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domingo - 17/10/2021 - 04:00h

Gudãozinho

Por Marcos Ferreira

Como se alguém houvesse perguntado, informo que hoje levantei cedo. Coisa esta, aliás, que se transformou em rotina. Portanto, a exemplo de outras vezes, acordei antes das cinco. Para ser mais preciso, fui desperto. Sim. Minha mimosa gata Gudãozinho, que ainda não completou um ano de vida, foi quem me acordou. Ela, Gudãozinho, é a pessoa que acorda mais cedo aqui em casa, sendo também necessário dizer que só nós dois habitamos entre estas paredes velhas.gatinho, gato branco, felino, animal

Pois é, eu a chamo de pessoa. Tem mais personalidade do que certos indivíduos que conheço. Gudãozinho dorme dentro de casa há um bom tempo, desde a noite em que um gato grandalhão e vira-lata tentou dominá-la, cheio de segundas intenções. A gatinha nem chegou ao primeiro cio. Estou me programando, juntamente com Natália, para realizarmos o procedimento de castração.

Todos os dias, logo que os passarinhos iniciam o seu trinado na mangueira da residência aos fundos, a felina salta para dentro da minha rede e não sossega (espezinhando sobre mim) enquanto não lhe abro a porta da cozinha. Ela vai brincar no quintal, eu geralmente volto para a rede, a fim de retomar o sono interrompido, porém daí a pouco Gudãozinho vem me cutucar. Já amanhece elétrica e a essa hora, sem dó nem piedade, espera que eu tome parte nas brincadeiras dela.

Dei-lhe esse nome (lembro de já ter explicado isso) por ela ser felpuda e branquinha como algodão, extraindo desta palavra a corruptela Gudãozinho. Apareceu-me certa manhã, quando abri o portão, como também relatei em crônica de há dois ou três meses, em lastimável estado de desnutrição, só pele e ossos, às vascas da morte. Não conseguia sequer se manter de pé para comer.

Não tive coragem de deixá-la na rua. Compreendi que talvez não sobrevivesse nem mais um dia naquelas condições. Resgatei-a daquela situação miserável e a trouxe para dentro, imaginando que estava praticando uma boa ação, uma caridade. Eu não fazia ideia do quanto ela me retribuiria em tão pouco tempo. De repente, não mais do que de repente, como no soneto de Vinícius de Moraes, eu não mais me sentiria tão sozinho neste meu cotidiano de homem recluso.

Comprei-lhe ração, ofereci-lhe um teto, água geladinha e carinho às pampas; levei-a ao veterinário com o apoio de Natália. O médico aplicou-lhe vacinas, fez um hemograma, detectou uma infecção, prescreveu remédios. Hoje Gudãozinho está aqui lépida e fagueira, esbanjando saúde e vendendo beleza. É ótimo vê-la brincando pela casa e quintal, ronronando e me tirando a pagode.

Quando menos espero, lá vem ela com uma lagartixa na boca, espécie de troféu, segundo li em algum lugar, para oferecer ao seu tutor. Fico arrepiado, tenho nojo a esses répteis, entretanto pego a presa e a devolvo à natureza. Gudãozinho não mata esses bichinhos, somente os captura e os traz para me mostrar, orgulhosa da sua façanha. Outro dia, para meu assombro, entrou pela porta da cozinha arrastando uma iguana de bom tamanho, três vezes maior que uma lagartixa.

Depois de treze anos morando absolutamente só, tendo por companhia apenas a escrita e uma estante com livros, Gudãozinho surge e enche este modesto lar de encanto, graça e alegria. Quando não está tirando suas sonecas no início da tarde, passa boa parte do tempo conversando comigo, correndo de um lado para o outro, tocando o terror nas lagartixas e passarinhos que pisam no quintal.

Eu, todo bobo, vez por outra chamo por ela: “Cadê você, Gudãozinho?!” Segundos depois, conhecedora do próprio nome, ela vem me atender toda graciosa, a cauda muito felpuda para cima, apontando em minha direção como um para-raios. Roça nas minhas pernas, ameaça mordiscar meus tornozelos, brincalhona. Bebe pouco, mas vai de instante em instante à panelinha da ração. Creio que não estou exagerando ao dizer que ela dobrou de peso ao longo destes meses.

