Por Ayala Gurgel
B.O: N° 21-1402/2022
NATUREZA: DENÚNCIA DE CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO IMATERIAL
DATA DA COMUNICAÇÃO: 06 DE JUNHO DE 2022
COMUNICANTE: LÚCIA EMÍLIA SILVEIRA DE ANDRADE E ALVAREZ
A senhora Lúcia Emília Silveira de Andrade e Alvarez Cabral, sessenta e cinco anos, casada, doutora em letras, professora aposentada, escritora e acadêmica imortal da Academia de Letras de Tugúrio, cadeira número dezesseis, e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia para oferecer denúncia, perante mim, escrivã de polícia, sobre fatos dos quais diz ter notícia. A depoente solicitou que se registrasse que possui competência intelectual, profissional e moral amplamente reconhecida nos devidos meios para avalizar a notícia crime que veio oferecer junto a esta delegacia e seu testemunho deve ser considerado inconteste e prova de si mesmo, para o bem da cultura e defesa do patrimônio imaterial deste país. Disse que tem conhecimento de fato atentatório contra o patrimônio imaterial e cultural do nosso povo que põe em risco a simbologia e ritualística literária dos acadêmicos e imortais, tanto aqui quanto no país de Camões. Acrescentou que o fato sobre o qual pretende se queixar veio a seu conhecimento recente e tão logo tomou ciência, decidiu, pelo dever que impera sua digna condição de acadêmica imortal, literata e jurada defensora da língua portuguesa, oferecer denúncia para que a intenção ofensiva dos seus autores não prospere nem dê frutos. Que soube do fatídico por ter sido convidada a participar de importante concurso literário nacional, na qualidade de juri, graças ao reconhecimento de sua dedicação às letras. Que, graças ao convite, tomou ciência do que as mentes ansiosas por notoriedade e oportunidade de visibilidade estão a produzir. A depoente exigiu que não fosse usado o gerundismo para a transcrição do seu depoimento. Satisfeita com a promessa e esforço desta escrivã, disse que, em virtude da referida participação, da ânsia pela inovação e desprezo pela nossa cultura, percebeu que há excessivos desvios de mentalidade e do bom uso da nossa língua, fazendo com que estilos muito bem determinados enfrentem uma avalanche anarquista de ataques. Que, do mesmo modo que um soneto é o que é, pela sua forma, ou um cordel não pode ser uma trova, pelas mesmas razões, um conto é o que é por sua estruturação. A nossa academia tomou, desde as sábias e irretorquíveis palavras do grande folclorista nacional, o imortal potiguar Câmara Cascudo, a estrutura destas peças, que são os dois mais nacionais estilos literários, o conto e a crônica, e com isso, o assunto está encerrado. Não há mais o que discutir. Assegurou que se encontrava habilitada para fornecer informações complementares sobre esse estrutura, caso fosse preciso e requisitada. O delegado achou por bem dispensá-la dessa obrigação e pediu para se ater aos fatos. A depoente exigiu que ficasse registrado nesta ocorrência que não concordava com a visão positivista de sua excelência sobre a redutibilidade fatídica do relato policial, mas que se compromete a atender seu pedido. Retomando a narrativa, disse que, graças à sua participação no concurso, tomou conhecimento da preferência de alguns literatas, como o doutor José Roberto Alves Barbosa, que ameaçam a solidez dos nossos rituais de escrita e bens imateriais. Que o acadêmico está a fazer concessões à neoliteratura que subvertem a estética da língua culta e bem trabalhada em favor da linguagem ordinária. Que a presente denúncia se sustenta em virtude de saber que esse acadêmico está a considerar positivamente produção de um ignoto Ayala Gurgel, que reuniu sob sua autoria uma contoria na forma de boletins de ocorrência, profanando uma coisa e outra, não é conto nem boletim de ocorrência. Que, se todo esse liberalismo for permitido, o que se pode prever não é o melhor cenário para a manutenção dos costumes mais arraigados de tão alta estilística literária. É perceptível o risco que nosso patrimônio corre, tendo que inserir na contologia contemporânea escreveniências banais como receitas médicas, anamneses, correções de provas, laudos periciais, e tudo o mais que for escrito mesmo sem a menor ou qualquer intenção literária. Estaríamos a erigir à condição máxima da obra de arte que dignifica a nossa língua casos da linguagem comum, só porque no passado algumas pessoas de destacado talento fizeram isso com as cartas. Que, para o bem da proteção da nossa cultura e defesa do nosso patrimônio imaterial, o devaneio que ora se instaura deve ser impedido e limites precisam ser impostos. Por fim, solicitou que os acusados sejam intimados e o trabalho do neoliterata desacreditado enquanto ainda há tempo para evitar que dê frutos. Era o que tinha a relatar.
Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental
*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:
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