domingo - 10/08/2025 - 04:30h

O Efeito Casulo – Dia 11

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa com recurso de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recurso de Inteligência Artificial para o BCS

Desconfio de que vou morrer antes dos cinco meses. Sucesso este que decerto comoverá poucas pessoas. Esta história pessimista, que venho redigindo há exatos onze dias, não atingiu, não fisgou os ariscos leitores. Só uns gatos-pingados, como que movidos por compaixão, emitem meia dúzia de palpites. Domingo retrasado, por exemplo, foram apenas três leitores a opinar acerca do meu relato. O próprio editor do blogue, que no início se empolgou com a minha “coragem típica de um verdadeiro lutador das letras”, mostra-se hoje menos entusiasta quanto ao ibope de minha “escrita arrebatadora”.

Há indivíduos que sequer conseguem distinguir o gênero literário exposto. Alguns julgam se tratar de uma mera ficção, um conto ou coisa de menor relevo. É isto. O malogro destes capítulos dominicais (aproveito para explicar que se trata de um romance autobiográfico, uma autobiografia romanceada, no mínimo) tem a ver com a desimportância do escriba em cena. Assumo a minha mediocridade.

Conforme eu já disse, dispensei a quimioterapia e tenho consciência de que isso, assim como o doutor Epitácio Coelho me advertiu, deve encurtar significativamente meu tempo de vida. Os sintomas vêm se repetindo cada vez mais. Urina escura, perda rápida de peso, falta de apetite, náuseas, episódios de vômito, dor no abdome e fezes esbranquiçadas se revelam com velocidade assustadora. A gencitabina, o irinotecano, a oxaliplatina e o leucovorin, medicamentos que o oncologista me convenceu a usar no dia seguinte ao diagnóstico, parecem um tanto menos eficazes a esta data. O cansaço físico e indisposição até para escrever também são uma rotina.

Ainda assim, porém, vou persistindo. Não me resta nada de mais digno a fazer. Após minhas abluções, preparo o café, como um pão com manteiga e uma fatia de queijo, ligo o computador e começo a registrar meu cotidiano e, por vezes, trago à tona algumas reminiscências, memórias de meus anos mais verdes, de minha infância e mocidade nesta Mossoró sem honra e sem glória tanto quanto eu. É necessário que se declare. Esta cidade, ao menos do ponto de vista administrativo e cultural, é uma farsa absoluta, um embuste, uma fraude grandiloquente, megalômana.

Nosso ego coletivo é mastodôntico, descomunal, entretanto não temos semancol, autocrítica. Há quase um século (2027 está chegando) sustentamos um heroísmo quixotesco, um embuste libertário, uma história lampiônica sobre valentia; liberdade vendida desde sempre na imprensa escrita, falada e televisionada. Somos, este município e eu, impostores. De quando em vez, como se pode observar, entrego a cara à tapa, reconheço o meu fracasso no âmbito das letras, minha estatura microbiana no cenário da literatura tupiniquim.

Houve uma época, façamos justiça, em que tivemos grandeza, respeito, dignidade, honradez; cidadãos sérios no comando administrativo. Os habitantes desta urbe, os mossoroenses de antanho, não eram os arrivistas e picaretas de agora. Em particular os gestores, os homens e mulheres públicos. Degeneramos! Depois de 1927 para cá, quando os defensores desta então província começaram a ser menos homenageados ou estudados do que os invasores, a vaca foi para o brejo.

Descambamos para uma terra do faz de conta, da pirotecnia, do foguetório e do engodo, da politicagem, dos oligarcas, do monopólio político e, mais recentemente, dos falsos libertadores. Por décadas a fio, feito uma chaga, uma ferida incurável, foi entrando e saindo, saindo e entrando pilantras de toda espécie na administração pública desta enganosa capital da cultura. Ache ruim quem quiser! Aqui está o sujo falando do mal-lavado, todavia alguém precisa fazer algo de inaceitável neste município; nem que seja dizer a verdade.

