• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 20/10/2024 - 05:26h

Mingau de milho

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa do Adobe Stock

Arte ilustrativa do Adobe Stock

Diante da tela fluorescente do computador, sentado à escrivaninha, penso no que escrever para hoje. Vêm-me à cabeça algumas possibilidades, alguns retalhos de memória que talvez (espremendo meus quarenta ou cinquenta neurônios) resultem em uma crônica ao menos sofrível. Memória, porém, é algo de que atualmente não posso me valer muito ou contar vantagem. Possuo, para ser franco, vagas lembranças de coisas que eu gostaria de narrar, fragmentadas passagens de minha vida.

Penso que seria oportuno compor uma página trazendo à baila um episódio que vivenciei no tempo em que cursava a segunda ou terceira série primária no Instituto Dom João Costa. Daquela época, entre outras coisas, lembro do mingau fumegante de milho com coco que serviam na hora da merenda. Aquilo representava um manjar para o menino fora de faixa que tinha ali a oportunidade de aplacar a fome.

O mingau nos era entregue naqueles copos azuis de plástico. Eu ia soprando e tomando o mais rápido possível no intuito de conseguir um segundo copo, antes da campainha soar. De tão quente, entretanto, no mais das vezes isso não era possível.

Houve um dia, contudo, em que consegui, quase queimando a língua, repetir o delicioso mingau. Então, bucho cheio, arrematei a proeza com a água geladinha do bebedouro. Quero supor que foi o choque térmico o responsável pela tragédia que me aconteceria dali a mais alguns minutos naquela manhã.

Minha barriga começou a fazer uns barulhinhos. Imaginei que fosse ficar só nisso. Coisa nenhuma! Logo vieram as cólicas e um suor frio se apresentou no meu rosto. Desconfortável, tímido e sem coragem de pedir à professora (por quem eu era apaixonado) para ir ao banheiro, pois fazia pouco tempo que estávamos de volta, fiquei me segurando, ainda na expectativa de que as cólicas cessassem.

Devido à timidez, eu costumava escolher as últimas cadeiras. Então me sobreveio a imparável necessidade de soltar uma flatulência. Foi a gota d’água. A merda veio fininha, morna e abundante, ensopando minha calça curta. Depressa o fedor empestou a sala.

Fiquei estático, o suor aumentando juntamente com o mau cheiro. Como se não bastasse, para amplificar meu vexame, nem cueca eu tinha naqueles verdes anos. Senti o tecido colando na cadeira. A meninada maldizia a fedentina. Decerto por conta do período chuvoso, não tardou para que as moscas me denunciassem. Até que o gorducho Lucinho, sentado junto a mim, alarmou para a sala inteira:

— Tia Emília, Marcos está todo cagado!

Senti-me assim como se meu espírito houvesse saído do meu corpo. A gritaria e as vaias explodiram. Com carinho, enfrentando o odor, a jovem e bela professora veio em meu socorro. Disse mais ou menos que eu não ficasse com vergonha porque aquilo podia acontecer com qualquer pessoa; pegou-me por um braço e me levou para o banheiro. Notei que a bosta escorria pelas minhas pernas.

Uma faxineira da escola foi convocada pela professora para auxiliá-la, aumentando dessa forma o meu constrangimento. Tiraram minha roupa, deram-me um meio banho e a faxineira ainda teve a bondade de lavar minha calça, que vesti mesmo molhada. Naquele dia retornei para casa bem mais cedo. Passei o resto da semana sem pisar na escola e nunca mais repeti o mingau de milho.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Marcos Pinto. diz:

    Essa foi de lascar. Todo cagado e todo envergonhado. Tudo por tudo, em miúdo fluído. Desde o ano 2000 resido quase em frente ao saudoso Colégio Dom João Costa. Mas desde 1975 frequentei o dito Educandário, por ter uma das minhas feiosas irmãs estudado lá. Lembro-me da linda Professora e também da Diretora, muito exigente, solteirona e feia, que omito o nome porque ainda é viva, lúcida e recatada. Confesso que certo dia provei da dita guloseima, que, de sorte, só me causou flatulência. Foi demolido em 2020 e reconstruído com a réplica da antiga fachada. Reminiscência com gosto suave de nostálgica saudade. É isso aí prezado xará e amigo. Recordar é viver novamente com as instigantes tintas oriundas do âmago da alma em êxtase. Parabéns pelas contextualizantes e emblemáticas crônicas. Feliz e profícua semana. Abraçaço.

  2. Marcos Pinto. diz:

    Lembrei-me de costumeiro adágio popular : “…Vai dar em merda “. Num é que deu mesmo !. O certo é que o mingau exalava um forte e gostoso cheiro que despertava o mais profundo pecado da gula. Vou Ateu pedir a minha “dona Onça” pra ela fazer um mingau igualzinho ao do referido Colégio. Vai ser um chuá de bom. Ora se vai ser !.!

  3. Marcos Pinto. diz:

    O perigo vai ser o desenrolar dos famosos
    movimentos peristálticos O diabo é que não
    sei se Estomacais ou intestinais. Alô Dr. Lair Solano !.

  4. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Que maravilhosa professora, parabéns. Gosto da perspectiva de Paul Zomthor quando afirmava que a memória é sempre um polimento dos fatos ocorridos, esta perspectiva me parece genial, pois coloca o passado em permanente atualização. Então meu amigo, o escritor Jorge Luis Borges também está com vc, quando afirmava que o esquecimento é a mais alta forma da memória. Delicia de texto, obrigado.

  5. Bernadete Lino diz:

    Contado assim, depois do lapso temporal, parece uma coisa engraçada; a gente chega a rir. Contudo, imagino o trauma que você viveu; a humilhação pública. Sem contar que crianças são cruéis; divertem-se com as coisas mais inusitadas. Mas você não está sozinho; acontece com qualquer pessoa. A timidez é uma barreira nessas situações. Eu já passei um estresse numa viagem de ônibus e desci alegando que queria vomitar. Estava com uma amiga que me prestou suporte, procurando papel na minha bolsa. Foi quase! A sorte é que a estrada estava bem contornada de vegetação porque, se não tivesse onde me esconder, todos teriam presenciado. Aqueles momentos agoniados que antecederam à parada do ônibus, para que eu descesse, pareceram-me uma eternidade. Todo mundo tem um momento difícil ou constrangedor pra colocar na biografia.

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.