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domingo - 21/07/2024 - 08:44h

Inventação

Por Bruno Ernesto

São João batista de La Salle dando aula, de Cesare Mariani (Foto: Bruno Ernesto no Museu do Vaticano)

São João batista de La Salle dando aula, de Cesare Mariani (Foto: Bruno Ernesto no Museu do Vaticano)

Outro dia compartilhei um vídeo bem-humorado no qual um senhor, na casa dos seus cinquenta anos, nominava vários objetos de forma errada, mas que era plenamente compreensível e mais agradável de se escutar, embora erradas.

Vassoura era bassôra; espelho era ispêi; tábua era táuba; fósforo era fósco; raio x era raúlxis; máscara era mascra; celular era cerular; ferrolho era ferrôi; álcool em gel era auquingel; umbigo era imbigo; botijão era bujão.

Quem nunca escutou tais palavras?

Se você puxar pela memória, talvez até você já tenha dito. Se não essas, outras. Será que não?

Sim, concordo que há situações que são engraçadas.

Certa vez, estava num shopping center aguardando minha vez para subir pela escada rolante, quando escutei uma senhora falando ao meu lado para outra:

– Fulana, isso aqui é tal da escada volante. Bora subir!

Obviamente que todos ali olharam para ela deram um sorrisinho de canto de boca.

Quem as viu atentamente, entretanto, pode perceber que se tratava de duas senhoras simples, e que talvez fosse a primeira vez que eles tenham ido ao shopping center. Talvez até numa capital.

Embora pareça engraçado, infelizmente isso reflete a precariedade do ensino no Brasil, e que parece muito distante de uma solução, uma vez que a educação enfrenta diversos obstáculos, tais como alta evasão escolar, escassez de professores, escolas precárias e o desinteresse dos alunos em idade escolar.

Ora, até mesmo para aqueles que têm condições financeiras de custear o ensino, não há garantia de efetividade no aprendizado e continuidade dele ao longo da vida, uma vez que se não houver interesse do aluno, além de um ambiente propício e adequado para despertar e manter o seu interesse pelo aprendizado e leitura, dificilmente haverá, por exemplo, o hábito da leitura após a conclusão do ensino regular, pois a escola é uma peça que compõe toda uma engrenagem.

Claro que a língua falada, de fato, na esmagadora parte de nossos diálogos, não precisa de tanta formalidade. Ao contrário da escrita, que exige formalidade e observância do vernáculo.

Entretanto, até na escrita, deve-se ponderar a formalidade em excesso.

Para se ter uma ideia da problemática que é uso exagerado da formalidade na escrita, até o Judiciário, palco das maiores formalidades que um ser vivente pode ter pleno e amplo acesso, tanto na fala quanto na escrita, nos últimos anos tem encabeçado uma ferrenha batalha contra o uso exagerado da linguagem exageradamente difícil e rebuscada de todos os atores do processo, pois o mais importante são a clareza e a simplicidade do texto.

Há quem pense – com convicção – que passará a impressão de que é uma pessoa altamente qualificada e erudita se utilizar palavras difíceis, rebuscadas, expressões latinas, estrangeirismos, além de certos termos e expressões de tempos imemoriais, que até La Salle – o famoso santo educador  do século XVII – teria dificuldade em compreender. Para mim, não passa de um tudólogo.

Para uns, até pode parecer. Entretanto, para a grande maioria, passará a impressão de que parou no tempo, é medonho, caricato e beira o ridículo, pois não atinge a finalidade da comunicação, que é transmitir a mensagem de forma clara e plenamente compreensível.

O que importa, é fazer-se entender, pois a única certeza que temos é saber o que falamos, e não o que o outro compreendeu.

Para se ter uma exata dimensão desse terrível hábito de algumas pessoas, transcrevo abaixo uma reportagem publicada na revista Veja, de 29 de julho de 1998, página 38, que li aos dezessete anos e jamais esqueci:

“Conspícuo diretor: abroquelado em extrema necessidade, epigrafando direito irremovível na ritualidade e sem quiproquó de pergaminho autorizativo, solicito liberação do título cheque, supedâneo da documentação anexa.

Aristóteles Ferreira, secretário jurídico do município de Jaboatão dos Guararapes (PE), em ofício ao secretário das Finanças.”

Além de engraçado, até hoje me pergunto qual foi a resposta e se o cheque tinha fundos.

Dessa forma, há situações nas quais falar de forma simples é muito mais adequado e eficiente, afinal, hoje em dia, ninguém tem mais paciência para textos enfadonhos; ricos em erudição e pobres em conteúdo, daqueles que até os filólogos torceriam o nariz.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Larissa diz:

    Adorei o texto! Parabéns!

  2. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Concordo, Bruno. É claro que a palavra escrita deve ter o seu padrão na norma culta. Entretanto, falar é, na minha opinião, livre desse protocolo. Acredito que o importante é estabelecer uma comunicação e, dela, conseguir êxito. Assim, essa questão do analfabeto funcional passa a ser um mero detalhe, desde que ele consiga ir e vir, entender e fazer-se entendido. Porém, evidente que sim, somos um país onde a Educação ainda aplica modelos metodológicos considerados ultrapassados, criando um abismo enorme, inclusive, em determinadas regiões do nosso país. E é diante dessa desigualdade entre o simples e o “letrado” que ocorre os absurdos da dialética. Parabéns pela crônica.

    • Bruno Ernesto Clemente diz:

      Concordo plenamente com você, Raí. É impressionante com ainda há pessoas que insistem em complicar a comunicação. De fato, os desafios da educação ainda são enormes. Não só aqui no Brasil. Escrever de modo fácil e acessível, não significa escrever sem observância da norma culta. Não. Agora, tem gente que quer parecer tão culto e erudito, que, nem ele próprio, sabe o que escreve. Se me permite, quero destacar, que você é um exemplo de um excelente escritor. Seus textos são claros e escritos de uma forma bastante fluida. Dá gosto de ler seus textos pois são extremamente claros e cativantes. Um forte abraço!

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