domingo - 23/02/2025 - 11:16h

Lourdinha

Por Bruno Ernesto

Mercado da Cobal em Mossoró Foto: do autor da crônica/2025)

“Mercado da Cobal” em Mossoró (Foto do autor da crônica/2025)

Embora nos últimos tempos tenha se mostrado uma forma de ostentação involuntária para a maior parte da população, ir ao supermercado ainda é umas das coisas das quais sempre gostei de fazer, nem que seja para aplacar o calor com o ar condicionado e passar o tempo, se for preciso.

Dia desses, após descer do Uber – aos gritos -, uma passageira caiu desfalecida bem na porta do condomínio.

Foi perturbador; um desespero para quem presenciou aquela cena. O porteiro chamou o SAMU e avisou ao síndico.

Alguém gritou que tinha visto quando o Uber, mesmo vendo os acenos e gritos a plenos pulmões daquela passageira, e sabedor que seria rastreado pelo próprio aplicativo, arrancou em direção ignorada.

Coitada, aos prantos, a pobre mulher falou ao socorrista que esqueceu no banco do carro a sacola com dois pacotes de café que acabara de comprar no supermercado.

– Moço, era da nespresso!

A internet não perdoa. Memes e vídeos humorísticos sempre arrancam as maiores gaitadas do público.

Entretanto, pelo menos em Mossoró, nada melhor do que ir ao mercado da Cobal. Preferencialmente, o mais cedo possível. Tem coisas que a xepa não compensa.

Aquele furdunço de gente, os cheiros, as cores, os sons e os personagens são instigadores.

Tem de tudo. Mas prefiro os doidos e os vendedores sem paciência. Nada como perguntar repetidamente a um vendedor carrancudo, quase como numa maiêutica socrática, e, ao final, dizer que está caro ou pedir desconto.

Bem, antes que você ache que é brincadeira, relembre a estória acima. Não se pode esquecer mais nem um moi de coentro ou cebolinha no Uber. Tudo está não só pela hora da morte; mas também da missa, do enterro e da ressurreição.

Ah, claro! O estacionamento é terrível.

Tem vendedor que não faz muita questão de lhe vender. Se você pedir desconto, é capaz de apanhar.

Passei um bom tempo sem ir regularmente ao mercado da Cobal, além do que nem sou frequentador assíduo, a ponto de conhecer nominalmente os comerciantes ou alguns personagens, pois só vou quando preciso de algo bem específico – Lembre, caro leitor: o estacionamento; o estacionamento é terrível. -, mas é um excelente local para se frequentar e comprar delícias.

Como gosto de cozinhar e adoro comida sertaneja, numa sexta-feira dessas, já me deitei para dormir pensando no almoço do sábado: farofa d´água, arroz de leite da terra – cozinhado só com leite -, feijão de corda com cebola roxa, nata e um bom punhado de cebolinha e coentro – com talo e tudo; bem picado. -,  vinagrete bem azedo, carne de sol assada e uma bela pururuca.

A noite quase não passa. Roncamos eu e meu estômago, num dueto em si…se tivesse fava seria uma boa ideia. Talvez no outro sábado.

Outro dia fui à Cobal em busca de queijo de coalho e nata e, de longe, vi um amontoado de gente em frente a um box fincado bem nomeio da Cobal.

Encostei nele, e vi que estava repleto de produtos do sertão: queijo de manteiga, de coalho, nata, manteiga da terra, castanhas das mais variadas, mel de abelha e de engenho, leite e ovos caipiras. Cada coisa mais linda que a outra.

O balcão – tão organizado que, certamente quem o organiza ou é do signo de Virgem ou tem TOC – reluzia num amarelo intenso feito um altar de igreja banhado de ouro. Mas, ao contrário do altar santo, só despertava o pecado da gula.

Quem despachava era uma senhora por volta dos seus 65 anos de idade, muito ligeira, de voz firme, concentrada e de pouca conversa. Só estendia o assunto se fosse para rebater qualquer tentativa de desconcentrá-la.

Enquanto esperava a minha vez para ser atendido naquele amontoado de gente em frente ao box, um rapaz que tentou furar a fila sorrateiramente foi surpreendido com um olhar fulminante dela, que disparou sem hesitar:

– Vá pra fila. Tô atendendo ele!

Naquele instante, ela me arrebatou como cliente para o resto da vida. Gostei de pronto.

Pedi a ela queijo de coalho, nata e perguntei “como era a bandeja” de ovos caipiras.

– 30 ovos fica R$30,00. Amanhã deve passar para R$50,00. Do jeito que a coisa anda, segunda deve custar R$80,00!

Disse que uma bandeja com 30 ovos era muito pra mim. Perguntei se poderia ser só a metade.

– Pode.

Para descontrair, pedi que colocasse só dos ovos bons.

– Todos aqui são bons!

Tenório, com "Lurdinha" camuflada, caminha ao lado de aliados no RJ dos anos 60 Foto: Web)

Tenório, com “Lurdinha” camuflada, caminha ao lado de aliados no RJ dos anos 60 (Foto: Web)

Dobrei a aposta e disse, prendendo a gaitada: pois coloque os melhores.

Ela se virou e disse ao ajudante que estava lá pra dentro:

– Atenda ele aqui!

Na verdade, ela se virou para cortar o queijo de coalho que pedi.

Enquanto somava o meu pedido, tripliquei a aposta e perguntei se ela sabia quem foi Tenório Cavalcanti, o famoso “Homem da capa preta”, que foi deputado federal do Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960, que tocou o terror na Baixada Fluminense e cuja história virou até filme, estrelado pelo saudoso ator José Wilker, por esconder debaixo de sua capa preta uma submetralhadora modelo MP-40, para se proteger dos seus inimigos.

Séria, me fitou e disparou:

– Não, por quê?

Enquanto ela me olhava, perguntei se poderia pagar via PIX, pelo que ela apenas apontou para uma plaquinha de acrílico posta em cima do balcão, contendo um QRCode e o seu nome: Lourdinha.

Já com as minhas compras em mãos ela me reforçou a pergunta:

– Por quê?

Sorri pra ela e, apontando para a plaquinha, disse que Tenório Cavalcanti chamava sua submetralhadora carinhosamente de Lourdinha.

Ela deu uma gaitada e emendou:

– Por isso que o nome combinou!

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica

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