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domingo - 26/02/2023 - 08:34h

Meus tempos de imprensa

Por Marcos FerreiraIlustração para Meus tempos de imprensa 1

Ninguém perguntou, mas hoje quero contar a história de um rapaz ordinário. Aqui ordinário vai no sentido de comum, antes que se pense outra coisa acerca dessa palavra consagrada com sentido pejorativo. Naquela idade (vinte e quatro anos) esse moço ainda vivia sem eira nem beira. Falto de grana para quase tudo, virando-se apenas com biscates.

Só que o rapazinho, desde os breves tempos de escola, adquirira o hábito de escrever versos e, enquanto leitor, possuía uma estrada considerável. Na verdade, o hábito da leitura veio antes dos poemas revestidos com açúcar.

Até que um dia (sempre há um dia!) um renomado advogado e poeta destas penhas tomou conhecimento de que ali próximo à casa de sua nora havia um moço que compunha versos e tinha dois cadernos cheios dessas coisas que agora se escreve primeiramente em celulares e computadores e, logo depois, vão parar nos sites e nos blogues.

O nome do eminente advogado e literato era Apolônio Cardoso, autor de um texto musicado não sei por quem, tendo obtido bastante sucesso à época.

O título da então música de Apolônio Cardoso era (ainda é) “Flor do mocambo”, cujos versos admito não recordar. Então, com olhos indulgentes, esse consagrado homem de letras folheou e examinou uns dez poemas de minha autoria, em especial sonetos, e me pediu, pousando a mão no meu ombro, que eu o procurasse em seu escritório advocatício no dia seguinte, num prédio de primeiro andar nas imediações da Praça Vigário Antônio Joaquim.

Fui ao encontro de Apolônio no dia combinado, e ele repetiu elogios que me havia dito na véspera. Deu-me um papelzinho, um bilhete para que eu fosse ao Jornal O Mossoroense e lá procurasse o também poeta Cid Augusto. O tal bilhete abonava a minha participação no centenário como colaborador.

Cid Augusto de pronto botou os olhos naqueles sonetos carregados de influências clássicas, prenhes do estilo passadista de uma centena de autores, aprumou os óculos e balançou a cabeça afirmativamente: “Muito bem, senhor Ferreira, você fará parte da nossa equipe de colaboradores dominicais. Venha cá, eu quero lhe apresentar ao rapsodo Caio César Muniz”, disse o inveterado e jovem boêmio com quem (mesmo sem ser boêmio) mantenho uma consistente amizade até os dias de hoje.

Graças a Apolônio, portanto, eis que ingressei na imprensa desta província, muito embora continuasse na pindaíba, sem um tostão furado. Uma tarde, infelizmente, tomei conhecimento da morte do autor de “Flor do mocambo” e de outras composições de expressividade em nossa literatura e além fronteiras potiguares. Súbito, então, me senti como que órfão, desapadrinhado no contexto literário.

Em uma outra tarde, quando cheguei à redação de O Mossoroense para entregar minha colaboração para o caderno do domingo, fui chamado pelo diretor financeiro e este me comunicou que havia uma vaga para revisor de textos e que Cid Augusto me indicara.

Fiz um teste gramatical à época, já que existiam outras pessoas interessadas no cargo, e obtive a maior nota, embora minha situação escolar não fosse além da sétima série ginasial. É isto, sou um autodidata por convicção.

Decorrido cerca de um ano e meio, também por indicação de Cid Augusto, ascendi ao cargo de editor de cultura, conciliando com a tarefa de revisor. O emprego no jornal, se eu não disse ainda, foi o primeiro trabalho onde me senti de fato visto como alguém com outro potencial que subempregos anteriores não me proporcionaram. Isto sem sugerir aqui que esse ou aquele emprego não seja digno.

De minha parte, todavia, me encontrava num lugar com o qual me identificava, fazendo o que sabia e gostava. É verdade, contudo, que a função de repórter cultural era algo que não me agradava tanto quanto as demais atividades correlatas: revisor de textos e copidesque.

