Boêmio convicto, o jornalista-compositor pernambucano Antônio Maria cunhou uma frase que virou um culto à boa vida noturna carioca, que ele aproveitou intensamente, sobretudo nos anos 50: "A noite é uma criança".
É verdade. Eu já a embalei muito e a conheço bem. Contei estrelas sob seu teto, tangi-a por aí, sem destino. Com seu consentimento eu bebi todas, bradando aos quatro cantos a minha felicidade.
Para Cazuza, "o banheiro é a igreja de todos os bêbados". À noite, é também o vômito espalhado no chão, o batom na gola da camisa, recanto das mais sórdidas confissões e daquele inescapável último pingo na cueca.
"À noite todos os gatos são pardos." Tenho minhas dúvidas. Muitos cintilam e reluzem, para morrer aos primeiros raios de sol da manhã. Outros têm cores próprias e se renovam ao amanhecer. Têm sete vidas.
Na verdade, a noite tem o poder de revelar pessoas, isso sim. Mas elas não são melhores ou piores por causa da noite. Nem adianta culpar a bebida por sua imagem lasciva declarada, longe da identidade diurna.
A "Persona" (máscara) não cabe em qualquer um. A máscara cai na maquiagem borrada, na moral encardida.
Hemingway disparou: "Paris é uma festa". Tem sido assim há décadas. E a noite?
Temos muito de Paris, do Sena que nos corta à Bastilha que nos prende. A Champs Élysées que parece infinita é como aquela noite que nunca devia acabar, de tão boa.
A "baladeira" me aguarda dadivosa. Tadinha, tão surrada, mas acolhedora. A noite engatinha e o sono não chega. É como meu novo bebê, vivo num imaginário dividido e partilhado, pronto para nascer. Estou à sua espera infinitamente.
O que seria da humanidade pós-moderna se não fosse Twitter, MSN, Facebook etc.? Sobreviveria, lógico, mas assim mesmo quero ir para Pasárgada. Sem querer ser esnobe, vou logo avisando: lá não faço questão de ser amigo do rei.
Sou velho mesmo. Do tempo que puxava o sono ouvindo a Rádio Mundial, folheava a Playboy às escondidas, com olhar rútilo, jogava conversa fora à calçada para engolir as horas e fazia do sarro o ápice do "amor".
Bom tempo.
Sou do tempo que a madrugada insone, de boemia inocente, terminava no Mercado Central, na esquina de casa, na praça com o sol dando "bom-dia". Feliz pela camisa amarrotada, por sentir outro perfume no corpo ou conformado com a solidão de muitas vozes ininteligíveis, sem que umazinha sequer me acalentasse.
Saudosista? Não. Vivo hoje o melhor dos meus dias terrenos, sem medo de olhar para trás e enxergar minhas próprias pegadas.
O meu tempo não é o da saudade. Fico a falar do que passou, porque passou sem ir embora. É como aquele livro bom, socado entre outros na estante, que a gente sempre consulta numa releitura que se renova.
É, muitas vezes, um volver para rir das próprias desgraças. Passeio por desventuras próximas as de "Geraldo Viramundo", personagem de Fernando Sabino, sempre envolto em situações picarescas e estapafúrdias. Um Dom Quixote sertanejo.
Ah… e se eu fosse poeta? E se tivesse um violão? Não quero nem pensar. A sarjeta seria minha pátria. Bardo solto por aí crente na imortalidade, não estaria aqui, balbuciando essas palavras. A noite teria minha vigília permanente à janela de Rapunzel.
Talvez fosse "um menino passarinho, com vontade de voar", como escreveu Luiz Vieira. Até pediria que copiassem o próprio Sabino com um etipáfio parecido àquele posto em seu túmulo, para fechar minha história:
"Aqui jaz Carlos Santos, que nasceu homem e morreu menino".
Boa noite. O sono chegou.
São 3h15… zzzz!!!
Caro AMIGO CARLOS: Prá que que eu “inventei” de ler este nostálgico e contagiante artigo. Não mais que de repente me ví menino travesso, alías, traquino – que é o termo nordestinês para se definir menino danado,”comedor” de cabras e “assassino” libidinoso de galinhas cevadas,com destino certo para serem consumidas na ceia do natal. Me ví menino abestalhado diante tanta beleza da primeira professorinha,com aquele cheiro característico do acentuado “rouge” com que ruborizava suas pálidas faces. Quem de nós nunca sonhou namorar e casar com a primeira professorinha ? – principalmente se ela fosse revestida daquela beleza angelical de que eram revestidas àquelas moçoilas de famílias tradicionais do lugar, de pele alva como a brancura dos alpes andinos (Aquí não vai nenhum ranço de racismo!). Na minha pequenina cidade Apodi, acordava ainda aos primeiros alvores do dia, e corria, lépido e fagueiro, no rumo da Igreja-Matriz,onde, envolto em inebriante êxtase, deitava-me na calçada do patamar (adro) e ficava fitando em perene olhar fixo o vôo das andorinhas, que em seus vôos rasantes rabiscavam, num combinado perfeito de entre nuvens superpostas, recados
fantásticos dos mistérios circundantes, que impregnavam minha alma de um colorido perfeito. Como encantavam-me àqueles claros matinais que principiavam aparecer, ao longe, entre os verdejantes carnaubais, prás bandas do sítio “garapa”, que ornavam/ornam a lagoa de um verde reviver. Vezes sem conta
ouví a voz soturna dos venerandos e vetustos sinas da Igeja-Matriz, “quebrando o imenso silêncio do espaço, na cadência monótona daquelas escalas, onde o tempo era um denominador-comum, distribuído aos pedaços, marcando a marcha do tempo e do ciclo vicioso da vida”. A mente de criança pautada pela vida povoada de sonhos, sem fazer nada, apática, apática, preguiçosa e inútil. Menino travesso, sempre afeito às repetidas brincadeiras, gaiatices, travessuras e fuxicos. Viver ao meu modo era a minha filosofia. E assim vou remexendo nos meus arquivos memoriais sempre bolorentos pelo mofo das horas do quase esquecimento. Saudades….