Por Honório de Medeiros
Antigamente não havia feira, no interior, sem um espertalhão. Era o espertalhão de feira.
Chegava insidioso, se imiscuindo por entre as pessoas até um local apropriado, pousava a mala no chão, tirava o chapéu preto encharcado de suor, puxava um lenço amarfanhado do bolso e o passava no rosto e cabelo, abria a mala, sacava uma mesinha de madeira daquelas pré-montadas e a cobria com um pano que fora branco em alguma “era” passada, expunha vários frascos cheios de lÃquidos coloridos, olhava ao seu derredor, escolhia uma vÃtima após lançar um olhar experimentado para todos os lados e começava sua “latomia”:
“A senhora, é, a senhora mesmo, me ouça com atenção, porque estou vendo pela sua cor que a senhora apresenta algum incômodo no sangue. Tem dormido mal, de quando em vez, não é? Às vêzes tem sentido uma tristeza que demora a passar, não é? Algumas comidas não estão entrando bem, não é? É como digo, minha senhora, a senhora está com algum incômodo no sangue. Mas eu tenho a solução. E para o senhor também, e para você também, moça bonita. Porque aqui, nesta garrafa, está o mais potente destilado de uma erva que somente existe no coração da Amazônia, e que os Ãndios guardam como sendo o maior segredo deles. Essa bebida cura todo mal que se origina do sangue…”
E por aà vai.
O espertalhão de feira já formou um cÃrculo em seu derredor e prende a atenção das pessoas contando casos e mais casos nos quais a cura milagrosa se estabeleceu a partir de sua beberagem. São estórias escabrosas, produzidas e contadas para prender a atenção.
Voz tonitroante, olhar de águia para perceber quais são os mais impressionáveis, tiradas bem-humoradas de quando em vez, para estabelecer empatia com os ouvintes, poderia ser um estudo de caso de uma retórica firmada no dia-a-dia, na experiência brutal da luta pela sobrevivência, na prática permanente da mistificação.
Na outra ponta do centro da feira, outro espertalhão já montou seu “circo”: também em uma mesinha dispõe sobre a superfÃcie do pano branco uma bolinha de metal acobraeado e três copos de madeira escurecidos pela sujeira e convida os incautos a descobrir onde a bolinha está escondida, enquanto rapidamente os maneja de um lado para o outro.
Alguns dos incautos já ganharam uma pequena importância: isso faz parte do processo de atração das futuras vÃtimas – o primeiro dinheiro fácil – que começam ganhando e, no fim, sem ter notado, seu “apurado”, tudo quanto ganhou na feira, foi embora para os bolsos do espertalhão, misturado com cachaça ou conhaque barato e pedaços de carne de bode.
Em outro lugar cantadores de viola “simulam” um desafio enquanto alguém “corre o chapéu”. Não há peleja, não há repente, não há criatividade: tudo quanto é cantado já o foi Sertão a dentro, muitas vezes, em muitos lugares.
O público pensa que está assistindo um desafio quando, na verdade, está sendo iludido com versos decorados e antigos.
Os espertalhões de feira são como nossos polÃticos. E os “bestas” somos nós.
Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN * Clique AQUI e conheça o Blog do autor.
Ah que saudades do tempo em que os “espertalhoes” da feira eram os maiores enganadores do povo.
Os espertalhoes de hoje são ambiciosos alem da conta, sofisticados, e invariavelmente abandonam a ação individual para atuarem em grupos.