Um dia, como tudo se finda, minha ligação com O Mossoroense ruiu (não sou um elemento fácil de ser domesticado) e fui respeitosamente convidado a sair. Aqui e acolá, então, me bate uma sincera saudade daqueles bons tempos. Em especial do bardo Apolônio Cardoso. Fiquei no ora-veja.

Por outro lado, segundo Ernest Hemingway: “Todo bom escritor tem que passar por uma redação de jornal. Mas, para ser bom mesmo, ele tem que sair dela”. Não sei se me tornei bom, no entanto saí.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Veio à lembrança a leitura de “O velho e o mar”. Lembrei também dos meus primeiros tempos de empregos. De carteira assinada, apenas o Banco do Brasil quando tinha 19 anos, onde cheguei à aposentadoria. O seu caderno de poesias me fez lembrar que eu tinha um, que emprestei a uma moça, vizinha minha, que não o devolveu. Mudou de cidade e nunca mais nos vimos. A máquina de datilografar, hoje peça de museu, quando utilizada por vários candidatos na hora do concurso, provocava um barulho assustador. Sem contar no estresse de estar concorrendo uma vaga no meio daquelas pessoas. Quanta saudade! A vida vai delineando caminhos. Nunca tive coragem de chutar o balde: fui perseguida; alvo de assédio moral; pintaram comigo! Denunciei! Mas, vinda de família pobre, fui muito dedicada ao Banco! Amava o meu trabalho! Amargurei alguns anos de depressão e síndrome de pânico mas consegui concluir o percurso. Enfim, aposentada! Poderia ter exercido a advocacia! Fui laureada aos 36 anos, em primeiro lugar, com duas filhas pequenas e exercendo cargo de gerente de contas. O Banco me proporcionava estabilidade. Não me arrependi! E assim vamos nós com nossas memórias! Parabéns por ter tido coragem!!!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezada amiga Bernadete Lino,
      Boa-tarde.
      Nada mais instigante revisitar este Canal BCS e deparar com seus comentários e os de outros amigos leitores. Sou-lhes enormente grato. Especialmente por suas belas e motivadoras palavras. É sempre uma honra tê-la neste espaço de opinião e cultura. Um grande abraço para você, muita saúde e paz.

  2. Francisco Nolasco diz:

    Tempo bom. Onde a gente desfrutava de um espaço para publicação de poesias. E ainda tinha o deleite da crônica dominical do próprio, Marcos Ferreira.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu caro poeta Nolasco,
      Foram tempos muito bons, sim, incomparáveis. Mas, como diz a canção de Belchior, o novo vem e também traz coisas boas.
      Forte abraço e até domingo.

  3. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Sua história, Marcos, é digna de ser contada… e serve de exemplo. Parabéns!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro escritor Raimundo Antonio,
      Obrigado pelo estímulo e carinho de sempre.
      Espero você brevemente aqui em casa para um cafezinho na nova casa branca.
      Forte abraço.

  4. Dulce Cavalcante diz:

    Seja um dos nossos , traga a sua poesia e venha tomar um café com a companhia prazerosa de nossa confraria Cafe&Poesia
    .. Todo último sábado do mês temos um encontro marcado . Será bem-vindo e a sua bela poesia ouvida pelos amantes .

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querida Dulce Cavalcante,
      Obrigado pelo convite. É muito prováve, e honrosamente, que eu o aceite.
      Você também está convidada para um café aqui em casa.
      Forte abraço.

  5. Airton Cilon diz:

    Sua fase no caderno de cultura de O Mossoroense foi marcante. Tempos áureos do caderno de poesia, onde foram revelados muitos poetas talentosos de nossa cidade. A vida é uma experiência constante… Valeu, caro poeta e escritor Marcos Ferreira!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querido poeta Airton Cilon,
      Eu também sou um saudosista daqueles bons tempos do caderno dominical de O Mossoroense.
      Sobretudo por tê-lo editado por um tempo significativo. Tínhamos, sim, uma salutar confraria em torno da qual surgiram muitos bons poetas e prosadores. Agora, felizmente, temos o Blog Carlos Santos, também aos domingos.
      Vamos marcar nosso cafezinhho aqui em casa.

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