domingo - 20/04/2025 - 10:34h
Tempo rei

O fogo eterno de Gilberto Gil em sua última jornada no palco

Por Caio Barretto Briso (Do Canal Meio)

No palco, resultado de trabalho árduo, exigência máxima de si e equipe para qualidade no show (Foto: Tempo Rei)

No palco, resultado de trabalho árduo, exigência máxima de si e equipe para qualidade no show (Foto: Tempo Rei)

Gilberto Gil está no centro do palco, braços cruzados, guitarra no ombro, ouvidos atentos. É sexta-feira, dia de Oxalá, e o filho de Xangô veste branco dos pés aos cabelos. Não escolheu medicina, como o doutor José Gil sonhou, mas está mais sério do que médico em hora de cirurgia. “Tá esquisito. Não tô sentindo a harmonia”, diz o baiano de Ituaçu, 82 anos no mundo, quase 83.

O efeito de Gil insatisfeito é imediato e faz a banda emudecer. Bem Gil, baixista e diretor musical que escolheu cada um dos 15 músicos que os acompanham, responde rápido: “Vamos passar de novo e ver a harmonia pro meu pai”, e todos recomeçam Funk-se Quem Puder.

Tocam apenas três segundos. “Peraí, peraí, peraí, peraí”, interrompe Gil, erguendo os braços como um maestro. “Nesse tam tam ram ram tam tam tam tem uma coisa complicada”, repara, e todos tentam descobrir o que está complicado, ou quem está complicando. “Não é só a harmonia. Tem uma intervenção de alguém aí. Não sei se são as cordas.” Se o próprio Gil não sabe, como descobrir? Um a um, cada músico repassa suas notas. Depois de alguns minutos examinando as partes e o todo, Gil dá o diagnóstico: o problema “não é a execução, é a escrita” — a partitura da música.

Ninguém lembra a última vez que Gil cantou essa canção, gravada há 42 anos no álbum Extra. Ele mesmo demora a recordar os versos e pede ajuda à Nara Gil, sua primogênita, backing vocal e mãe do guitarrista João Gil, também no palco. Finalmente os músicos chegam ao primeiro verso: “É imperativo dançar”, ele canta, antes de parar o ensaio de novo, repetindo o verbo “dançar”, esticando a última sílaba, entoando a palavra de jeitos diferentes, buscando no baú da memória o tom exato.

Arrisca um agudo em “sentir o ímpeto”. “A nota é lá em cima”, observa, pedindo à filha e à nora Mariá Pinkusfeld, cantora e mulher do baterista José Gil — oitavo e último filho, também no palco —, que cantem mais alto.

Sua voz não estava alcançando o agudo desejado.

Ensaio e detalhismo

São os primeiros minutos de um ensaio da turnê Tempo Rei, a última de Gil, que está arrebatando multidões e lotando estádios por onde passa. Se o show tem sido definido como catártico e muitos outros adjetivos por quem o assiste, o ensaio no meio da turnê é, por sua vez, uma obra para poucos e ajuda a explicar o sucesso do espetáculo grandioso.

Flora Gil, mulher do artista há 43 anos e diretora da Gege Produções, já disse que ensaiar é o que Gil mais gosta de fazer na vida. Cada ensaio é uma costura, um dia de trabalho que começa difícil e vai se resolvendo aos poucos, ponto a ponto, linha a linha. No desafio de “repetir, repetir, até ficar diferente”, como escreveu o poeta Manoel de Barros, Gil tem a manha.

Por ser um processo com imprevistos e segredos, como os nomes dos convidados daquele fim de semana — Anitta no sábado e Caetano Veloso no domingo, nomes que precisam ser mantidos em sigilo até o momento final —, é incomum a presença de jornalistas nesse momento. E, ainda assim, lá estava eu, assistindo a um espetáculo particular de aperfeiçoamento. Aquele era um dia difícil para o artista e sua equipe, que também tem a filha Maria Gil na produção.

O motivo é que Preta Gil, que trata um câncer no intestino há dois anos e a princípio ensaiaria naquela sexta-feira para cantar a música Drão com seu pai no domingo, teve de ser internada em São Paulo e só ganhou alta no dia 17. Por isso Caetano foi convidado, fato que provocaria o momento mais emocionante desde a estreia da turnê, em março: os dois amigos cantando Super-homem (A Canção), no show do dia 7, com Gil muito emocionado e Caetano inseguro, segundo ele próprio, por Djavan estar na plateia.

Esperado no palco às 13h30 naquele ensaio de sexta-feira, véspera do show, Gil entra em cena às 13h29, mas estava no camarim havia uma hora. Cumprimenta de longe os músicos, que começaram a passar o som 20 minutos antes, enquanto é observado por uma legião de técnicos, produtores e assessores nas coxias, na frente do palco e até embaixo dele. Gil precisava ir embora às 16h e aproveitou até o último minuto para ensaiar.

