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domingo - 31/10/2010 - 09:14h

O legado de Irmã Aparecida


Irmã Aparecida nasceu Letícia Rodrigues Duarte e logo foi adotada pelo casal Francisco Ferreira Duarte e Francisca Rodrigues Duarte.

Em verdade, Letícia era filha de um irmão de Chico Duarte, ou Chico Lequeter, comerciante de secos e molhados na rua da Frente, viúvo e com muitos filhos que, em 1920, casou-se, em segundas núpcias, com Chiquinha Duarte.

"Madrinha Chiquinha", como era tratada por todos nós, cearense do Ererê, mas recém-chegada do Rio de Janeiro, além de outros predicados, aprendeu, nesse período que viveu na Cidade Maravilhosa, a guiar carros. Arrimado nisso, o velho comprou um “Ford de Bigode”.

Portanto, a primeira mulher a dirigir automóveis em Mossoró foi a mãe de Irmã Aparecida. Inclusive, a própria Irmã Aparecida contou-me que, certa vez – a família já morando na fazenda Barrinha dos Duarte –, estavam a caminho de Mossoró, quando o carro apresentou um problema: pneu furado.

Madrinha Chiquinha foi quem tomou as providências para a mudança do pneu, enquanto ela e seu pai, que já apresentava idade avançada, assistiam às providências sob uma árvore frondosa.

Madrinha Chiquinha executava o serviço reclamando que o carro estava ficando velho, quando ouviu do velho Chico que, logo, logo, compraria um carro novo e tudo estaria resolvido. Madrinha Chiquinha aproveita o diálogo e adverte: “Mas, no carro novo, não vamos carregar couros fedorentos, não é mesmo?”

Fazia referência ao cacoete do velho em transportar produtos de seu curtume no carro de passeio. Ele não se altera e devolve com mestria: “Nem galinhas!”; pois Chico Lequeter guardava na “manga” o trunfo do fato de Madrinha Chiquinha sempre levar uma galinha de presente para alguém em Mossoró.

Riram juntos, recordou Irmã Aparecida.

Além da alegre e saudável infância na Barrinha, lembro de Irmã Aparecida comentando sua juventude no Colégio das Freiras e dando especial ênfase ao momento decisivo de sua opção pela vida religiosa. Filha única, teve o apoio incondicional dos pais, porém, seguido de incontrolável e saudoso pranto que a fez temer pela saúde deles, principalmente do pai que, à época, já era um senhor na faixa de setenta anos.

Sempre ressalvava a participação e apoio decisivos do irmão e médico, Duarte Filho – depois, senador da República -, para que sua ida ao convento fosse a menos traumática possível aos pais.

Após longo período de formação em Salvador, aconteceu seu retorno para Mossoró. E, na terra de Santa Luzia, fincou bandeira e fez história, resultado de anos e mais anos na labuta diária do Colégio.

Nas últimas seis décadas, na comunidade mossoroense, não se pode falar no binômio religião-educação sem que o nome de Irmã Aparecida venha à baila. E a citação normalmente se faz em relação à sua postura austera, até mesmo inflexível ao bom comportamento e às boas práticas escolares.

Foi assim desde que abraçou a vida religiosa e educacional e, de forma retilínea, trilhou o seu caminho.

No recém-lançado livro "Massilon – Nas veredas do cangaço e outros temas afins "(Sarau das Letras, 2010), Honório de Medeiros, a certa altura, retrata uma visita que fez a Irmã Aparecida:

“É dezembro de 2006. Irmã Aparecida nos recebe, a mim e a Carlos Duarte, em seu gabinete no Colégio Sagrado Coração de Maria – o Colégio das Freiras, onde estudavam as filhas das elites de Mossoró, geração após geração. Tem o mesmo tipo físico de Dona Bernadete e Dona Iracema. Nela, entretanto, o hábito de comandar deixa-se perceber através das frases pontuadas de forma mais incisiva, como a evitar contestações. Irmã Aparecida, apesar da idade, ainda comanda o Colégio. Nada leva a crer, observando-se sua agilidade física e mental, que a aposentadoria esteja próxima.”

Não faz muito tempo e Irmã Aparecida apresentava agilidade e disposição que, pela idade, espantava. No entanto, nos últimos meses, seu frágil corpo não resistiu à doença.

Partiu deixando um legado de retidão de caráter inquestionável.

No chamado mundo moderno, onde se tocam fanfarras por coisas tão fúteis, a herança imaterial de Irmã Aparecida merece destaque; afinal de contas é plausível que o exemplo pessoal, na vida religiosa e na alçada educacional, ensina mais que elaborados discursos.

