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domingo - 11/08/2024 - 09:34h

O registro

Por Bruno Ernesto

Foto produzida pelo próprio autor da crônica

Foto produzida pelo próprio autor da crônica

Antes mesmo de o ser humano saber que sabe, transformando-se em Homo sapiens sapiens, ele sempre procurou registrar o que acontecia ao seu redor; o que fazia, o que via, o que sentia. Suas experiências.

Embora a comunidade científica indique que a primeira forma de registro escrito, ou silábico, seja a escrita cuneiforme, usada pelos acádios, assírios e sumérios, há um ponto intermediário entre a protoescrita e o cuneiforme: os símbolos pictográficos, que datam cerca de 3.500 anos antes de Cristo, e cujo primeiro registro foi encontrado na antiga cidade de Kish, atual Iraque, numa pequena tábua de calcário.

Evidentemente, há registros humanos mais antigos, as famosas pinturas rupestres. Entretanto, não são considerados escritos silábicos.

O costume de registrar o que acontece cotidianamente, desde um simples café da manhã ou uma cena corriqueira, aparentemente comum e indigna de registro escrito para muitos, ascendeu uma nova fase com o surgimento das redes sociais digitais e, claro, registra-se muita coisa; em especial utilizando a fotografia, o que, de fato, é bastante interessante.

Se nos últimos quinhentos ou seiscentos anos, o registro escrito expandiu e se consolidou de maneira inimaginável, se você se atentar, aquele velho costume de escrever à mão, praticamente sumiu.

Não que não se fabriquem mais canetas, lápis grafite ou folhas de papel. Fique tranquilo, jamais deixarão de sê-los.

Se antes havia uma profusão de registros manuscritos, desde as sagradas escrituras, até os diários que toda adolescente mantinha debaixo do travesseiro e permitiu, inclusive, surgir o famoso Diário de Anne Frank, hoje, até mesmo as comandas dos restaurantes dispensam o papel e a caneta. Nem mesmo o jogo do bicho resistiu à modernidade.

Se você se atentar bem, andamos destreinados na escrita. Estamos passando a ser assinadores funcionais. Nunca mais vi um caderno de caligrafia.

Recentemente, me espantei ao perceber que é significativa a quantidade de pessoas que não escrevem com letra cursiva.

A respeito disso, lembro-me de um fato que presenciei nas dependências do Tribunal Regional do Trabalho em Natal, e que me chamou a atenção.

Havia um Oficial de Justiça, do qual não me recordo o nome, que era conhecido por ser sistemático em suas certificações no tempo em que os autos dos processos eram de papel.

Dava gosto de ver e de ler. Era quase como um pergaminho de tão bem escritos. A letra cursiva era belíssima.

Com a implementação do processo judicial eletrônico, certo dia, o diretor de umas das varas travou uma conversa um tanto tensa com ele, que se negava a adotar a certificação de forma digital.

Ele dizia que, a despeito do processo judicial eletrônico, ele continuaria a certificar suas diligências de forma manuscrita, pois ele tinha a satisfação de poder escrever diariamente e que bastava o diretor digitalizá-la e anexá-la ao processo eletrônico.

De fato, sua resistência não se dava por execrar a modernidade do processo eletrônico, mas, sim, em razão do seu amor ao manuscrito. Percebi, para ele, que era uma espécie de expressão artística e todos os advogados já sabiam quem era o autor daquelas belíssimas e incontestáveis certidões.

Semanas após, soube que o Oficial de Justiça acabou por pedir sua aposentaria.

Infelizmente, os tempos são outros e as novas tecnologias acabam por criar novos costumes e, por vezes, condenam ao esquecimento, ou encaminham para o desuso, certos hábitos.

Eu, por exemplo, em que pese a obrigatoriedade de trabalhar diariamente em frente a um computador, digitando e lendo mais de dez horas por dia, jamais abandonei meu bloquinho de notas e pilha de rascunhos. De modo que, ainda que de forma tímida, escrevo à mão diariamente e mantenho a mão firme e o traço forte.

Embora seja mais conveniente e, na maioria das vezes, uma forma mais fácil para algumas pessoas demonstrarem os seus sentimentos – especialmente para quem não fica à vontade para dizer certas coisas olho no olho -, a escrita jamais perderá o seu encanto. Se bem, que escrita registra de tudo; sejam mensagens boas ou ruins.

Apesar de tudo, ainda hoje, as escolas ainda mantêm o costume de os alunos do ensino fundamental escreverem cartões e recadinhos aos familiares nas datas comemorativas.

Eu mesmo guardei todos que meus filhos me deram durante todos esses anos e, vez ou outra, releio alguns e posso ver a evolução de sua escrita e, em especial, a forma como expressam seus sentimentos.

Penso que todos que têm a oportunidade de receber um registro escrito de demonstração de carinho e admiração, certamente também o guardará.

A respeito desses registros, lembro que certa vez, ao chegar à noite ao restaurante Cibó Qibó, na pequena cidade de Terralba, na Itália, me deparei com um caderno aberto que repousava num suporte logo na sua entrada, e percebi que havia um texto manuscrito, cuja letra era de alguém que não tinha tanta prática na escrita.

No primeiro momento, de longe, não consegui ler o que estava escrito nele. Entretanto, fiquei curioso e fui conferir de perto, e logo percebi que se tratava de um pequeno e interessante registro que uma criança havia feito. Certamente radiante de felicidade.

Nele estava escrito: “Hoje, minha mãe me fez uma surpresa. Na volta da escola, me trouxe para almoçar no Cibó Qibó!! Obrigado, mamãe! Giorgia Maira”

Fotografei o livro e, até hoje, penso que mãe e filha lembrarão daquele dia, cuja felicidade ficou gravada naquele pequeno registro.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica

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