Por Honório de Medeiros
O caminho que sobe e o que desce é o mesmo (Heráclito de Éfeso, dito “O Obscuro”)[1].
– Mas terá que aceitar isso – retrucou Woland, e o sorriso irônico entortou sua boca. Você mal apareceu no telhado e já disse bobagens, e vou dizer onde elas residem: na sua entonação. Você pronunciou suas palavras de tal maneira como se não reconhecesse as sombras, e muito menos a maldade. Não seria muito trabalho de sua parte pensar na seguinte questão: o que faria a sua bondade se não existisse a maldade, como seria a terra se dela sumissem as sombras? (O Mestre e Margarida, Mikhail Bulgákov)[2].
“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus.” (Demian, Hermann Hesse)[3].
Quem, nos anos 70 do século passado, gostava de ler, possivelmente teve entre as mãos algum livro de Herman Hesse.
Talvez Sidarta, no qual ele romanceou a vida de Gautama Buda, ou mesmo O Jogo das Contas de Vidro e O Lobo da Estepe, os mais cultuados; quem sabe Demian; Pequenas Histórias; Narciso e Goldmund, os menos conhecidos.
É possível que dentre esses, Demian seja considerado um livro menor.
Na verdade, a crítica teceu e tece loas à O Jogo das Contas de Vidro e, em menor escala, a O Lobo da Estepe, muito embora o mais famoso seja Sidarta, cuja fonte foi a vida do grande líder espiritual Buda (Siddhärtha Gautama), Príncipe de Sakyas, “o Iluminado”, que viveu entre 563-483 a.C., um homem extraordinário.
Quando adulto, Sidarta, rebelado contra a hierarquia bramanista, largou todos os confortos materiais dos quais dispunha no palácio do seu pai, o rei, para ir em busca do real sentido da existência, ganhando fama imorredoura em todo o Oriente como Gautama, o Sublime.
Em Demian, Hesse nos apresenta a um enigmático adolescente e sua mãe, mulher bela e misteriosa iniciada em uma seita pouco conhecida, o Cainismo, que fascina Emil Sinclair, colega dele de escola e relator da história.
O Cainismo foi uma seita gnóstica cristã surgida no século II d.C. que venerava Caim como filho de um espírito superior ao que teria criado seu irmão Abel, considerada herética pela Igreja Católica.
Quando o Cainismo aparece na convivência entre Demian e Sinclair, aquele aponta, como ponto-de-partida para uma possível iniciação do amigo na doutrina Cainista, o conhecimento da vida de uma relação de personagens significativos, embora condenados pela história oficial, começando por Eva, depois Caim, cujo nome batiza a seita, bem como Judas Iscariotes, dentre outros.
Sabe-se que o Cainismo foi resgatado no século XIX da total obscuridade por Lord Byron, o cultuado e maldito poeta romântico inglês, e hoje é possível que somente exista em obras emboloradas praticamente desconhecidas, a grande maioria ocupando estantes empoeiradas no imaginário “Cemitério dos Livros Esquecidos” que fica em Barcelona, e do qual nos deu a conhecer Carlos Ruiz Zafón, em famosa tetralogia.
Voltando a Demian, a pergunta que ele faz a Emil Sinclair, durante o transcorrer da trama, no processo de sua iniciação nos segredos da seita, é se haveria Adão sem Eva; Abel sem Caim; Jesus, sem Judas, e assim por diante. Evidentemente, a verdadeira questão, implícita e fundamental, é se haveria o Bem, sem o Mal; e, fundamentalmente, a Ordem, sem o Caos.
Não é ousadia supor que o Cainismo seja descendente do Zoroastrismo ou Mazdeísmo, a religião dominante no Império Persa mais ou menos no século VI a.C. até sua invasão e dominação, no reinado de Dario III, por Alexandre “O Grande”, rei macedônio.
O zoroastrismo professava uma interpretação dualista da realidade, entendendo-a como governada pelas forças antagônicas do Bem e do Mal: existiria um deus supremo, criador de dois outros seres poderosos que seriam extensões de sua própria essência: Ormuzd (ou Ahura-Mazda, ou ainda Oromasdes, segundo os gregos), a fonte de todo o Bem, e Ariman (Arimanes), a fonte de todo o Mal, depois que se rebelou contra seu criador.
Os conflitos entre o Bem e o Mal seriam constantes até o momento em que Ormuzd venceria, condenando Ariman e os que o seguiam às trevas eternas.
Tampouco é ousadia crer que o Maniqueísmo seria continuação dessa linhagem herética e gnóstica originada na Pérsia, muito tempo depois renascida no Império Romano (sécs. III e IV d.C.). Sua doutrina, plena de um dualismo religioso sincretista, consistia em afirmar, também, a existência de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), assim como em localizar a matéria e a carne na escuridão.
Do Maniqueísmo foi seguidor, por um longo tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho de Hipona, Doutor da Igreja Católica, talvez seu mais importante pensador, autor da “magnum opus” De Civitate Dei (A Cidade de Deus), por quem Santa Mônica, sua mãe, tanto rezou para o converter.
