Continuo reproduzindo a correspondência de seu Rafael para Diran Amaral, num perÃodo em que ele passou no Rio de Janeiro. Corria o mês de junho do ano de 1976.
“Cartas, só escrevo a quem me dá na telha, inclusive meu bom Siqueira, do Bandern, gente boa, que, como já disse certa vez, é mesmo o amigo certo das horas incertas… E pode dizer a ele ou mostrar a ele esta carta. E diga ao mesmo que faça regime alimentar porque aqui os médicos nos apavoram tanto com açúcar, dizendo que dá cardiopatia, arteriosclerose cerebral precoce, obesidade irremediável, que é o jeito se entrar na suÃta, no adocil, no sukir, em todos esses ciclamatos que realmente funcionam de forma extraordinária.”
“Faça uma carta longa e detalhada contando as novidades, que serei um sarcófago, um túmulo e depois lhe entregarei a sua própria missiva para ser rasgada, a fim de que nada de inconveniente transpire por outra boca, porque da minha será impossÃvel. Você sabe disso melhor que ninguém.”
“Já estive duas vezes com o Raimundo Soares, sempre naquela verve insuspeitada e mantendo aquele nÃvel de inteligência que pensamos que vai decair, quando, tal o fênix das lendas, que ressurge das cinzas, ele aparece cada dia mais brilhante, dissertando sobre tudo com uma facilidade assombrosa, o homem é mesmo uma parada. O Francisco Soares de Lima, da Mossoró Comercial, Antônio Paula, o baixinho, que hoje mora no Rio, é tanta gente que muitas vezes fico sozinho, passeando, noite e dia, dia e noite, por tudo quanto é buraco, quase sempre sozinho e quando chego no modestÃssimo apartamento de sala e quarto, meto as mãos em cima da máquina e, como um sádico, castigo as teclas sem vez, apenas – isso é importante – para quem me interessa escrever, porque para outros não dou sequer sinal de que existo.”
“Faço ainda artigóides para o mossoroense, porque nada melhor que não perder a forma. Não sei como diabo um jornal desses chegou aqui, onde eu comparava o Aluizio, com aquela mão mole e untuosa, com o Dinarte e tem gente tirando Xerox adoidado, distribuindo por tudo quanto é amigo, prova de que o papai aqui, se não escreve tão bem, pelo menos gosta de tirar a máscara de certos tartufos que embrulham e enrolam a opinião pública do nosso pequeno estado, pequeno, mas, nem infeliz, nem desgraçado, porque se você quiser ver buraqueira, sujeira, prostituição, pouca vergonha, cocô de cachorro às toneladas nas calçadas, pobres vendedoras do corpo nas avenidas de Copacabana, que venha aqui para sentir que o mal da desadministração é geral, que os homens públicos são na verdade uns merdas, que só andam de carro oficial, e que, como sempre, gostam de ser adulados, cultivados, bafejados pelo sorriso dócil e sempre afirmativo e obediente dos vassalos, muitas vezes em troca de um emprego bostÃssimo que nada vale.”
“E às vezes é melhor viver fora de cÃrculos palacianos, tranqüilo no recolhimento e na discrição, que cercado de micro-homens, que apenas adulam, puxam o saco, lambem os ovos, numa sordidez total, esquecidos de que o ocupante do poder hoje, amanhã será um pobre diabo, igual a nós, ora se será…”
“Sou radicalmente contra o radicalismo, frase que o Millôr plagiou de alguém, os amigos devem esquecer os erros uns dos outros, pois quem não erra são os monumentos, as coisas inanimadas, nunca o homem, esse bicho predatório, infeliz, cauto e incauto, brigão e desaforado, retraÃdo e audacioso, fulo da vida e tranqüilo como Sócrates, arrebatado nas paixões e depois vertendo lágrimas nas noites escuras, quando ninguém sabe que tudo pode ser encoberto, mortes, raivas, frustrações, desatenções e, melhor que nada, às vezes se chora de alegria, mas de qualquer forma as lágrimas são um bálsamo, limpam a alma e nos curam (quantas e quantas vezes senti isso!) de ingratidões, negativas e pusilanimidades.”
“Os erros datilográficos são meus mesmos, pois já disseram que somente escrevo ligeiro e célere porque tenho máquina elétrica… esta é uma portátil que também obedece – e como obedece! – a tudo que quero dizer, bem ou mal, suja ou porcamente, mas obediente sempre, submissa, passiva, vibrante quando o seu dono passa a verberá-la, recolhida no seu canto quando o seu senhor está na praia, ‘desconfie de quem, podendo, não vai à praia’ já dizia Gilberto Amado, e eu completo, não ouve boa música, nem lê bons livros, nem assiste a bons filmes. Melhor, melhor muitas vezes que mil, dez mil, cem mil garrafas de uÃsque.”
“Sursum cordis, ou melhor, como diria Apeles, ne sutur ultra crepidam, ou melhor ainda, como diria Padre Mota, ‘ilumina-nos, senhor… ô bosta, Revoredo’, Rio, Rua Anita Garibaldi, 83/603, Copacabana, não, Porcacabana, 24 de junho de 1976.”
Armando Negreiros – negreiros@digi.com.br
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