Desde que Gudãozinho dorme dentro de casa, portanto, acordo no horário dos passarinhos. Isso, mais que a quetiapina, me tem feito dormir bem cedo. Por volta das nove e meia os meus olhos já estão piongos de sono. Hoje foi um desses dias em que fui acordado cedinho, o dia mal havia surgido. Preparei a cafeteira, fiz minhas abluções, e antes das seis comecei a escrever esta crônica.

E por que não fecha a porta do quarto? O prezado leitor e a gentil leitora podem indagar. Respondo: simplesmente porque meu quarto não tem porta. Os cupins comeram, assim como devoraram a cama, o guarda-roupa, um armário, um bocado de livros e agora seguem roendo o móvel sobre o qual está a minha televisão. Então, senhoras e senhores, durmo mesmo de rede, que armo aqui na sala, diante do televisor. Vez por outra assisto a um filmezinho. Adoro cinema.

— Não é, Gudãozinho? — ela assente.

Quanto aos cupins, estou em desvantagem numérica. Combato um foco dos insetos aqui, surge outro acolá. Essa luta inglória se arrasta há anos. Estão em toda parte, embaixo do chão e no madeiramento. Gudãozinho, que botou ordem na superpopulação de lagartixas, nada pode fazer contra esses devoradores de madeira. Aqui, felizmente, não há ratos nem baratas. Cupins, entretanto…

Penso em outros bichinhos, sobretudo nos cães e gatos, que a esta hora estão por aí abandonados, rifados nas ruas, passando fome e sede, à espera de alguém que os adote. Poucas pessoas, infelizmente, dão importância a esses animais em situação de risco. Não me admira. Muitos sequer se importam com os mais de duzentos e vinte mil seres humanos que vivem atualmente nas ruas deste país. Famílias inteiras vivendo nas calçadas, sob marquises e toldos, pontes e viadutos.

Gudãozinho teve sorte de topar comigo, que tenho um coração de manteiga. Outro talvez a tivesse repelido. Também dei sorte em topar com Gudãozinho. Outro gato, em situação favorável, teria fugido de mim, e hoje eu estaria sem usufruir do bem que essa companhia de quatro patinhas me proporciona. Tanto Natália quanto o Dr. Dirceu Lopes (meu psiquiatra) aprovam tal convivência.

Lá vem Gudãozinho com outra lagartixa!

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Sayonara Amorim diz:

    Marcos, não tem jeito. Quando você não arranca lágrimas, nos faz rir. As suas crônicas de domingo passaram a fazer parte da minha rotina juntamente com o meu café da manhã. Ler você, logo cedinho, é garantia de renovação de emoções boas. Portanto, nem ouse pensar em parar de fornecer esse ingrediente para o meu café de domingo.

  2. Amorim diz:

    Ser HUMANO de uma sensibilidade a toda prova, sim Marcos Ferreira, acordei agora e logo fui em busca de sua crônica. Ainda deitado escrevo. Meu Deus! Como o mundo é carente de tais pessoas. Fluente no vernáculo, excepcional em nos levar emoção. Coração aberto.
    Semana passada foi a Natália, hoje Gudãozinho.
    Um abraçaço Amigo extensivo à Natália.
    Muito obrigado!
    Ps. Cadê o livro?

  3. Genecy diz:

    Bela crônica! Realmente cães e gatos são os nossos amigos mais fiéis e deveriam sempre serem tratados com carinho.
    Um bom domingo!

  4. Raniele Alves diz:

    Marcos !
    Assim como você também fui escolhido por um gato e não tem nada melhor do que a companhia dos animais, nos dão muito amor e carinho e são muito fofos e fiéis, já tenho até a impressão que gosto mais dos bichinhos do que dos humanos.

  5. Bianca Ferreira diz:

    Gudãozinho como sempre encantadora rsrs

  6. Aluísio Barros de Oliveira diz:

    Gudãozinho deve ser amiga quase-irmã (AQI) de Mr. Frodo, o meu felino q ganhei da amiga querida Fábia de Flávio Gurgel (inesquecíveis pastéis se comia na lanchonete de Flávio, no oitão da Rádio Rural, sempre cheia de interioranos que vinham espiar os astros da Rural e também de escolares zanzando pelo Centro, em gazeamento de aulas). Pois bem, Mr. Frodo me apoquenta o juízo nesses mesmos horários. Ainda ontem, encontrei morta a rolinha q estava se aninhando nas vizinhança do bogari. Ele mata. Põe tudo no tapete de boas vindas da porta da frente, q é pra eu ver. Não pega um rato! Fico louco. O pobre do ninho vazio. Mas, assim como Algodãozinho, tem sido a minha companhia nesses tempos pandêmicos. Deixo entrar no quarto, não. A rinite não permite tantos pelos persas.
    Bela crônica, Marcos Ferreira. Seguir o q Baudelaire nos deixou como lição: “Seja sempre um poeta, mesmo em prosa.” Que a manhã se faça balão. Bonjour. Ça vá!

