Por Ayala Gurgel
B.O: N° 20-1402/2022
NATUREZA: INQUÉRITO INVESTIGATIVO
DATA DA COMUNICAÇÃO: 31 DE MAIO DE 2022
COMUNICANTE: MANOEL CARLOS BARRETO
O senhor Manoel Carlos Barreto, mais conhecido como seu Carlos, setenta e dois anos, casado, técnico em construção de estradas, aposentado, residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia para narrar, perante mim, escrivã de polícia, fatos ocorridos nesta cidade dos quais é testemunha. O depoente disse que estava no dia 18 de maio, às dezenove horas, na Padaria do Oscar, como é de costume há mais de dez anos, para tomar café com seus amigos, e foi nessa ocasião que se deu o fato ocorrido. Estava na companhia de José Francisco Santos e Silva, mais conhecido como Birita, e Roberto Maria da Conceição Almeida, mais conhecido como Fidalgo, além de outros populares que frequentam o lugar regularmente. De duas a três vezes por semana, os três se encontram na padaria para tomar café, comer tapioca com queijo e jogar conversa fora. Disse que um desses encontros tem que ser na quarta-feira, quando tem sorteio da Mega sena, para que Fidalgo possa conferir seu bilhete. Indagado quanto a essa peculiaridade, o depoente disse que os três se conhecem da igreja, há muitos anos, e lá descobriu que todos eram viciados, cada um do seu jeito. Que velho é assim mesmo, cheio de mania. Tanto ele quanto seus amigos são assim, não tem jeito. Advertido que não era de bom tom falar dessa forma sobre as pessoas idosas, disse que não queria ofender ninguém e se referia só a ele e seus amigos. Para esclarecer o que queria dizer, declarou que Birita é viciado em placas de trânsito e tem essa mania desde que trabalhou no DNIT. Teve uma época que ele tinha mais de cinco mil placas guardadas em casa, e só se desfez delas porque a mulher ameaçou largá-lo. Apesar de melhor, tem dia que fica sofrendo, com saudades das placas. Que seu problema é com cachaça e esse vício trouxe muitos aborrecimentos e o deixou com um problema no fígado e um par de chifres. Não fosse o AA, nem sabe onde estaria hoje. Fidalgo tem problemas com jogo, qualquer tipo de jogo. O que ganhou com jogo, e nunca foi muito, jogou de volta e perdeu. Explicou que não se deve fazer isso, jogar de volta o dinheiro ganho com jogo, pois o dinheiro do jogo quer ficar no jogo. Solicitado a não fugir dos fatos, o depoente retomou a narrativa e disse que os três são velhos cheios de manias, e Fidalgo tava com o bilhete da Mega sena, conferindo o sorteio. Já tinha acertado três números e esperava o quarto. Que deu sorte e fez logo promessa a Nossa Senhora. Disse que Fidalgo é assim, se empolga rápido, e quem o conhece, não liga, mas tem gente que não sabe o que ele já passou. Ao sair o número sete, Fidalgo gritou de alegria, dizendo que a quina estava garantida. O pessoal da mesa já o conhece e entrou na brincadeira, foi a maior gritaria, era a primeira vez que ele acertava cinco números daquele bilhete. O depoente disse que a ansiedade do amigo era grande, só faltava o número treze, e todo mundo ficou torcendo para que saísse e número da sorte, e, de fato, saiu. Fidalgo estava com sorte. Que ele nem pensou direito e gritou “bingo!”. O depoente registra que achou engraçado, porque percebeu que Fidalgo estava tão fora de si que chegou a pensar que estava no bingo, mas nem deu tempo de brincar. Assim que Fidalgo gritou “bingo”, levou um sopapo e deu com a cara no chão. Alguém se atirou em cima dele e roubou o bilhete. Na teima, o ladrão deu uma pernada no velho que o deixou estatelado no chão. Indagado se a queixa é só pelo roubo ou agressão seguida de roubo, o depoente disse que não havia por parte de nenhum deles, até o momento em que foram conduzidos à delegacia, a intenção de prestar a queixa. Disse que, como havia falado antes, Fidalgo teve problemas com jogo, mas largou. Largou o jogo e ficou com a mania. O bilhete que ele carregava no bolso tinha mais de dez anos, era só para ele sentir a emoção e se lembrar do tempo em que era viciado e não cair mais na tentação. Completou que não precisava dar queixa porque o bilhete não vale nada e o ladrão vai descobrir o erro, talvez depois de passar a semana pensando que está rico e fazendo planos. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:
Leia também: Depoimento (02/02/2025)
Leia também: Depoimento II (09/02/2025)
Leia também: Depoimento III (16/02/2025)
Leia também: Depoimento IV (23/02/2025)
Leia também: Depoimento V (02/03/2025)
Leia também: Depoimento VI (09/03/2025)
Leia também: Depoimento VII (16/03/2025)
Leia também: Depoimento VIII (23/03/2025)
Leia também: Depoimento IX (30/03/2025)
Leia também: Depoimento X (06/04/2025)
Faça um Comentário