A herança jurídico-cultural legada à América latina por Portugal e Espanha, indiscutivelmente, priorizou, ou privilegiou, uma minoria dominante em cada época distinta de sua formação. As coroas Ibéricas figurando como marco superior de dominação e poder sobre a possessão, estratificando-se, com a divisão de cada modelo de exploração, sempre considerou o clientelismo, notadamente se imiscuindo na intrincada e necessária burocratização administrativa para se manter detentora dos privilégios. É o que Pierre Bourdieu denomina de capital cultural.
A invasão, a colonização e posterior libertação, ou a independência, sempre observaram o eurocentrismo, vindicada nos primeiros momentos no poder eclesiástico, taxando o próprio estado natural em que se encontravam os povos ameríndios como razão para as atitudes e práticas utilizadas no intento invasor; o discurso da inferioridade, de forma a legitimar todo o processo expropriatório.
Isso, sem dívida, acabou por refletir definitivamente no pensamento jurídico da América Latina, permanecendo pulsante mesmo após a independência e na consolidação das repúblicas.
Muito embora em alguns momentos, por insurgência de alguns dos próprios atores do processo, especialmente naquele momento histórico, visando interromper, ou mesmo minimizar, os efeitos danosos do processo da conquista (escravidão e extermínio gratuito) em vista da contrarreforma amparada no Direito Natural teológico.
Não obstante a tal cenário, mesmo após a independência das colônias da América Latina, pouco foi o reflexo no movimento literário na garantia de direitos de classes não minoritárias desconexas do poder.
Em verdade, houve apenas uma reestruturação do mesmo, posto que mantiveram-se todos os demais aspectos relacionados à economia, sociedade e política anteriormente instaladas, uma vez que as novas assertivas ideológicas, quando instaladas, inclinaram-se vertiginosamente em direção às antigas, de forma que houve uma apenas compatibilização delas.
Diante disso, fervilhou em meados do Século XIX a discussão acerca da necessidade de uma filosofia voltada e oriunda do latino-americano, amparada no positivismo oficial, isso porque o contexto social deve ser considerado como fonte fundamental para a formação do sistema jurídico de cada sociedade.
Entretanto, as novas ideias ainda estavam enraizadas no eurocentrismo, o que refletia no campo acadêmico e político do Século XIX, onde a emancipação social figurava apenas no discurso. Isso, refletindo, inclusive, na formação do controle social e do processo de constitucionalização. Foram observados, para tanto, as Cartas há pouco editadas, sendo a positivação moderna de codificação do Direito Privado ibero-americano modelado pelo ideário individualista, o qual somente foi superado no Brasil com a constitucionalização dos direitos fundamentais.
Tudo isso refletiu na formação da cultura jurídica que pautou-se pela centralização e controle burocrático oficial, propiciando o clientelismo por tanto tempo e perpetuando o cunho excludente das massas, pouco alterando-se no Século XX em relação às tradições teóricas, que continuam sendo elementos de segregação do saber, agora se utilizando de produção científica para emprestar autoridade e legitimar os argumentos.
Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor
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