Por Ayala Gurgel
B.O: N° 10-6492/2020
NATUREZA: DENÚNCIA CRIME – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DATA DA COMUNICAÇÃO: 08 DE AGOSTO DE 2020
COMUNICANTE: KELLY ANNE SORAYA DE ARRUDA MATIAS
A senhorita Kelly Anne Soraya de Arruda Matias, vinte e um anos, solteira, vendedora, universitária e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia e declarou, perante mim, escrivã de polícia, o desejo de prestar queixa de forma não identificada contra o senhor Félix Roberto Diniz Dantas por maus tratos e violência doméstica contra Débora de Almeida Dantas, cônjuge do denunciado. A depoente diz que, no início desta noite, por volta das dezoito horas e quarenta e cinco minutos, fez uma vídeo chamada para a senhora Débora de Almeida Dantas, com a qual mantém relação de amizade e compartilha o mesmo curso na faculdade, para falar sobre a aula da manhã de hoje, uma vez que a amiga faltou e o professor passou atividades para serem desenvolvidas em grupo e entregues até a próxima quarta-feira, dia treze de maio. Queria saber da amiga se desejava ficar no mesmo grupo que ela. Que não é incomum as duas se falarem, inclusive por meio de vídeo chamada, bem como realizarem atividades em grupo, o que ocorre desde o colegial, mas não é normal a amiga faltar às aulas sem avisá-la; que isso nunca aconteceu e essa foi a principal razão para procurar falar com ela. Que se lembrava de fato importante que pode também tê-la motivado a fazer a ligação, mas prefere falar adiante, pois quer primeiro narrar como foi a ligação. Que sua primeira tentativa de vídeo chamada resultou em vão, e que ela não sabe se foi porque o celular da amiga estava sem rede ou ela não pôde ou não quis atender, visto que não há como saber sobre isso. Diante da dúvida, não aguardou e enviou mensagem de texto na qual explicitou a necessidade de falar com ela sobre a última aula e o trabalho que precisava ser feito com urgência. Quase cinco minutos depois recebeu como resposta apenas um “ok”. A depoente mostrou ao delegado de plantão a tela do seu celular com a conversa aberta, para atestar o hiato temporal entre a mensagem enviada e a resposta recebida. Em seguida, a depoente narrou que, pouco depois, seu celular começou a vibrar, anunciando o recebimento de uma chamada de vídeo. Era sua amiga, Débora de Almeida Dantas. A depoente disse que a amiga estava sozinha no vídeo, na cozinha de casa, mas achou estranho porque a imagem se mexia um pouco, como se o celular estivesse apoiado em algum lugar que balançava ou alguém o estivesse segurando, enquanto gravava. Que aquilo era o tipo de coisa que sua amiga não costumava deixar acontecer, pois sempre usava o tripé e procurava um enquadramento que a valorizasse. A amiga, que sempre aparecia bem arrumada nas chamadas, mal havia se penteado. Aquilo não parecia coisa dela, ou coisa normal, pelo menos, mas, superado a impressão inicial, a depoente continuou a conversa. Disse que explicou sobre a atividade que deveria ser feita e como ela tinha pensado na distribuição do conteúdo, pois seriam quatro colegas na mesma equipe. Como notou apatia na sua amiga e vez outra um corte na fala, como um engasgar ou para engolir algo, ela perguntou se estava tudo bem, ao que ouviu como resposta que sim, e justificou que estava apressada porque ela e Félix Roberto estavam conversando sobre algumas coisas que precisavam em casa. A depoente disse que ao ouvir aquilo, cismou que houvesse algo de errado, pois conhecia a amiga há muitos anos e acompanhou o namoro dela com o atual marido desde o início. Sabia o suficiente para ter certeza que ela não gostava de chamá-lo Félix Roberto, a não ser que houvesse muita raiva ou alguma coisa muito séria. Que ao ouvir a amiga se referir ao marido pelo nome composto, foi tomada pela desconfiança que tinha algo de errado e precisou tirar suas dúvidas. Disse que tem ciência dos riscos aos quais as mulheres estão sujeitas e que o marido vinha tendo crises de ciúmes recentes depois que ela entrou para a faculdade. Que, em primeiro lugar, quis saber se o marido estava por perto, e, para tanto, falou apenas que mandava um abraço para ele, o que obteve como resposta um indiscreto “dou sim, ele está bem aqui”. Como não podia perguntar mais nada de forma direta e percebeu que a amiga estava querendo encerrar a ligação, que ela supôs por pressão do marido, a depoente disse que se lembrou de um código que as mulheres da sala tinham combinado para caso alguma estivesse em perigo, que chamaram de “o tchau do perigo”. A depoente disse que anunciou que ia finalizar a ligação e falou para a amiga não se esquecer do “nosso tchauzinho”. Que, para sua tristeza, foi exatamente o gesto que a amiga fez. Naquele instante, a depoente tirou todas as dúvidas e tem certeza que a amiga está em perigo, razão pela qual veio às pressas a esta delegacia prestar queixa e pedir providências imediatas. Insiste a depoente que o fato de sua amiga ter se referido ao marido pelo nome composto e feito o sinal de socorro no vídeo é um claro indício de que a vida dela corre perigo. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:
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