Funk-se Quem Puder foi incluída naquela tarde no setlist para marcar a entrada de Anitta. A música entraria no meio de Aquele Abraço, um dos clássicos da música brasileira que ele escreveu logo após saber, no início de 1969, que iria para o exílio. Após Anitta subir ao palco ao som de Funk-se, a banda voltaria a tocar Aquele Abraço, só que num tom diferente: a pedido da cantora, em Sol maior em vez de Dó.

A “deusa-música”

A obsessão de Gil pela “deusa-música” — como ele a chama em Palco, primeira canção do espetáculo — está na forma minuciosa de Gil trabalhar. É um artista do detalhe. Não à toa o ensaio em que precisaria passar apenas três músicas — Funk-se Quem PuderSuper-homem (A Canção) e Aquele Abraço em outro tom — dura o mesmo tempo que um show inteiro, no qual ele canta 30 sem contar algumas vinhetas, como Retiros Espirituais.

“Ainda não tá clara essa harmonia pra mim”, diz ele, após 45 minutos passando Funk-se. Fora do microfone, Bem conversa com os músicos e combinam algo inaudível. De repente, a magia acontece e a música assenta. Nada mais incomoda Gil e tudo parece fluir. Mesmo assim, ele continua ensaiando a música por uma hora e meia no total — até ficar diferente. “Está bom”, diz, de repente. “A entrada da Anitta vai ser um alvoroço. O que temos agora?”, indaga, antes de Bem respondê-lo. “A mudança em Aquele Abraço e depois Super-homem.”

Além de mudar o tom, é preciso puxar o andamento de Aquele Abraço um pouco mais para frente. “Vamos cantar até a metade. Quando você sambar, a gente muda para uma levada de funk. Anitta entra e continuamos em Sol”, anuncia Bem, de 40 anos, mais velho dos três filhos de Gil com Flora. Bem cresceu sentindo um certo distanciamento do pai.

Era comum ele e seus irmãos passarem mais tempo com a empregada e o motorista — que apresentou a Bem, por exemplo, o Flamengo — do que com Gil, embora o jantar em família fosse sagrado. A música os aproximou. Aos 18 anos ele já tocava com o pai no Carnaval de Salvador. Aos 21, virou integrante oficial da banda. Hoje é um multi-instrumentista e braço direito do pai, seu herói, sua maior inspiração.

Gil pergunta que horas são. “Quinze horas”, alguém grita. “Temos tempo”, aquiesce, gostando da brincadeira. Ele está em pé há uma hora e meia e agora começa a dançar no palco, cantando em um tom mais agudo para fazer o papel de Anitta. Esse homem completará 83 anos em dois meses e parece de outro mundo. Não parou nem mesmo para beber um gole de água.

Enquanto isso, José, também diretor musical do show junto com Bem, fica de pé para se alongar. Apenas na hora de tocar Super-homem, Gil olha o banquinho ignorado antes de sentar. Logo nos primeiros acordes, um efeito especial é acionado sem querer, soltando faíscas para o alto a poucos metros do cantor. Ele está tão concentrado que não olha para as faíscas, nem sequer se move. “Ok?”, pergunta Gil às 15h54. “Ok”, responde Bem. Fim do ensaio.

O show

É sábado, dia do show. Para que tudo saia como planejado na véspera, um novo ensaio é marcado às 15h, desta vez com Anitta. Dura pouco tempo, cerca de 30 minutos. A cantora se empolga com a ideia de Gil repetir o verso Funk-se Quem Puder oito vezes, para que ela tenha mais tempo de subir ao palco entre uma e outra vez. “Assim é perfeito, Gil”, comemora Anitta.

O show está marcado para 20h, mas começará às 20h30. Enquanto Gil e a banda descansam nos camarins, um batalhão de bombeiros, seguranças, faxineiros, recepcionistas e vendedores de bebidas começa a chegar para o trabalho. Por volta das 17h, chegam também os primeiros fãs, que ficam horas esperando do lado de fora da Farmasi Arena, palco dos quatro primeiros shows no Rio de Janeiro.

Tempo Rei é a consagração de seis décadas de carreira de um dos gigantes da música, fruto de uma geração de artistas de fazer inveja a qualquer outra, de qualquer época, de qualquer país. Uma geração da qual também fazem parte Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, além de outros já falecidos, como Gal Costa e Tim Maia. De todos, ninguém está em melhor forma do que Gil — um homem, segundo sua comadre Fernanda Torres, de quem ele é padrinho do filho mais velho, “talhado para o palco, que nasceu para a estrada, com alma de Chuck Berry”.

Antes de estrear em Salvador, a turnê foi preparada ao longo de um ano inteiro. O diretor artístico, Rafael Dragaud, ainda tem no celular as anotações que fez durante a primeira reunião, no dia 1º de abril de 2024, quando Flora o convidou para a missão. “Estreia em março de 2025. Fazer algo histórico, mas não linear. Pensar na equipe de luz e cenografia. Apesar de ser a última turnê, uma despedida, tudo é recomeço, tudo evolui e retrocede ao mesmo tempo, o tempo todo”, lê Dragaud. Diretor e roteirista de TV experiente, responsável por reformular o Criança Esperança, da TV Globo, ele compara o convite a uma convocação para a seleção brasileira de futebol.

