domingo - 02/03/2025 - 04:00h

Ouro em pó

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa da – Freepick/Vecstock

Arte ilustrativa da – Freepick/Vecstock

Estou deveras atrasado. Pois todos os meios de comunicação de Mossoró já divulgaram a ocorrência. A notícia (perdoem o lugar-comum) correu ligeira como um rastilho de pólvora. De qualquer modo, como a gente costuma ter a pretensão de contar as coisas de modo desejosamente invulgar, quem sabe artístico, vou descrever o que se passou na última quinta-feira em um supermercado bem pertinho do Conjunto Walfredo Gurgel, a uns quinze minutos de caminhada da minha casa.

Aqui, todavia, eu me reservo o direito de não citar o nome da bodega onde aconteceu a invasão. Não farei, portanto, propaganda gratuita do estabelecimento comercial em que presenciei o ataque de oito ou dez homens fortemente armados. Um dos fora da lei, sujeito atarracado, usando um boné verde-musgo que deixava entrever o cabelo grisalho e um bocado crescido escapando pelas laterais, portava o que me pareceu um fuzil ou metralhadora. Os demais empunhavam pistolas e revólveres. Mandaram todo mundo deitar no chão e jogar para eles os nossos celulares.

Presumi que nenhum de nós, deitados de bruços no piso gelado, sofreria qualquer tipo de violência física. Eu estava certo. Não encostaram um dedo em ninguém. O indivíduo atarracado, decerto de meia-idade, foi arrastando os celulares com os pés para junto de um expositor de bananas. Exigiu, com voz alta e firme, que ficássemos de cabeça abaixada. Imagino que nenhum cliente desobedeceu.

— Não olhem para mim! — rosnou o assaltante, que se virava a todo momento para a porta automática do supermercado. Quem ia chegando ele apontava a arma e mandava que ficasse na mesma condição de todos nós: no chão. Os recém-chegados, sem exceção, tiveram que depressa entregar seus celulares.

Bateu-me logo o receio de que levassem os aparelhos, alguns talvez arranhados pela forma como o elemento amontoou os telefones. Ficar sem meu celular em decorrência daquele assalto, obviamente, representava um transtorno administrativo e financeiro. Todos ficamos de cara no piso, a exemplo dos operadores de caixa e de um policial militar à paisana, que foi pego de surpresa e rendido. O pê-eme fazia um bico como segurança da loja. Ficou sem a arma e também sem o celular.

O samango era um cidadão de cabeça quase raspada, gorducho, cara redonda e rosada, orçando pelos cinquenta anos de idade. Deitou-se à minha esquerda, quase roçando meu braço. Pude notar que tinha a testa porejando suor e demonstrava um nervosismo que o deixava com as mãos visivelmente trêmulas.

Eu, apesar de me ver em uma situação como aquela, sentia-me, para a minha própria surpresa, por demais sereno, tranquilo. Tudo naquela perigosa empreitada, a meu ver, indicava que os invasores não estavam ali para machucar quem quer que fosse. O objetivo dos caras, que possuíam grandes bolsas de lona e mochilas às costas, não tardou para ser alcançado. Encheram as sacolas de lona e as mochilas com todos os pacotes de café dispostos nas prateleiras do inflacionado produto.

Presumo que a operação inteira não chegou a dez minutos. Saíram tão rápido como entraram. Nenhum dos telefones foi levado. Exceto a arma do policial. Catei o meu celular entre os outros e me mandei para casa, deixando no reduto da carestia as minhas poucas compras reunidas em uma cestinha de plástico de cor laranja. Quando umas quatro ou cinco viaturas da polícia enfim chegaram, os ladrões de café já estavam muito longe do alcance dos militares. Por via das dúvidas, só voltei ao supermercado depois das sete da noite. Preciso informar, embora falhando na sequência da narrativa, que o roubo do ouro em pó se deu por volta das quinze horas e trinta.

Aqui entre minhas vizinhas, especificamente na redação do Fofocas News, a queixa é grande em virtude do alto custo de um pacote de café. Dependendo da marca e do tipo da rubiácea, ninguém pode sequer chegar perto. Mesmo aqueles mais ordinários receberam aumentos de preço mais que absurdos.

