• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 10/09/2023 - 08:22h

“Não iremos à Canossa!”

Por Marcos Araújo

Ilustração: Politize

Ilustração: Politize

Por dever constitucional, o Estado brasileiro é laico. O Estado laico, secular ou não confessional, é aquele que permite, respeita, protege e trata de forma igual todas as religiões, fés e compreensões filosóficas da vida, inclusive a não religião e as posições que negam a existência de quaisquer divindades ou seres sobrenaturais, como o ateísmo.

O primeiro país que fez a separação entre Estado e Igreja foi os Estados Unidos. A Constituição Americana de 1787 não estabelecia qualquer vínculo entre Igreja e Estado. O Brasil, um século mais tarde, na Constituição de 1891, vedou aos estados e à União estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de qualquer culto (art. 10º). Na França e em Portugal, a separação seria decretada, respectivamente, em 1905 e 1911.

No nosso “solo gentil”, Rui Barbosa redigiu em 7 de janeiro de 1890 o Decreto nº 119-A (ainda em vigor), estabelecendo um rompimento drástico nas relações entre Estado e religião. O artigo 19, inciso I, da Constituição vigente diz que o Estado deve se abster de ter relações econômicas, de incentivo, de ensino e quaisquer outras que impliquem na divulgação, estímulo, subvenção e ajuda financeira às entidades religiosas.

Dito isto, é notadamente ilegal gastos estatais com igrejas ou custeio de eventos religiosos. Quem deve sustentar os encontros e templos religiosos são aqueles que compartilham daquela fé, e não o dinheiro público. Afinal de contas, o Cristo mesmo disse aos seus apóstolos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Evangelho de São Marcos, capítulo XII, versículos 13 a 17).

A separação entre Estado e Igreja nunca foi pacífica, razão pela qual a história registra muitos episódios conflituosos. Um dos primeiros e mais conhecidos é chamado de Querela das Investiduras, e se dá entre o Papa Gregório VII e o rei germânico Henrique IV. No ano de 1075, o Papa publicou 27 normas sob o título Dictatus papae (Édito do Papa), estabelecendo que os bispos deveriam ser nomeados por ele, e não mais pelo imperador como se procedia. Com raiva pelo ato de insubmissão, Henrique IV determina a deposição do papa Gregório VII, que por sua vez responde com a excomunhão do rei.

Abandonado pelos fidalgos, que indicam um rei concorrente, Henrique IV finge arrependimento e em ato estratégico vai à Canossa, pedir-lhe perdão. Era o dia 25 de janeiro de 1077. A falsa “vitória” sentida pelo Papa em Canossa não demorou muito, pois Henrique IV em seguida reuniu um concílio de sua devoção para nomear outro príncipe para a Igreja. Gregório VII, o papa reformador, morre em Salerno, abandonado por todos, em 25 de maio de 1085.

Um outro episódio famoso é chamado de Atentado de Anagni. Envolve o rei francês Filipe IV, o Belo, e o Papa Bonifácio VIII. Hierocrático, o Papa invocava o direito sobre todos os homens, mesmo os soberanos, suprimindo a autoridade do rei com a bula papal “Unam Sanctam”. O rei Filipe IV, aconselhado pelo seu conselheiro e jurista Guillaume de Nogaret, convoca em 1303 um concílio ecumênico em Lyon, cujo objetivo é julgar e depor o Papa. Ao tomar conhecimento, Bonifácio VIII editou a bula Super Patri Solio excomungando o rei.

Para evitar a publicação da excomunhão, na noite de 7 de setembro de 1303 os aliados do rei Filipe IV invadem a pequena cidade de Anagni, lugar de residência papal de verão, prendem Bonifácio VIII e exigem a sua renúncia. Ele, porém, resiste e afirma preferir a morte. Sua frase entra para a história: “Eis a minha cabeça, eis a minha tiara: morrerei, é certo, mas morrerei papa”.

