Por Marcos Araújo
Sérgio Sampaio era um compositor conterrâneo de Roberto Carlos (de Cachoeiro do Itapemirim-ES), conhecido pelo seu temperamento forte e arredio, tendo recebido o apelido no meio musical de “Maldito”, dado ao seu jeito insurreto de oposição a qualquer tipo de disciplina ou ordem social. Embora tivesse um lastro cabedal musical, as gravadoras não lhe davam oportunidade.
Vítima da maledicência permanente dos colegas músicos, revolveu escrever uma canção (“Eu quero é botar o meu bloco na rua”), onde ele relata a sua indiferença à boataria, aludindo o seu desejo apenas de viver. A música ficou famosa após sua apresentação no Festival Internacional da Canção do Rio, em 1972.
Para os que não conhecem a letra, a canção registra a desvalia e o desdém que o cantor era submetido (“Há quem diga que eu não sei de nada, Que eu não sou de nada e não peço desculpas, Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira, e que Durango Kid quase me pegou …”). Embora não tenha vencido o festival, a composição virou marchinha e passou a ser executada em muitos carnavais…
Aproveitando o fim da folia momesca e sob os auspícios de Sérgio Sampaio, e tomando por empréstimo esse tempo propício em que se inicia a Quaresma, período no qual somos chamados a uma penitência em relação aos nossos sentidos e vícios humanos, a nós mossoroenses, uma boa sugestão de penitência quaresmal seria a da “língua” (conter a fala).
É que, além do sal, da fruticultura e do calcáreo, um dos nossos produtos mais genuínos nos últimos dias tem sido a fofoca, o boato. Para empregar um termo da moda, as fake News… Não há um só dia, neste abrasivo sol mossoroense, que uma vivalma não queira introduzir um fato negativo (e falso!) sobre um citadino.
Os boatos não são novidades na história da humanidade. Desde a Antiguidade, verdade e mentira se misturaram muitíssimas vezes, e essas realidades falsas influenciaram nosso presente. O grande historiador francês Paul Veyne bem definiu essa fusão entre verdade-mentida histórica em seu ensaio “Os Gregos Acreditavam em Seus Mitos?” (Unesp): “Os homens não encontram a verdade, a constroem, como constroem sua história”.
Alguns exemplos do uso maléfico do boato…
No ano 64 da era cristã, a cidade de Roma foi incendiada. Pelas provas históricas, não há uma autoria determinada. A plebe, aproveitando a alta rejeição do Imperador Nero, difundiu o boato de que o autor teria sido ele. Se não fora ele, teria cometido a aberração bárbara de se deleitar com o fato, compondo uma ode às chamas devoradoras. Como defesa, Nero lançou mão do recurso do contraboato, fazendo circular a notícia de que os cristãos haviam ateado fogo à cidade. E aos coitados dos cristãos, transformados em vítimas expiatórias, foi devotada a fúria da plebe, que esqueceu por um momento a hostilidade em relação ao Imperador.
Um boato mandou Sócrates à morte, acusado de perverter os jovens de Atenas e incitá-los à rebelião. Durante a Idade Média, as guerras religiosas, as inquisições, as cruzadas, eram sustentadas recorrendo-se a relatos exagerados, a milagres, feitiçarias e pilhagens.
A difusão e propagação da mentira encontrou abrigo nos meios de comunicação de cada época. É muito significativa, nesse sentido, uma cena de “Um Estudo em Vermelho”, o primeiro romance de Sherlock Holmes, publicado em 1887, em que o detetive e Watson repassam os diferentes jornais – The Daily Telegraph, Daily News, Standard – e todos contam uma versão falsa do crime que estão investigando, impulsionada por motivos políticos: uns culpam os europeus, outros os estrangeiros, ou os liberais. Nenhum cita uma pista confiável. No momento, os boatos de Mossoró, são replicados com redobrado exagero por um blog regional.
A propaganda falsa e os boatos servem como elementos de guerra. Diz um velho ditado que na guerra, a primeira vítima é a verdade. O mais correto talvez fosse dizer que a verdade é vítima recorrente em qualquer sociedade organizada.