Porém, desafiando o alto custo do ouro em pó, a tradição não morreu por inteiro nas nossas tardes-noites nas calçadas de Sayonara e Rucilene. É verdade que uma ou outra redatora do Fofoca News aderiu ao chá. Mas não é fácil trocar o pretinho cheiroso de outrora, mesmo com os preços pela hora da morte.

Rucilene, por exemplo, não deita fora a borra do café feito de manhã. Guarda para a tarde e mistura com uma ou duas colheres de uma marca mais em conta. O problema é que sai tão fraquinho que é possível enxergarmos o nome Duralex no fundo da xícara. Desse jeito, segundo protesta a redatora-chefe dona Raimundo, é melhor ficarmos no chá. Maria dos Navegantes, no entanto, não se dobra em face da prática de preços abusivos. Ela já vendeu até um rim para não abrir mão do café.

Nossa querida vizinha Cilene Freitas, também repórter do Fofoca News, convenceu o esposo, o senhor Arimatéia Garcia, a abraçar a proposta de um chazinho de camomila, erva-cidreira, chá-mate ou de capim-santo.

Aqui em casa, felizmente, volta e meia os amigos que me visitam me trazem de presente um ou dois pacotes do ouro em pó, além de umas bolachas, pães, bolos e queijo. É uma fartura total. Só tomara que os elementos que roubaram o café do supermercado não descubram isso. Que Deus me livre e guarde.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Aurineide diz:

    Muito bom! O texto além de bem escrito, chega a ser real, dentro do contexto atual! “Seria cômico se, não fosse trágico”!

  2. Ayala Gurgel diz:

    Meu amigo poeta, vc manipula as palavras e as faz obedecer tão bem que elas são capazes de dizer como se verdade fosse o que se encontra apenas na imaginação. Admiro-o e leio seus textos como se estivesse saboreando uma xícara da rubiácea 100% arábica

  3. ROZILENE FERREIRA DA COSTA diz:

    Muito bom dia, povo! Juro: quando comecei a fazer a leitura, acreditei piamente no desenrolar dos fatos ( risos). Óbvio: a trajetória, contundência e desenvoltura do texto, foram elementos decisivos para que eu tivesse este pensamento. Graças a Deus, graças a Deus, tudo não passou de uma bela ficção! Parabéns, nobre escritor: realmente você nos surpreende ( sempre!) com a riqueza literária, a qual está imbuída no instrumento da palavra. Muito obrigada por nos permitir fazer parte deste hercúleo espaço. Abraço em Nat.

  4. Inacio rodrigues diz:

    Excelente, e apesar da seriedade do tema, muito divertido! O ouro em pó não é o café! É tudo que sai da pena de Marcos Ferreira.

  5. Odemirton Filho diz:

    Belo texto, meu dileto amigo. Precisamos nos reunir novamente para colocar a prosa em dia. Apesar do preço, tomaremos, pelo menos, uma xícara do ouro em pó.
    Abração! Um carnaval de muita paz.

  6. Amorim diz:

    Relato real, eu acreditei pela forma narrativa.
    Uso pouco o ” novo Ouro negro ” mas essa semana fiquei estupefato com o preço de tal iguaria.
    Um abraçaço

  7. Francisco Nolasco diz:

    Boa, Ferreira…
    Ajeite a rubiácea que à tardinha passo por aí…. ia esquecendo: bote uma coleirinha em Juju!

  8. Bernadete Lino diz:

    Ainda estou rindo. Como o gênero é crônica, estava acreditando até chegar num determinado detalhe que me fez ver, mais uma vez (já aconteceram outras), que o nobre escritor usou a imaginação e surpreendeu. Ele sempre surpreende. Não vejo a hora de ser transformado em livro, o romance “A cidade que nunca leu um livro”. Quem tem imaginação é Marcos Ferreira! Parabéns, escritor! Não tomo café mas sempre compro para quem aqui chega e gosta do ouro em pó.

  9. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Comecei a ler o seu texto achando que era de “verdade”. E é se, tenho certeza disso, se demorar mais uns dois meses, o preço da rubiácea, como diz o caro cronista.

  10. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Que delícia, café com texto, coisas que nos são muito caras.
    Forte abraço.

  11. Airton Cilon da Silva diz:

    Na cidade de Pau dos Ferros, um cidadão adentrou numa casa de recurso de nome: Laboquita e queria pagar uma da meninas com pacotes de café. A confusão foi parar na delegacia, pois as garotas queriam o pagamento em dinheiro. Foto verídico. Abraos

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