De fato, a fase da coleta de dados já passou, mas não no presente caso que contempla Massilon, personagem secundária do cangaço e, a exceção de Jesuino Brilhante, o cangaceiro romântico do bairrismo idealista, não temos senão Massilon para ilustrar a contribuição efetiva do Rio Grande do Norte ao cangaço nordestino.
Honório de Medeiros conta que esse nome se fez presente em sua infância em cidades do Oeste. Eu também o ouvi, na várzea do Açu, nas conversas de alpendre, no Estevão. Porém sem detalhes, a não ser que vivera lá para as bandas de Luis Gomes e desaparecera, nem morto nem vivo para os sertanejos.
Massilon tem um subtítulo, “nas veredas do cangaço e outros temas afins” e recria duas peripécias distintas que dão ao texto uma nova maneira de seguir por trilhas tão batidas: a viagem no tempo em busca de Massilon e a do processo em que se escreve o livro que agora acabei de ter debaixo das vistas. Esse processo enseja a circunstancia, o inevitável, enfim uma rede interminável de comunicações vivas que resultam do trabalho de campo.
Difícil escrever sobre um livro no qual tenho estado tão presente em todas as etapas de um processo a que o seu autor me associou, convidando-me para pesquisar em sua companhia as pegadas de Massilon, e me propôs – e eu não acatei senão nos raros momentos em que tive a compulsão de anotar impressões, insights, em vez do diário de bordo que comporia uma “segunda opinião”, ou melhor dizendo com mais pertinência os “dois lados” de um registro que se faz no curso de muitos quilômetros e vigílias e o que há nessas infinitas horas de elaboração de factual e circunstancial no livro, como dizem os especialistas.
Sei que perdi essa oportunidade sem reprise. Mesmo assim, ainda escrevi sobre alguns lugares e pessoas que fomos encontrando nesse périplo por sertões do Alto oeste potiguar, da Paraíba e do Ceará, estados vizinhos que percorremos nesse roteiro previsto por Honório e que nos fez parar em Patos, onde há uma atmosfera universitária, uma latente vida intelectual e artística das quais tivemos indícios pelo volume de publicação e qualidade de alguns artistas plásticas. Mesmo assim, o que escrevi cria um curioso contraponto a essa leitura de “Massilon” que foge ao lugar comum e às coisas feitas, avançando numa nova direção da qual o cangaço é mero pretexto para outras realizações que ampliam o nosso conhecimento do Nordeste e da nossa cultura rude e viçosa.
Honório promove muitos encontros afins em Massilon, livro que representa essa “nova onda” inspirada pelo autor que o faz indo beber às fontes, embora recorra a autores que o ajudaram a contar essa história que tem alguns capítulos transcorridos em terras potiguares. O livro abre com uma citação de Massilon, Jean Baptiste Massilon, o celebre orador sacro que viveu na França (1663-1742) sobre a verdade, “essa luz celeste”, a única coisa no mundo que se faz objeto dos cuidados e das investigações do homem:
“Só ela é a Vida da nossa virtude, a regra do nosso coração, a fonte dos verdadeiros
prazeres, o fundamento das nossas esperanças, o consolo dos nossos temores, o alivio de nossos males e de nossas penas. Todos os nossos cuidados deveriam limitar-se a conhecê-la, toda a nossa loquacidade a publicá-la e todo o nosso zelo a defendê-la”.
Não se trata de um produto acadêmico, mas de uma obra que embora se leia fluentemente está regida pela disciplina e por um rigor de pesquisa e composição. Obra de quem domina o assunto e o faz sem ranço acadêmico.
O sumário é elucidativo dessa virtude que faz do livro uma viagem repleta de acontecimentos – como o solene funeral do radialista em Cajazeiras -; uma viagem povoada de incidentes históricos, pitorescos, imprevisíveis e vivazes como as pessoas que se integram ao universo de uma pesquisa que compõe também um retrato de época e não apenas o retrato cheio de dobras de uma figura secundária do cangaço, o homem persuasivo que conquistou Lampião para o seu maior fracasso – o ataque a Mossoró.
Há no livro de Honório uma vertiginosidade de aportes, de ritmos, de fluência que faz a sua leitura um prazer. Honório escreve sobre novidades que estavam esquecidas, sobre o prazer de conhecermos através do autor viventes tão carismáticos, como a senhora da Fazenda Trigueiro, Dona Deocides, o velho numismata memorioso de Missão Velha, gente de ouro, o cronista de Patos, a estranha cidade de Pereiro, onde soube de antigos matadores de onças…Uma rapsódia que tem o cangaço como garantidor, mas visto de outros ângulos, no pico da onda ambulatória.
Franklin Jorge é jornalista, crítico cultural e escritor
O grande escritor FRANKLIN JORGE fez, com o seu infalível bisturí das palavras, uma dissecação perfeita sobre o contexto do livro do colega HONÓRIO DE MEDEIROS, que tem se revelado um gigante da pesquisa histórica. Revela, sem perder o rítmo e a curiosidade, nuances do cangaceirismo, ainda insepultas pela poeira do tempo que lá se vai. Em “MASSILON”, a retentiva dos que viveram a contemporaneidade dos truculentos dias do cangaço, revela,também, a origem de alguns dos principais protagonistas,sapateantes do submundo do crime,onde produziram enredo próprio de ambientes moralmente insalubres. Nesse elenco, Massilon teve presença e apoio do coronelismo político, quase onipotente e sem limites. Vivia-se a síntese da mediocridade, ganância e despudor, aliados à psicopatia de poder, pelo emprego da violência física e psicológica com que emolduravam o retrato do medo,nos sertões nordestinos. Parabéns ao autor do livro e ao FRANKLIN.