II (09/02/2025)
Leia também: Depoimento III (16/02/2025)
Leia também: Depoimento IV (23/02/2025)
Leia também: Depoimento V (02/03/2025)
Leia também: Depoimento VI (09/03/2025)
Leia também: Depoimento VII (16/03/2025)
Leia também: Depoimento VIII (23/03/2025)
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Acompanho esta série de depoimentos publicadas pelo Professor Ayala Gurgel com a mesma sensação de ansiedade deliciosa de quando, em minha infância, ia assistir as vesperais de domingo do cine PAX, de Jorge Pinto. Logo após a permissão cerimoniosa do Porteiro Balão, que fazia questão de anunciar os nomes dos pais da meninada que passava pela bilheteria confirmando a gratuidade do acesso.
A expectativa do apagar das luzes e o sinal sonoro para início da sessão era acompanhado por uma demonstração de euforia e gritos de oba. Ao fim da exibição, a sensação de ‘quero mais’ e o murmúrio sonorizado com um ‘ah!, jà terminou?’ Era, então, quando Balão, dizia ‘semana que vem tem mais!’ Nos animando a retornar para acompanhar os filmes e seriados de cinema.
Assim é minha expectativa com esta série de depoimentos. Deleite do começo ao fim e a animação da expectativa para o episódio da próxima semana.