domingo - 17/05/2020 - 08:28h

Uma batalha para lembrarmos de Florence, Albert e Raoul

Por Marcos Araújo

Zygmunt Bauman, professor emérito das universidades de Leeds (Inglaterra) e Varsóvia (Polônia), um dos mais importantes sociólogos da atualidade, disse que vivemos uma modernidade líquida. Para ele, são características da modernidade líquida a substituição da ideia de coletividade e de solidariedade pelo individualismo. Para ele, as relações afetivas se dão por meio de laços momentâneos e volúveis (amor líquido). Por sua teoria, o sentimento pelo próximo é uma quimera.

A teoria da “modernidade líquida” de Bauman, de uma suposta individualidade e da perda do sentimento de coletividade não se sustenta nessa pandemia, diante do árduo trabalho e do devotado esforço em salvar vidas desempenhados por enfermeiras(os) e médicas(os) em seus ambientes ocupacionais.Em tempos de coronavírus, enfermeiros e médicos (sem indicação de sexo e ficando no gênero humano), têm sido a marca perene do que há de esperança para a humanidade. Correndo risco pessoal, diuturnamente eles têm se exposto arriscadamente em prol dos seus pacientes, já se contando às centenas o número de óbitos desses profissionais da saúde.

Uma coisa pode ser dita: num tempo em que escasseiam os lideres (políticos, religiosos, sociais e profissionais), as(os) médicas(os) e enfermeiras(os) têm sido os únicos elementos remanescentes de um mundo catársico que esperanceia salvação.

Como prova de amor ao próximo na área da saúde, numa recordação de antecedência histórica, trago à memória Florence Nightingale, Albert Schweitzer e Raoul Le Clezio, uma enfermeira e dois médicos, respectivamente.

No dia 12 de maio último, fez 200 anos do nascimento de FLORENCE NIGHTINGALE. Nascida em Florença (por isso o nome “Florence”), com o sobrenome Nightingale (rouxinol), à semelhança do pássaro, ela “cantaria” de dia e de noite em favor dos seus pacientes. Em 1859 ela criou a primeira escola de enfermagem do mundo, no Hospital St. Thomas, em Londres.

Também é dela a Teoria Miasmática, método utilizado na época em hospitais considerados avançados como o de Paris, onde a limpeza e a assepsia dos ambientes são indicados como meio de cura, provando que as doenças poderiam ter origem espontânea em locais escuros e do contato com o lixo. Foi ela a primeira mulher enfermeira a participar de uma academia de ciências.

ALBERT SCHWEITZER era um médico alemão de classe média alta, primo de Jean-Paul Sartre, que mesmo sendo um intelectual (um dos melhores intérpretes de Bach de sua época) e professor louvado na sua região, deixou todo o seu prestígio e conforto da sua terra natal e migra para o Gabão.

Ao chegar na África, se deparou com muita pobreza e sofrimento, fazendo de um galinheiro o seu consultório, enfrentando obstáculos como o clima hostil, a falta de higiene, o idioma que não entendia, a carência de remédios e instrumental insuficiente.

Banca a construção de um hospital com recursos próprios, tratando seus pacientes com tanta dedicação que lhe fez merecer o premio Nobel da Paz, em 1952. Nunca deixou a África, estando enterrado em Lambaréné, Gabão.

Por fim, RAOUL LE CLEZIO. Médico inglês, oficial militar que enviado em campanha para a Nigéria na época da guerra, por lá ficou até o fim da vida. Apenas lembrando, Nigéria era uma colônia inglesa.

Seu filho, o escritor Jean Marie Le Clezio, prêmio nobel de literatura em 2010, conta a vida do seu pai na premiada obra “O Africano”. Causa espécie e perplexidade ao filho, escritor famoso, o fato do seu pai, um homem de muita formação e relativamente de posses, ter optado por viver solitário na África, tratando “de vítimas de malária ou de encefalite” (p. 43).

Ao visitar o pai, em seu consultório improvisado (uma cabana no meio do nada), Jean Le Clézio narra a verdade da realidade africana, destoante da Europa onde vive, a partir da análise do corpo desnudo de uma senhora:

– “O corpo nu dessa mulher feito de dobras, de rugas, sua pele como um odre vazio, seus seios longos e flácidos, caindo sobre a barriga, sua pele rachada e desbotada, meio cinzenta, tudo isso me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, verdadeiro” (CLÉZIO, 2012, p. 11).

A escolha de Raoul foi gratuita e altruística, permanecendo na Nigéria até a sua morte. Presumiu seu filho que a sua estada poderia ter sido para “escapar da mediocridade da vida inglesa” (p.43).

Uma coisa os três exemplos acima citados tinham em comum: assumiram suas missões ainda muito jovens.

Nesse tempo pandemônico (e não mais pandêmico), a salvação tem vindo dos herdeiros etiológicos e descendentes profissionais de Florence, Albert e Raoul.

Em que pese haver muitos profissionais experientes e maduros à frente do “teatro de operações de guerra”, que são esses nosocômios improvisados, onde tudo falta, marca muito a atuação dos mais jovens.

Recém-saídos das universidades de Enfermagem e Medicina, alguns até abreviados na formação educacional-curricular por força de ato governamental, têm sido eles arregimentados como “soldados” para se postarem no front contra o coronavírus.

