Por Marcos Ferreira
Imaginei que hoje não me colocaria, como se diz bem-humoradamente, entre a cadeira e o teclado. Minha falta de motivação, a exemplo do que ocorreu durante o tempo quase inteiro, era o principal motivo (senão o único) para quebrar a sequência de relatos que venho sustentando e expondo há quase um mês. Esta periodicidade, sendo agora mais preciso, alcança hoje vinte e quatro capítulos consecutivos. É verdade, devo reconhecer, que ao longo desse curso deixei de cumprir essa proposta uma ou duas vezes. No entanto, como o leitor mais atento e rigoroso pode verificar, expus estes relatos com a sequência e números diários sem prejuízo para o ambicionado projeto. Neste instante, que me limitarei a citar que se trata apenas de uma sexta-feira de outubro, toco em frente esta espécie de diário lastimoso, pessimista. Isto, em particular, porque atravessei uma noite por demais horripilante de ontem para hoje. Sonhos conturbados todo mundo os tem, mas o que tive há algumas horas foi algo sobrenatural.
Refiro-me a um sonho absurdamente chocante. Um pesadelo dentro de outro pesadelo. No primeiro, em plena madrugada, eu estava sentado num banco diante do Cemitério São Sebastião. Fazia um frio incomum e uma fina neblina se formara naquele trecho em específico. Daí a pouco avistei nitidamente, olhando-me da porta do campo-santo, uma mulher descalça, talvez na faixa dos quarenta anos, bonita, de vestido vermelho, olhos e cabelos negros e pele muito alva. Sim, a distância entre mim e ela era pequena; o banco onde eu estava ficava próximo do portão. Então veio até mim. Antes de ela chegar, caminhando com passos lentos sobre a grama orvalhada, levantei-me. Senti que o corpo inteiro se arrepiara. Contudo, embora com angústia, permaneci ao lado do banco.
Como se tivesse conhecimento de meu câncer, foi dizendo com voz suave e enternecida: “Vamos lá, Fernando. Chegou a sua vez. Peço que me acompanhe. Sua permanência nesta dimensão terrena já expirou. Não tenha medo”. Acordei de súbito, trêmulo, suado, de olhos arregalados. Foi aí que me dei conta de que estava deitado em um caixão na minha sala, o corpo rodeado de pequenas flores cor-de-rosa e brancas. Minhas mãos se achavam cruzadas sobre o peito. Tentei me mexer, descruzar os dedos e sair do esquife, todavia não consegui mover um dedo sequer. É como falei: aquela dúzia de pessoas estava ao redor com semblantes graves, carrancudos.
Entre os circunstantes, mesmo um tanto de soslaio, reconheci Paulo Soares, meu ex-patrão, e alguns amigos da loja de peças de automóveis, onde trabalhei. Além desses, para piorar o estarrecimento, achavam-se perfilados à minha direita, para perto dos pés, Ricardo Gurgel, Leopoldo Nunes e Roberto, aquele amigo de Leopoldo e seu colega de trabalho como caixa do supermercado. Vi-me cheio de pânico. Tive um ímpeto de soltar um grito, mas, além de imóvel, estava emudecido. Aquilo era impossível. Esses três últimos indivíduos foram mortos e enterrados. Não poderiam, então, me velar naquele féretro, na sala de minha casa. Pois bem. Não conseguia me mexer nem proferir uma só palavra. Esse momento foi mais assustador do que me deparar com a desconhecida diante do São Sebastião. Após alguns minutos, felizmente, despertei. Era pouco menos de três e meia. Não mais consegui retomar o sono. Passei a manhã e a tarde desanimado, sem motivação para nada. Neste início de noite, enfim, ponho-me a relatar os minutos aterradores que passei em meio às brumas do sono.
Dessa maneira, portanto, como se isto pudesse extrair de minha cabeça a memória, os instantes de terror da noite passada, decidi escrever, verbalizar ocorrência tão desesperadora, deixar por escrito o registro do tormento da minha morte sonhada. Quem sabe até um sinal de que posso estar bastante próximo de ser deveras levado à cidade dos pés juntos. Felizmente, por mais que aquilo tenha me parecido tão real, ainda não foi desta vez que fui de fato parar na sepultura. Neste exato momento, devo admitir, sinto-me aliviado. Narro o funesto episódio (dois, na verdade) com o coração apaziguado, sem o horror, sem a possibilidade de ser enterrado ainda vivo. Isso mesmo! Embora estirado no caixão, cingido de flores, eu me encontrava bem vivo. Aos demais indivíduos que estavam à minha volta, entretanto, não duvido de que tivessem plena certeza de meu óbito. Aqui redijo, reporto semelhante agonia, entrementes estou cônscio de que preciso tirar esses minutos terrificantes do pensamento.
Marcos Ferreira é escritor
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