Há muito os prostíbulos do Alto do Louvor fecharam as portas, o meretrício agora é virtual, acertado e consumado por meio das redes sociais e via WhatsApp. Findou-se aquela zona dos prazeres remunerados, contudo possuímos uma Câmara de Vereadores e um Palácio da Resistência que corrompem e se deixam corromper. Tudo na mais completa cara de pau. Nosso Executivo, o majestoso Palácio da Resistência, sob a batuta do contente e serelepe prefeito Jorge Copperfield, é apontado por quatro ou cinco jornalistas, tipos entrincheirados em blogues de minúscula projeção e cujo impacto não chega nem a fazer cócegas no inquebrantável burgomestre, como um antro de negociatas e desmandos. A “casa do povo”, na ótica desses blogueiros, transformou-se em uma casa de tolerância, um randevu oficial. É o que denunciam.

Pois bem. O mandatário da Prefeitura Municipal de Mossoró, esse bom-moço que por vezes parece uma gazela saltitante, de acordo com matérias veiculadas pelos referidos blogueiros, é uma espécie de agiota, um craque na cobrança de (segundo têm alardeado) dez por cento de propina. A questão é que até o presente instante nada de concreto e desabonador foi efetivamente provado contra o populista mandachuva do Palácio da Resistência. O homem prossegue intocável perante o Ministério Público e a Controladoria-Geral do Município. A galinha dos ovos de outro do senhor Copperfield é a Estação das Artes Elizeu Ventania e valioso pedaço da Avenida Rio Branco, espaços onde a profusão de pão e circo para a manada lhe asseguram popularidade e aprovação por parte dos munícipes como nunca visto na terra de Santa Luzia. O bom-moço é por demais competente na captura e hipnose dos seus eleitores.

Basta! Não estou a fim de malhar em ferro frio. O dono de Mossoró, sem qualquer importunação do Ministério Público, do Tribunal de Contas nem da Controladoria-Geral do Município, segue de vento em popa rumo ao governo do estado. Sim. O próximo cargo de governador é dele e o boi não lambe. Parece acima da lei, do bem e do mal; não possui predador, adversário que ameace sua campanha para o Palácio de Despachos de Lagoa Nova. Isso me parece tão certo como dois e dois são quatro. Copperfield, prestidigitador dos mais hábeis da política brasileira, caminha para cima e para baixo com um sorriso (embora teatral) de orelha a orelha. Revelou-se um estrategista precoce, um fenômeno no aboio da manada com todos os méritos.

Enquanto isso, à Rua Pedro Velho, no Santo Antônio, um sapateiro das letras se encontra chovendo no molhado, fazendo projeções que não representam novidade nenhuma. Esse apalazador sou eu mesmo, Fernando Barros, um obscuro operário das letras desta freguesia indiferente aos meus esforços e dedicação à língua portuguesa. Mas não pendamos para a autopiedade, para o vitimismo ou a estratégia autoacusatória. Apesar da saúde debilitada, rondado pela Moça da Foice, tento produzir e levar adiante estas linhas prolixas, verborreicas e sem rutilância.

Eis o meu pequeno drama: um autor sem leitores, um narrador moribundo que não reúne outra virtude à exceção da teimosia, da perseverança e renitência em se extinguir na memória, na lembrança do meu berço de nascença. No fundo, entretanto, sei que esta aldeia já sepultou a memória de manejadores do nosso alfabeto de importância muito superior a mim. Não importa. Não vou perecer duas vezes, morrer no improvável além-túmulo se Mossoró tratar minha trajetória e devoção à escrita como um risco n’água, uma partícula de cinza ao sabor da ventania. Fazer o quê?!

Quando me for não levarei nada. Ainda menos reconhecimento e louvores. Este cu de judas já possui seus eleitos, os seus queridinhos oficiais e juramentados. Este vasto epitáfio passará despercebido ou, decerto pior, será solenemente ignorado. Não, administradores filhos da puta. Peguem as suas cartas marcadas, suas homenagens mesquinhas e metam no rabo. Admito que estou dando valor demais ao que não vale uma flatulência. Estará de bom tamanho se, ao menos, um livro meu ganhar uma edição póstuma.

Ainda não me movimentei nesse sentido. Tenho dois mecenas em vista, intelectuais com profissão definida e não meramente operários, reféns deste sacerdócio da pena e do tinteiro. Os indivíduos aos quais ora faço alusão têm panos para as mangas e notória sensibilidade diante de fodidos como eu, escravos da escrevinhadura. Há mais de uma semana venho recebendo o auxílio-doença aprovado e liberado pela previdência social, um tantinho a mais que o meu antigo salário de vendedor na loja de peças de automóveis. O detalhe é que esse recurso mal atende minhas necessidades mais básicas: comida, água e luz. Não disponho de meios com que mandar imprimir a simbólica tiragem de um cordel, gênero versífico com o qual alguns cordelistas bafejados pelo Palácio da Resistência obtêm custeio e exibem admirável êxito neste paraíso do cangaço. É isso. Um adestrado grupinho está por cima da carne-seca.