Após aquela reunião, Dragaud começou a pensar no conceito do show. Conversou com Bem e José, que tinham suas próprias ideias. Decidiram que o conceito seria o próprio Gil. “Eu tinha na cabeça que precisa ter um início impactante, começar pelas essências musicais de Gil, o início de carreira, chegar a Londres e depois enlouquecer de ácido — e, a partir de então, virar um flow musical, para que fosse histórico, para que fosse Gil, para que fosse não-linear e, principalmente, para que não fosse um show de despedida. Não é um fim de tarde, é um alvorecer”, reflete.

Para a equipe técnica, convidou profissionais como Daniela Thomas (cenografia) e Samuel Betts (iluminação). Daniela pensou em um vórtex, uma espécie de escultura em dois painéis que se entrelaçam sem se tocar. Além disso, há três telões gigantescos em LED no palco que transmitem o show em tempo real, a partir das imagens de 14 câmeras, entre elas um drone que sobrevoa Gil, sua banda e a plateia. É uma forma de usar as câmeras como nunca se viu em um show no país.

Além disso, houve um esmero nos vídeos que são exibidos: as imagens de uma romaria, na música Procissão, foram gravadas na cidade natal de Gil. O céu que aparece nos telões não é de qualquer lugar: é o céu de Ituaçu, da infância do pequeno Beto, como era chamado em casa.

Temperatura altíssima

Às 20h30, o show começa. Não por acaso, o primeiro verso cantado é “subo neste palco”. É a música que Gil compôs nos anos 80 quando pensou em parar de cantar. As primeiras três canções (PalcoBanda Um e Tempo Rei) já abrem o espetáculo com a temperatura altíssima — e ela não cai em momento nenhum.

Em seguida vem o mergulho na história do menino que sonhava ser Luiz Gonzaga, o moleque que começou na música tocando um dos instrumentos mais difíceis, o acordeon. Como a ordem das músicas não é cronológica, a canção que representa a influência de Gonzagão é um forró de Dominguinhos e Anastácia (Eu Só Quero um Xodó), que Gil gravou em 1973.

Gil tocou sanfona no grupo Os Desafinados, em Salvador, entre 1959 e 1961. O ano em que a banda nasceu foi o mesmo em que João Gilberto lançou seu álbum seminal, Chega de Saudade. Gil, que já estava encantado com o violão de Dorival Caymmi, apaixonou-se pela batida do pai da bossa nova. Logo o violão Di Giorgio que dona Claudina comprou na Mesbla para o filho se tornou seu amigo inseparável.

Enquanto alguns músicos têm rituais estranhos antes dos shows — Keith Richards, por exemplo, sempre come uma torta inglesa com carne e creme de batatas, enquanto Beyoncé reza e usa uma cadeira de massagem enquanto é maquiada —, o que Gil gosta de fazer é tocar violão. E como ele vai embora assim que o show acaba — para não ficar preso nos abraços e depois no trânsito —, costuma receber convidados antes das apresentações.

Um dos momentos emocionantes é quando Gil canta Refazenda, que ele apresenta como parte de uma espécie de trilogia de sua obra, que inclui também Refavela e Realce. Gil conta que ele e sua irmã, Gildina, não foram à escola no primário porque a avó os alfabetizou em casa. A Refazenda refere-se a Ituaçu, base de toda a permanência do mundo rural que não sai de Gil. “Todos os lugares do interior que vi no mundo me remetiam a Ituaçu, que ocupa uma função mítica na minha vida”, disse uma vez. Ele considera Refazenda a primeira música filosófica de sua obra.

A impressão que se tem durante o show é que se trata de um espetáculo cênico que não deve nada às grandes produções internacionais que chegam ao Brasil. E que se coloca acima de outras grandes turnês recentes, como A Última Sessão de Música, que marcou o adeus de Milton Nascimento dos palcos. O show de Gil é uma raridade: mal acaba e já dá vontade de ver outra vez. Passa uma semana e seu eco continua reverberando em quem o assistiu, como um bom filme ao qual voltamos em pensamento involuntariamente.

Para quem tem ao menos 35 ou 40 anos de idade, é um mergulho na própria história, embalada pelas músicas de Gilberto Gil em suas muitas fases.

Quando o show caminha para o fim, as luzes iluminam a plateia e o que se vê é uma multidão de olhos marejados sob impacto de algo profundo que acabou de acontecer — algo que nos torna maiores do que antes do show e que poucos conseguem definir com exatidão. Não é raro ouvir frases como “é o melhor show da minha vida”. Todos os grandes temas da obra de Gil estão presentes: amor, separação, liberdade, morte, Deus, tempo.

A vida é sempre ruim e sempre boa ao mesmo tempo, acredita Gil, com seu estoicismo baiano, seu taoísmo sertanejo. Enquanto todos se deslumbram com o que viram, ele volta correndo para o camarim já sabendo o que precisa melhorar para o dia seguinte. Marca um novo ensaio às 15h de domingo, antes de mais uma noite inesquecível.

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Categoria(s): Cultura / Gerais

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