  7. Zilene Medeiros diz:

    Incrível a capacidade de escrever do amigo Marcos Ferreira. De um jogo de letras, escreve palavras, constroe frases, revela atitudes, expressa sentimentos, publica uma crônica. E faz nascer o hábito da leitura como compensação … Obrigada!

  8. Francisco Amaral CAMPINA diz:

    Bom dia,
    O importante e ser feliz, parabéns.

  9. João Bezerra de Castro diz:

    Gudãozinho, crônica repleta de amor, ternura e humildade, é a prova de que a bondade e a maldade são sentimentos universais.
    Esse fato de acolher um animal indefeso num ponto qualquer de Mossoró certamente já ocorreu e continuará ocorrendo em outros recantos deste Planeta redondo.
    Muitos se veem representados nesse belíssimo exemplo e gostariam de compartilhar.
    Porém, a arte de escrever bem, lamentavelmente, é um dom acessível a poucos.
    Parabéns, Marcos Ferreira!

  10. Simone Martins de Souza Quinane diz:

    Bom dia, caro amigo!
    Suas crônicas têm o mesmo efeito do café: viciam; mas é um vicio bom, que mexe com nossos sentimentos porque transbordam sensibilidade.
    É incrível o que esses seres de quatro patas fazem para chamar nossa atenção, meu cão Hulk (não gosto do nome, mas já me foi legado com ele), um Husky Siberiano, teima em carregar tudo que está na bancada da pia do banheiro, ontem levou minha escova e o creme dental. É muito carinhoso, um grande amigo!
    Além de ser uma leitura saborosa porque, meu escritor preferido, você brinca com as palavras, suas crônicas têm o poder mexer com nossos sentimentos e com nossa sensibilidade!
    Amei! Beijos!

  11. Luiza Maria Freire de Medeiros diz:

    Considero o ato de adotar um dos mais humano. Admiro que adota um filho… ou, como minha irma que adotou a mae de uma amiga falecida que ficou sem filhos. Adotar é amar por querer. Sua gatinha Gudaozinho retribui o amor que recebe você . O mundo precisa de pessoas assim. Somos muito carente de atos como esse que você tão maravilhosamente descreve. Obrigada, mais uma vez por tão bela crônica
    Te admiro, poeta!

  12. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    Caro Marcos, sua sensibilidade e maestria no ato de escrever, revela-nos, também, que os animais..Lato Sensu são imprescindíveis, especialmente ao equilíbrio EXISTENCIAL e psico-emocional dos chamados gregários homo sapiens, bem como da própria sustentabilidade ambiental, atualmente tão ignorada e torpedeada por este governo mequetrefe e GENOCIDA.

    A propósito Marcos, tenho o meu gudãozinho que atende pelo nome BOTAFOGO ( TODO PRETINHO COM UMA MANCHA NO PEITO…MAIS PARECENDO UMA ESTRELA SOLITÁRIA).

    Chegou ao habitat atual (MEU ESCRITÓRIO) em situação relativamente análoga ao seu gudãozinho!

    Como sabemos, os ditos humanos em sua pretensão e BOÇALIDADE sem limites, acham que ensinam aos animais, quando na verdade, ao fim e ao cabo, eles que nos ensinam o verdadeiro caminho da simplicidade e humanidade por todos nós buscada…!!!

    Um baraço
    FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO
    OAB/RN. 7318

  13. Rocha Neto diz:

    Aí de nós os humanos se não existissem um Guãozinho em nossas vidas, até mesmo os cupins que tanto nos infeza pela maneira agressiva para alimentar-se daquilo que nos pertence no lar aonde vivemos, nos é util, pois preenche nosso tempo nos tornando operante diante a tarefa de defeza, veja que um pequeno inseto nos torna capaz de ser um predador também, só que os cupins não nos ver como tal, pois são tão minúsculos que se acham que são invisíveis e que tudo pode dentro de sua capacidade de desafiar o homem. Parece ser cômico, mais é verdade!
    Com relação ao amigo Dirceu Lopes (grande profissional) e a magnifica Natália, amigo Marcos Ferreira, eles estão com toda razão e certíssimos com relação ao Gudãozinho, pois não existe terapia melhor neste mundo, que saber interagir com os animais, pois deles recebemos tratamos e comportamentos verdadeiros, muito, mais muito diferentes mesmo dos que são oriundos dos nossos semelhantes que compõem o universo humano.
    Parabéns pelo presente de hoje. Inté o próximo.