Com tal resposta, um dos líderes do motim (Sciarra Colonna) esbofeteia o Papa com a mão coberta pela luva de ferro da armadura. Sob a violência do golpe, o papa caiu do trono para o chão, vindo a morrer dias depois (em 11 de outubro de 1303). Seu sucessor, Bento XI, revoga a bula Super Patri Solio, mas decide por intimar os responsáveis pelo ataque em Anagni.

No dia do julgamento (em 07 de julho de 1304), o novo papa morre sob suspeitas de envenenamento. O pontífice escolhido para substituí-lo, Clemente V, eleito em 1305, em ato de cooperação com o rei francês, retira todas as sentenças contra os agressores de Bonifácio VIII, e afirma que a atitude de Filipe, o Belo foi “boa e justa.”.  A este Papa Clemente V se credita a supressão da Ordem dos Templários, com a ajuda do rei francês.

A noção teocêntrica era uma característica da Idade Média. No Brasil e no mundo, no entanto, assiste-se ao ressurgimento desta prática em pleno século XXI, sob os albores dos governos populistas. A Religion and Global Society da London School of Economics and Political Science publicou recentemente uma série de artigos sobre a relação entre populismo e religião. Sem desconsiderar os aspectos políticos, sociais e econômicos dos movimentos populistas no Ocidente, os pesquisadores focaram em algo menos tangível, mas não de menor importância, a influenciar a onda populista: a religião.

Seja lá na Europa, na África, no Oriente, ou aqui nos entes federados da nossa República, candidatos – e eleitos! – a cargos públicos se utilizam da religião como instrumento de massificação e exploração da ignorância política do eleitorado. Populismo e Religião se confundem, para se neutralizarem como elementos de justiça divina. Numa antropologia teológica e em uma visão cristocêntrica, todos nós fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, não devendo ser categorizados e relativizados por linguagem que leve a rejeição, polarização e violência.

Lógico que o cristão não deve se excluir da política. É dever do discipulado cristão, na sua dimensão social, comprometer-se ativamente com o bem-estar do outro (Tiago 1:27). É uma obrigação divinal coletiva (aos que creem) pugnar pela aplicação das bem-aventuranças desejadas pelo Cristo (Mateus, 5). A alienação e a servidão não são elementos próprios do cristão.

Quando vejo um líder religioso em palanque eleitoral, ou um gestor público no púlpito da Igreja, alardeando seus feitos e defendendo a sua sacralidade, me vem à memória o chanceler alemão Otto Von Bismarck. Ele foi chamado de “Marechal de Ferro”, sendo o responsável pela unificação da Alemanha e fundador do 2º Reich no início do século passado.

Em discurso em que proclamou a separação do seu governo da Igreja católica, depois de relembrar a falsa prostração do seu conterrâneo Henrique IV, saiu-se com esta frase: Nunca mais iremos à Canossa – seja de corpo ou em espírito!” (Nach Canossa gehen wir nicht, weder körperlich noch geistig)

Marcos Araújo é advogado e professor da Uern

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. François Silvestre diz:

    Uma bela aula.

  2. Raí Lopes diz:

    Parabéns, Marcos. O seu artigo mostra, de forma didática, a verdade dos atos e fatos desse minúsculo apêndice histórico. Há, entre o céu e a terra, mais verdades e omissões, do que podemos imaginar. Que bom saber de algumas delas por pessoas gabaritadas, que pesquisam e registram para a posteridade.

  3. Oda Araújo diz:

    Escreve com maestria e conhecimento. Excelente!

  4. Oda Araújo diz:

    Texto escrito com excelência!

  5. Oda Araújo diz:

    Maravilhoso ler um texto bem escrito e com base histórica!

  6. Rocha Neto diz:

    Concordo com o mestre François Silvestre, pessoa que enobrece nossa terra berço Portalegre.
    Ler Marcos Araújo caro François, é um passeio na praça cultural dos seletos naipes dos que sabem escrever.
    Por pura ironia, te incluo neste mesmo passeio cultural !!

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.