Para esses jovens, a meninice foi suplantada, o riso foi suspenso, a alegria interrompida e os sulcos da preocupação passaram a marcar a silhueta dos seus rostos. Nem à tradicional festa de colação de grau tiveram direito.

Como bem os definiu recentemente o célebre pintor inglês Banksy, num quadro em que uma criança troca bonecos de super-heróis conhecidos por um boneco de uma enfermeira como super-heroína, são os profissionais da saúde verdadeiros heróis. Aliás, a palavra herói nem os define com precisão. Melhor dizer que são mártires. A palavra “mártir”, vem do grego “martys” e seus termos afins “martyria”, “martyrion”, significando testemunha.

De fato, no sentido cristão, mártir é aquele que dá a sua vida pelo próximo. João Batista foi o primeiro mártir do Novo Testamento, sendo tirada a sua vida por denunciar os opressores (Mc 6,17-29). Pedro e Paulo, as duas colunas da Igreja, também sofreram o martírio, por ordem do imperador Nero.

As Igrejas cristãs (católica e evangélica), que nasceram de um Jesus Cristo morto na cruz, inspiradas pelo derramamento do sangue de inocentes, presentemente são fortalecidas pelo testemunho de mulheres e homens que, independentemente de credo, por causa da profissão de enfermeiros e médicos, oferecem suas vidas em favor da salvação de outros.

Como “guerreiros” que não temem o “bom combate” (lembrando as palavras de Paulo, apóstolo), esses jovens médicos e enfermeiros são edificadores de uma história de heroísmo e compaixão no trato de milhares de “cristos” padecentes de uma crucificação viral que atomizou o mundo, orgulhando em muito sua antecedência genealógica.

Eles já são vitoriosos pela militância inauguradora de uma nova ordem de defesa da vida, edificadores de uma nova moral filosófica que derrota a “modernidade líquida” de Bauman, a ressignificar palavras que estavam em desuso, como fraternidade, alteridade, caridade e amor ao próximo.

Esses jovens fazem antítese a uma medicina negocial, exploradora e financista, que graças a Deus – e a eles – necrosou.

É por minha sobrinha Isadora Araújo, os irmãos Iago e Iuri Estrela, os também irmãos Matheus e Gabriel Silveira, por Emanuel Nobre, por Hélio Silva, Arthur Diógenes e milhares de outros jovens médicos que estão destemidamente no campo de batalha, que elevo a minha prece a Deus.

São eles arautos da nossa esperança de um mundo melhor, mais justo e humano.

E que seja sem doenças!

Marcos Araújo é professor e advogado

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Na tentativa de desqualificar as teses sociológicas estudos de polonês Zigmunt Baumman, o Douto articulista e advogado Marcos Araújo, da voltas e mais voltas usando de maneira absolutamente tendenciosa e deliberada, exemplos particulares, extemporâneos e individuais quando da suposta tendência humana à solidariedade, quando em verdade, estamos vivenciando um tempo de excepcionalidades.

    Nesse contexto, respeitosamente indago, afinal os médicos e demais profissionais, sobretudo os que estão afetos à questão da assistência médico hospitalar, estariam sendo solidários ou por uma questão do chamado egoismo particular que leva à sobrevivência da espécie, cumprindo seu ofício num momento em que a raça humana corre e (ou) correria sério risco de extinção…!!!???

    Quando de atenta analise do nosso tradicional e imperativo modo de vida ocidental, de fato, em tempos ditos normais, ´não é a solidariedade, e sim, a famosa lupa do individualismo à qualquer preço que impera. O fato é que a imagem do cidadão com celular na mão e fone de ouvido é primeva, absolutamente isolado do mundo e das pessoas que estão á sua volta. Isso, nos da uma breve idéia e noção de que não nos reocupamos com outro e que, cada um resolve suas coisas à seu modo. Diferente de uma tribo indígena, por exemplo, em que as funções são coletivas e todos colaboram pra o funcionamento daquela comunidade.

    Então , seria o CORONAVIRUS o guru dos novos tempos…!!!???

    Eu, particularmente não acredito, haja vista a especie humana ao longo da história já ter atravessado situações semelhantes e (ou) até mais catastróficas e intimidatórias do ponto de vista do risco de extinção da própria especie, sem que, logo após volta à dita normalidade, os imperativos do individualismo cego, e, portanto da exclusão social, não se sobrepujassem sobre os interesses de ordem coletiva…!!!

    Voltando ao bem escrito artigo do articulista e advogado Marcos Araújo, entendo que não basta ardilosa e talentosamente usarmos artifícios como o da dialética da negação de fatos e acontecimentos coletivos, quando na verdade a lupa imbricada lupa do individualismo cego que permeia as relações em sociedade no mundo ocidental, infelizmente ainda permanecem latentes em corações e mentes. Mais ainda, quando nessa direção sempre houve a imposição do Status Quo, quando da ideia de transformar exceção em regra.

    Um baraço

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  2. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Prof. Marcos Araújo. Brilhante Artigo que nos renova a fé na humanidade, através dos jovens médicos no front, sem a cerimônia de colação de grau, chamados, precocemente, à batalha e comparecendo com coragem e disciplina. São mártires nessa luta, os jovens e os mais velhos, vulneráveis, e todos os profissionais da saúde que arriscam suas vidas pelas nossas. Trazem em si, Florence, Albert e Raoul.

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