  14. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Fiquei aqui matutando sobre, confesso que deixei de lado todas as outras coisas, os cupins. Realmente, eles são terríveis, comem até o cimento das paredes. E como um Brás Cubas da vida pensei: será que o seu psiquiatra lhe recomendaria um Tamanduá como possível solução (e companhia para Gudãozinho) para esse inimigo de longas primaveras? Um continuaria “a limpa” do quintal – exterminando lagartixas e pardais -, o outro, com sua língua “afiada” e gosmenta, os cupins. Fico na dúvida: quem lhe acordaria mais cedo? kkkkkkkkkkk. Meu amigo, brincadeiras à parte, sua crônica semanal mostra o ser humano caridoso que é. A caridade se torna presente quando você adota o animal e a fé se instala a partir do momento em que, fazendo a caridade, o bem retorna em forma de companhia e ensinamentos. Parabéns. Mais uma crônica que nos leva a refletir sobre essas particularidades que nem sempre perdemos tempo para tentar compreendê-las. Ah, o Tamanduá tem um concorrente: as formigas. Mas, acho, trocar o Tamanduá por formigas não é bom negócio. Aliás, não é bom negócio “adotar” um Tamanduá, mesmo que a situação exija um especialista no assunto.

  15. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Linda sensibilidade. Nossa cultura urbana exclui tudo que não seja relacionado ao valor monetário, bicho, árvore, natureza, até gente que sistematicamente é impedida do acesso ao dinheiro, como negros e povos nativos que chamamos erroneamente índios. No seu caso, até aos cupins tem guarida, é um São Francisco das Letras. Abração.

  16. Vanda Maria Jacinto diz:

    Olá, Marcos!
    Boa noite!

    Deliciosa crônica!
    A Gudaozinho tem a sorte do seu convívio…
    Nada mais interessante do que os nossos animaizinhos de estimação! Aprontam cada uma, que parece mentira!
    Abraços
    Aos dois… rsrsrsrs

  17. Rizeuda da silva diz:

    Olá, querido Marcos!

    Os animais são seres tão pequeninos, mas grandiosos em amor, ensinamentos e fidelidade. Tudo o que eles precisam, é de alguém que os amem. Simples assim! Eu adotei meu Thor (cachorro) bem pequeno e com o tempo tive que fazer muitas adaptações, mas valeu a pena pelo companheiro que se tornou. Fui lendo sua crônica e desenhando na minha mente, cada situação descrita por você. Uma paixão sem limites foi surgindo por gudãozinho, além de um forte respeito e carinho, pelo ser especial que lhe deu abrigo. Domingo é dia de saudade, preenchido pelas horas de leitura dos seus textos. Degusto cada uma das suas crônicas, como quem sorve um gole de café quentinho. Parabéns, menino! Amo a sua arte na escrita…
    Receba meu carinho e o abraço aqui do Norte. Sucesso!

  18. Airton Cilon diz:

    Eu sempre gostei de gatos, e hoje, tenho três gatos, e para mim, são como filhos… Eles tornam o ambiente leve É divertido. Gudaozinha é cheia de amor e gratidão para com o seu tutor, ou pai! Abraços

  19. Mário Gaudêncio diz:

    Essa Crônica prova que as coisas mais belas da vida estão na simplicidade. Abraço.

  20. Klécia diz:

    Holla. Realmente o fato de realizar uma adoção, seja a outro indivíduo ou a animais, é um ato muito bonito, a mim denota misericórdia, que nós humanos esquecemos até mesmo, as vezes, ter; e generosidade se revela nisso e nasce um elo magico entre os dois seres atuantes desta ação, sendo genuína. Eu, quando li o titulo da cronica nao tive ideia menor que fosse de o que de ela se tratava. Amo animais domesticos. Sobretudos os gatos por ja ter podido experiementar a convivência, e foi linda, com uns deles. Gudaozinho tem meu carinho distante.

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