Trata-se, convenhamos, de uma pequena esmola que o governismo destina a esses meritórios cultores do verso rimado e metrificado. É bom destacar que nesse meio existem aqueles que produzem cordéis do pé quebrado, com rimas, métrica e oração defeituosas, poeticidade e literariedade ruinzinhas. De qualquer modo os cordelistas eram bem menos prestigiados na era dos políticos oligárquicos, que dominaram esta freguesia e inclusive o estado por dezenas e dezenas de anos.

Nem preciso dizer que estou fora dessa turma. Escribas de outras modalidades de escrita têm adquirido, depois de muito rastejar e puxar o saco do mandachuva, algumas esmolinhas para ajudar a bancar a impressão de contos, crônicas, poesia de versos livres e até, volta e meia, surge na praça um romance apoiado financeiramente pelo Palácio da Resistência. Jorge Copperfield, ao que tudo indica, não vai com a minha cara. O rapazinho dissimula, finge desconhecer a minha existência, minha trajetória no universo literário. Para ser coerente e justo, não tiro a razão dele. Nunca joguei confetes sobre o jovem alcaide. Ao contrário, admito, fui insubmisso e pouco tolerante com as escaramuças, com as tramoias contratuais, as obras superfaturadas do nosso imbatível e futuro governador do Rio Grande do Norte. Se Deus quiser! Pois, Deus não querendo, aí não tem jeito, não tem remédio. O bom-moço vai beijar a lona, dar com os burros n’água. Particularmente, isso me parece um caso improvável.

De resto, com muita lábia e espetaculosidade, esse menino prodígio vai longe. Acho que, depois da governadoria, pode se lançar a senador ou presidente da República. O céu é o limite para o prefeitinho Copperfield. O bom-moço, como nunca visto neste cafundório, é uma faca de dois gumes. Corta dos dois lados. Como eu escrevi há um ou dois anos, ele consegue manter um pé na cabeça dos católicos e o outro sobre a moleira dos protestantes. Isto é, serve a dois senhores (ou duas religiões) e tem se saído muito bem. No tocante à manipulação do gado, é necessário e justo que tiremos o chapéu para o dono de Mossoró. Ele é um dínamo! Tem mais selfies no Instagram com o rebanho do que poros sobre a pele. Possui milhares de seguidores em suas redes sociais. Crê tão piamente nas mentiras que conta a ponto de ele mesmo acreditar nas próprias lorotas. É simpático, aprendeu a suportar o cheiro do suor do povo humilde e fez a cabeça de todo mundo. Jorge Copperfield é imparável.

Deixemos o burgomestre com suas agiotagens e parlapatices. Voltemos à minha miudeza, insignificância, obscuridade. Pressinto que meu descontentamento com o senhor Copperfield está beirando a inveja. Com ou sem honestidade, o rapaz é bem-sucedido, é um vencedor, tem origem humilde (o que não significa dizer que tem humildade), enquanto este narrador das imposturas municipais não dispõe de ninguém que segure a sua mão no derradeiro momento da “extrema curva do caminho extremo”, como no célebre soneto de Olavo Bilac. Devo encaixar no meu orçamento, sem demora, ao menos a contratação de um plano funerário.

Se o parasita do Ricardo Gurgel não tivesse morrido, eu o teria chamado de volta para esta casa e ele certamente cuidaria da porra do meu velório e sepultamento. Mas agora o michê se encontra debaixo de sete palmos de terra. Estou, volto a dizer, fodido e mal pago. Penso que mereço este fim melancólico. Sempre fui um elemento caridoso, tinha prazer e senso de obrigação em ajudar os desvalidos, entrementes possuo uma índole ruim.

São raras as noites em que ponho a cabeça no travesseiro e não demoro a dormir imaginando foder uma porção de percevejos sociais. Gente graúda, potentada, podre de rica e escrota. Tenho essas psicoses, anseios destrutivos, sanguinários. Não atingiria, porém, o matador de Ricardo Gurgel. No fim das contas o sujeito me fez um favor. Torço até que não caia nas garras da polícia.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

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