Avançando no tempo, mas ainda na mesma linhagem, essa mesma percepção gnóstica, dualística, da realidade, constituiria o cerne da doutrina do Catarismo, professado pelos Perfeitos, a quem a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França na Primeira Cruzada da Igreja Católica, liderada por São Luis, o nono Rei francês.
É um fato que questões como essas, acerca do eterno embate entre o Bem e o Mal (a Luz e as Trevas), e a Ordem e o Caos, suscitaram debates ardentes e sinceros durante os famosos e esotéricos anos 60 e 70 do século passado, quando se questionava, entre outras coisas, o modelo de vida que o capitalismo “selvagem” ou o socialismo “científico” impunham ao mundo.
Era o tempo da Revolução de maio de 1968, na França, e do Festival de Woodstock nos Estados Unidos.
Havia, então, um inebriante fascínio pelo Oriente misterioso dos zoroastristas, cainitas, maniqueístas, iogues, faquires, dervixes, sadhus, budistas, taoístas, e seus estilos de vida, enquanto contraponto à possibilidade de hegemonia da sociedade de consumo ou do marxismo-leninismo.
Ainda hoje encontramos, em alguns nichos na internet, tal percepção esotérica acerca da realidade, herdeira longínqua dessas arcaicas seitas, que parece muito distante do feijão-com-arroz cotidiano ao qual estamos acostumados.
Existem também espaços diminutos, embora alvoroçados, no campo das ideias, resultantes de raízes solidamente firmadas na tradição oriental, que se voltam para a tentativa de explicar fenômenos tais como a antimatéria, física quântica, ou a teoria do Caos, em uma perspectiva que resvala para a metafísica, menos atenta ao rigor metodológico ortodoxo próprio da ciência. Que o diga Fritjof Capra, famoso físico teórico autor de O Tao da Física e O Ponto de Mutação.
Fritjof Capra traça um suposto paralelo entre a física relativística, assim como a quântica e a das partículas, e as filosofias e pensamentos orientais tradicionais, tais quais o taoísmo, o Budismo, e o Hinduísmo. Surgido nos anos 70, seu livro O Tao da física busca os pontos comuns entre as abordagens oriental e ocidental da realidade.
Por fim, voltando a Herman Hesse, com o qual abrimos este ensaio, é possível entender que, em Demian, ele tratou obliquamente, ao utilizar o Cainismo como pano de fundo da trama cujo epicentro é a relação entre Demian, Emil Sinclair e Gertrud, em uma perspectiva esotérica, acerca do que seja a Realidade, e cujo ponto de partida é a onipresença da eterna guerra entre o Bem e o Mal.
Mais: ao fazê-lo, trouxe para a claridade, ou pelo menos tentou, a misteriosa seita que seus personagens professavam e, para quem optou por se aprofundar na questão, como consequência, os mistérios do Zoroastrismo, Maniqueísmo e Catarismo, seus parentes próximos pela linhagem.
Teria o Zoroastrismo, cujo apogeu ocorreu aproximadamente no século VI a.C., influenciado Heráclito de Éfeso (aproximadamente 500 – 450 a.C.)?
Pode ser que sim. O certo é que antecede o filósofo em um ponto principal de sua cosmovisão, a de que os opostos são idênticos, embora apareçam para os homens como diferentes:
Vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice, tudo é o mesmo. (…) pois um virado, é o outro e o outro, virado, é o primeiro. (…) O caminho que sobe e o que desce são o mesmo (…) bem e mal são idênticos. (…) Para Deus todas as coisas são belas e boas e justas, mas, para o homem, há algumas coisas justas e outras injustas (…). Não pertence à natureza ou caráter do homem possuir o verdadeiro conhecimento, mas sim à natureza divina[4].
Sir Karl Popper, analisando esse trecho, observa que:
Assim, na verdade (e para Deus) os opostos são idênticos: só aos homens eles aparecem como não idênticos. E todas as coisas são uma só – todas elas são parte do processo do mundo, o ‘Fogo’ perene[5].
Todo esse Conhecimento arcaico, mas fundante, de natureza esotérica, é calcado na crença de que a Realidade é a extensão visível e material de uma divindade única e suprema, da qual são emanações antagônicas o Bem e o Mal; por outro lado, de natureza filosófica, é calcado na conjectura da unidade do mundo, identidade dos opostos e da aparência e realidade.
Para o Zoroastrismo, o Bem e o Mal são forças antagônicas que seriam extensões da essência de um Deus supremo. Heráclito de Éfeso disse que o Bem e o Mal são idênticos, “Somos e não somos”[6], e concluiu que para Deus, todas as coisas são belas, boas e justas, e todas as coisas são somente uma.
O Bem e o Mal: o Um.
Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN
[1] POPPER, Sir Karl. O Mundo de Parmênides: Ensaios sobre o Iluminismo Pré-Socrático. São Paulo: Unesp, 2019.
[2] BULGÁKOV, Mikhail. O Mestre e Margarida. Rio de Janeiro: Alfaguara. 2003.
[3] HESSE, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Record. 2015.
[4] POPPER, Karl. O Mundo de Parmênides: Ensaios sobre o Iluminismo Pré-Socrático.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
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