Assim viveu Irmã Aparecida: “Guardou a fé e combateu o bom combate”.

David de Medeiros Leite é professor da Uern, advogado e escritor

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Categoria(s): Fred Mercury

Comentários

  1. Francisco Rodrigues da Costa diz:

    Linda homenagem, à altura de irmã aparecida. Parabéns David.

  2. Lúcia Rocha diz:

    No ultimo dia 2 de agosto, aniversário de 98 anos do colégio das irmãs, estive lá para o café que ela ofereceu a alunos e ex-alunos. Ela própria entregava a cada um o lanche. Disposta, como sempre. Conversamos muito e ela ainda foi me deixar no portão. No mês seguinte, soube por David Leite, em Natal, que a mesma estava internada em Salvador. Tomei um susto e achei que não haveria de ser nada. Irmã Aparecida se foi, como viveu e trabalhou: anonimamente, percebida apenas por uma parcela que tinha laços de amizade e nutria respeito e admiração pela sua simplicidade e humildade, como são os servos de Deus. Cumpriu sua missão. Foi-se a mestra, ficou o exemplo, o legado. Nossa amizade remonta minha infância, porque além de ter sido minha professora e diretora, foi colega de turma de mamãe no mesmo colégio, a partir de 1935.

  3. Mary Costa diz:

    Parabéns!Uma homenagem muito valiosa!Não posso esquecer que no ano de 2001,quando meu filho começou a estudar no CSCM,fui renovar a matrícula e de repente,Irmã Aparecida,com a pasta na mão,olha para mim e recorda que meus pais moravam e trabalhavam na casa de Dr Duarte,desde novinhos e só saíram para casar.E nessa hora,ela fez grandes elogios aos meus pais,como pessoas humildes,simples,de confiança e toda a família tinha eles como pessoas de casa.Os respeitava e os admirava.E isso eu irei levar comigo para sempre.

  4. Honório de Medeiros diz:

    Parabéns, David.

    Seu texto honra a memória de Irmã Aparecida.

    Muito feliz sua citação do trecho da epístola de São Paulo, que lhe cabe como uma luva.

    Um grande abraço.

    Honório de Medeiros

  5. MARCOS PINTO - Da AAPOL e do IHGRN. diz:

    Biografia que emoldura a singela e humilde fotografia personalística de Irmã Aparecida. Como um perfeito artesão, o celebrado historiador David Leite perlustrou a tessitura de cenas,circunstâncias e ações que nos remetem ao sentido das coisas e da vida. Nesse ensaio biográfico há contemplações que suscitam êxtases, perplexidades, encantos e sobressaltos. Nada mais deslumbrante do que o vôo mental que o texto nos remete, dimensionando o lugar de Irmã Aparecida, no universo da ascensão espiritual e sem fim, para alcançar o liame da evolação, vínculo eterno de amor entre DEUS e a CRIAÇÃO. A história da Irmã Aparecida resume a figura de uma semeadora do bem, como instrumento insuperável,infinito,universal. Seus passos, firmes e perenes, percorreram as veredas do amor – irmanando,congregando,integrando, pacificando e harmonizando. Parabéns amigo David!

  6. Sebastião Almeida de Medeiros diz:

    Parabéns David Leite. O seu texto sobre a Irmã Aparecida está uma beleza. Tive o previlégio de ter casado com uma parente da Irmã Aparecida, por isso, mantive uma certa aproximação com a mesma na família e depois no colégio, quando os meus filhos estudaram naquele estabelecimento de ensino. Leonardo, meu filho mais novo, nunca gostou muito de estudar e no colégio, ele passou mais tempo mesmo foi cuidando de alguma coisa que a Irmã Aparecida arranjava para mantê-lo ocupado. A irmã, até o designou diretor do parque infantil e também jardineiro do colégio, pois sala de aula mesmo nunca foi o forte de Leozinho.
    Final de 2008, procurei o colégio e logo na entrada me deparei com a Irmã Aparecida. Prá ela fui logo dizendo: Irmã, preciso que a Senhora arranje uma vaga para o meu neto Leonardo Filho, que tem três aninhos e está ancioso para começar estudar. A irmã se aproximou de mim e foi logo perguntando: Sebastião, esse Leonardo Filho é filho daquele seu Leonardo que passou uns anos aqui no colégio dando trabalho prá gente? Respondí que sim e ela o batizou de “LEONARDO, O RETORNO”.
    Gostava muito da Irmã Aparecida. Devo a ela um pedaço grande da educação dos meus filhos.
    Que Deus esteja sempre com ela.

  7. Télescope diz:

    Quais foram as datas de nascimento/falecimento da Irmã Aparecida? Grata, Télescope

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