Nosso doutor Juiz, fátuo e rotundo, pontifica: “processo não dorme na minha mesa”. Menos mal, Desembargador, menos mal. Se fosse verdade, então, seria perfeito. Mas não é. Alguns dormem, nós sabemos, em escaninhos secretos, aos quais poucos têm acesso.
São assuntos embaraçosos, próprios para ficarem longe de olhares curiosos.
Nas mãos outrora calosas do nosso doutor Juiz – a transição para a condição atual de suas mãos poderia ser uma alegoria para explicar, aos mais providos de erudição, o mito de Fausto, aquele que vendeu a alma ao diabo para subir na vida – o charuto descansa tranqüilo enquanto a cinza se acumula, fazendo contraponto às pedras de gelo que derretam lentamente, banhadas por um dourado uÃsque doze anos de fina procedência.
“Diga-me, Doutor, esse árduo labor que o senhor desenvolve ao longo dos seus estafantes dias é para semear Justiça?” Quase recuo ante o olhar investigador que ele me lança – isso é lá coisa que se pergunte assim, como quem não quer nada, em uma mesa de restaurante, plena sexta-feira? Quando muito, talvez, quem sabe, numa palestra para estudantes de Direito, dando ensejo a um longo rosário de citações convenientemente catadas aqui e acolá pelos estagiários de plantão em seu gabinete!
“Na verdade, meu caro, é semear o cumprimento da lei, e em semeando o cumprimento da lei, fazer Justiça.” É um “uppercut”, sem dúvida. Quase um nocaute. Não posso negar que a frase bem construÃda, sua forma, é que foi mais contundente. Sumamente retórica. E o “meu caro”? Quanta condescendência. E quanta inveja, como negar?, de minha parte.
As volutas da fumaça do charuto sobem, preguiçosamente, enquanto o silêncio se estabelece. Vai se dar, ele, o perguntador, por satisfeito?, perguntam os outros membros da mesa.“Então, Doutor, toda a lei, para o senhor, é justa?” Agora percebo, sinto, quase toco o constrangimento de todos. Aliás, todos me olham um olhar de censura.
Há uma tensão no ar.
De um lado, o Poder e seus comensais, travestidos de advogados, a beberem o sumo da saliva desembargatória. Do outro, sozinho, incômodo, eu, a perguntar e provocar, selando meu futuro ostracismo, já que serei condenado inapelavelmente a não compartilhar mais a mesa em torno da qual me sento.
“Quando não é justa nós a tornamos através dos princÃpios constitucionais.” Vê-se, agora, um ar de irritação mal disfarçada na face do doutor Juiz. “O que pretende esse perguntador”, quiçá pergunta-se ele. “Colocar-me em contradição?” “Era só o que me faltava.” “E eu que contava passar uma noite prazerosa.” “Ô cara chato!”
Os advogados, agora, desconversam, um olho em mim, outro no doutor Juiz.
Não se pode negar a curiosidade, mesclada com doses maciças de constrangimento.“Então, Doutor, para que o senhor identifique uma lei como injusta, penso que é necessário sabermos o que é o justo. E o que é o justo?”
O doutor Juiz ri. Ou faz que ri. Acena freneticamente para um transeunte, pedindo para ele esperar. Bate a cinza do charuto. Diz que gostaria de continuar a conversa, mas precisa falar com aquele seu amigo. E, quase saindo, olha para mim, e me diz que em outra hora, quem sabe, outro “happy-hour”, a conversa continuará e chegará a bom termo.
Dá um até logo apressado e vai para longe, bem longe, a sacudir a cinza do seu charuto e um curto passado de perguntas incômodas.
É hora de administrar o ressentimento dos comensais do Poder.
Honório de Medeiros, advogado, professor universitário e ex-secretário de Recursos Humanos do RN
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