Marc Léopold Bloch, um famoso historiador francês, assassinado pelos nazistas em 1944, sobrevivente da Primeira Guerra Mundial e um vivaz expectador do “teatro de mentiras” montado na guerra em que participou, demonstrou profunda preocupação com a eficácia e a propagação das notícias falsas em uma guerra. Seu pequeno texto de 1921 (Réflexions d’Un Historien Sur les Fausses Nouvelles de la Guerre – “reflexões de um historiador sobre a notícias falsas das guerra”), serviriam muito bem para orientar a sociedade sobre o que estão fazendo neste momento a Rússia e a Ucrânia, na produção de boatos, com seus aliados paralelos (China, de um lado, Estados Unidos do outro…).
Dizia ele nesse texto: “As notícias falsas mobilizaram as massas. As notícias falsas, em todas as suas formas, encheram a vida da humanidade. Como nascem? De que elementos extraem sua substância? Como se propagam e crescem?”
O século XX e o que já vivemos do XXI são a era das mentiras em massa. Três dos grandes conflitos em que os Estados Unidos se meteram neste período começaram com invenções: a guerra de Cuba (1898), com a manipulação dos jornais; a guerra do Vietnã (1955-1975), com o incidente do golfo de Tonkin, e a invasão do Iraque de 2003, com as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein.
As matanças maciças promovidas totalitaristas no Século XX colocaram como biombo histórico notícias falsas. As ditaduras nazista e soviética não só fabricaram falsidades tremendas como também foram capazes de construir outra realidade, em que o verdadeiro e o falso eram elementos acessórios. Enquanto Stálin assassinava e deportava milhões de pessoas, a bondade do socialismo se mantinha como um dogma em grandes setores do Ocidente.
Estamos em vias de uma terceira guerra mundial, de resultados imprevisíveis dado o grau de indigência mental dos atores bélicos envolvidos. Milhões de pessoas estão neste momento passando fome. A falência econômica de nações e empresas, causa da maior onda de desemprego mundial, deveria alarmar ao mais incauto dos viventes. Teremos uma crise internacional por escassez de alimentos; catástrofes ambientais assolam diversas regiões do Brasil e do planeta, comprometendo moradia, a vida, o abastecimento e o consumo de água potável para centenas de milhões de pessoas…
Em que pese a gravosidade deste cenário nacional e mundial (e que nos toca profundamente!), como na canção de Zé Geraldo (“tudo isto acontecendo e eu aqui na praça, dando milho aos pombos”), continuamos imersos diariamente na mais intensa produção da fofoca e da fake News. Mudamos às vezes apenas os personagens e o cenário, mas o enredo e a criação são os mesmos. Transparece ser prazerosa a calúnia. Rossini, na ária “Calúnia”, da ópera “O Barbeiro de Sevilha”, bem escreve esse deleite: “… é uma brisa madrugadora, uma brisa muito suave, que entorpece, sutil, leve, docemente, começa, começa a sussurrar…” – “… è an venticello, un’auretta assai gentile, che insensibile, sottile , leggermente, dolcemente, incomincia, incominicia a susurrar…” – Da ária La Callunnia de II Barbiere di Siviglia de ROSSINI.
Por fim, que esta Quarentena religiosa – chamada Quaresma – sirva de penitência para a contenção da palavra que distorce, estropia e maltrata. Que nossas atitudes e nossas ações criadoras sejam somente voltadas para a disseminação do amor e da paz!
Feliz quaresma a todos nós!
Marcos Araújo é advogado e professor da Uern
Excelente artigo, Dr Marcos. Precisamos refletir sobre essa atitude de querer dizer (e prazer em desejar) ao próximo àquilo que, para nós, não nos interessa que seja dito. E até acho que a fofoca vem precedida de uma outra coisa: a insinuação. Que nessa Quaresma façamos abstinência da língua e que nossos olhos retratem apenas o que viram, sem ficarem supondo.
Lembro-me bem do caso da Escola Base, de São Paulo. O repórter Walmir Salaro, da Globo, à época, o maior responsável pela sucessão de erros, de mentiras, de disseminação de fakes. O resultado todo mundo sabe. Relembro, para mostrar o quanto é perigoso, dizer algo sem apurar os fatos.
Texto perfeito! Uma realidade!