Por Roncalli Guimarães
Esses dias ao abrir o noticiário no celular me deparei com notícia no mínimo chocante: uma mulher pobre da Zona Rural de um pequeno município do nosso sertão morre por falta de leito de UTI (Município e Estado jogam cadáver de um lado para o outro). O chocante das das matérias é que revelam que prefeitura e estado cinicamente argumentam e transferem culpa.
No mesmo dia da morte, um hospital com leitos de UTI tinha acabado de ser aberto para atender vítimas graves da Covid-19 em Mossoró. Esse cenário macabro me faz lembrar o genial João Cabral de Melo Neto e seu personagem Severino.Ele é mais um retirante que sai do árido sertão para tentar a sorte na lama dos manguezais e pelo caminho se depara com enterro de um homem assassinado pelos latifundiários. Vagando presencia outras mortes, até que descobre que ela, “a morte”, é a maior empregadora do Sertão.
A morte gera empregos para médicos, coveiros, gera lucro para donos de funerárias, de hospitais e farmácias.
A obra é um poema dramático, um auto de Natal, mas se assemelha aos dramas reais que convivemos no nosso cotidiano em que morte virou estatística, número, memes na internet e disputa política. Números de morte são novo indexador financeiro; dólar e bolsas de valores caem ou sobem dependendo das estatísticas.
Nâo é preciso grandes empreiteiras para políticos fazerem caixa dois, basta apenas uma empresa de fundo de quintal vendendo respiradores.
A morte nunca tinha sido tratada antes com tanta frieza e indiferença no nosso meio. O luto para nossa sociedade é uma resignificação, é um estado psicológico que surge na perda de alguém que amamos e precisa e concretismo, de simbolismo para vencer a dor, para entender que perdemos alguém que era único e insubstituível.
Vestir um corpo, velar, orar e se despedir, faz parte dos rituais que ajudam a dar significado e tentar cultuar a memória e a saudade daqueles que de certa forma nos deixaram um legado. Esse vácuo deixado pelas desassistências em vida e pela falta de cortejo na morte pode levar a consequências psicológicas graves.
No poema de João Cabral, Morte e Vida Severina, o personagem quando percebe ser só mais um número para conta e que sua morte tem mais valor que sua vida, resolve acabar com ela, mas aparece um carpinteiro que o salva e consegue renovar suas esperanças e fazê-lo acreditar na vida. É isso que espero para todos nós Severinos do país, quando estivermos para “saltar da ponte e da vida” no Capibaribe.
Espero e trabalho, faço minha parte, para que apareça um carpinteiro anunciando que um filho deste “saltou para dentro da vida”, nascido entre as palafitas, presenteado com cordões de caranguejo e que cresça entre nós semeando amor, o único antidoto para os estéreis corações dos nossos governantes.
Sei que é meio utópico, mas pelo menos é reconfortante.
Roncalli Guimarães é psiquiatra
Bom texto! Parabéns Roncalli Guimarães. Descreveu a morte e o momento que atravessamos fazendo analogia com uma grande obra da literatura nacional. Vida e Morte Severina, Os Sertões , Grande Sertão: Veredas, descrevem a morte e a miséria de formas diferentes. E o Rio Capibaribe, tão denso e que já foi “belo” – é descrito na literatura e poesia de vários Pernambucanos, entre eles: Carlos Pena Filho, Capiba, Ariano Suassuna(O paraibano mais Pernambucano de todos os tempos), e o próprio João Cabral.
O presente artigo, de um escritor que nem conheço pessoalmente, fez valer a pena o Domingo. Uma coisa garanto, pelo menos hoje, não me jogarei da ponte. Pelo Artigo. Valeu!