Por Marcos Araújo
Semana que passou, Paulo Doido (veja AQUI) se foi para a eternidade. Fazia parte de um tipo social em extinção: o “doido” de rua; aquele que passa o dia em movimento, interagindo com os transeuntes. Sempre tive pendor especial em gostar desses tipos. Na minha infância, tinha “Ciço Doido”, vítima de perturbação dos moleques, objeto perene de minha defesa quando estava por perto. Mossoró, no passado, teve Zé Alinhado, que de tão célebre virou nome de rua…
Por assimilação com as esquisitices para um comportamento social padrão, assim como Ariano Suassuna, sempre gostei dos doidos. Meus amigos de infância, adolescência e idade adulta não passariam, decerto, por uma avaliação diagnóstica negativa de um psiquiatra residente. Nem eu, muito menos…
Na Antiguidade grega, a loucura tinha um caráter mitológico que se misturava à normalidade. O louco era uma espécie de ponte com o oculto. Para Platão, a loucura tinha como causa o desequilíbrio entre as três mentes (a racional, a emotiva e a instintiva). Na Idade Média, a partir da visão dos textos de grandes pensadores religiosos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, o comportamento anormal era tido como um pecado.
Para eles, o que separava o homem do animal era o dom da razão. Se o homem a perdesse, logo se reduzia a um animal. Graças ao médico francês Philippe Pinel, desde 1783 a loucura deixou de ser uma questão social para ser uma questão médica.
Sempre vi muita graça nos personagens loucos e/ou nos autores literários desequilibrados. Não são simples frases pronunciadas, são imorredouros epitáfios filosóficos. Quem já não replicou “ser ou não ser, eis a questão” (Hamlet, o personagem louco de Shakespeare)?
Lembrando o ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha, a “loucura é ter muita razão e pouca verdade”. Vivo em busca dos sonhos, longe, muito longe da sabedoria atual e do realismo mágico e do sucesso pregado pelos autores neurolinguistas (uma “praga” literária que se conta aos milhares no mundo todo!). Auguro valores e sentimentos que me afastam do bem-sucedimento capitalista de quem quer acumular.
Sou estroina e pródigo por excelência. Invoco em minha defesa Machado de Assis, e o personagem Dr. Simão Bacamarte de “O Alienista”: “Em si mesma, a loucura é já uma rebelião. O juízo é a ordem, é a constituição, a justiça e as leis.”
Michel de Foucault, na História da Loucura, diz que a sociedade possui “instituições de controle” (família, igreja, justiça etc.), que impõe a todos como agir, falar, vestir, enfim, como ser “normal”. Estar ajustado a esse padrão é ser normal, ajuizado, fora dele, é loucura. Fujo desta normose social. Sou confessadamente um ser fora do contexto social do equilíbrio, uma paráfrase viva do verso de Ferreira Gullar: “Uma parte de mim pesa e pondera. Outra delira.”
Em “Crime e Castigo”, Dostoievsky coloca na autoexaminação da consciência a detecção de sua própria valia: “A consciência é uma voz interior que nos adverte que alguém pode estar olhando.” Sinceramente, o que o pensar social não me importa muito. Sylvia Plath, autora inglesa depressiva e louca para os padrões comportamentais britânicos, em sua autobiografia “A Redoma de Vidro”, proclama: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, não a salvo a ninguém.”
Não ligo muito para as considerações alheias sobre mim. Eu sei quem eu sou. Carlos Drummond de Andrade sustentava que as nossas alucinações são alegorias de nossa realidade. A loucura é diagnosticada pelos sãos, que não se submetem a diagnóstico. Somos lúcidos na medida em que perdemos a riqueza da imaginação. Por isso, quero ser um sonhador eterno.
Voltemos a Santo Agostinho. A coisa com ele só piora. Para ele, a loucura é uma forma de pecado. Na obra A Cidade de Deus, Santo Agostinho diz que o pecado é uma forma de loucura espiritual que afasta o ser humano de Deus: “Pois que é a culpa, senão loucura? Ora, todo pecado é uma loucura: ou porque, cometido, se não teme o castigo, ou porque, temendo-o, não se resiste a cometer.” (Livro XIV, Capítulo 13).
Ora, se ser um “louco” já é um epíteto difícil, que dirá se reconhecer louco e pecador. Ninguém em sã consciência assim se diz. Shakespeare, numa fala de Hamlet, retrata bem a nossa covardia na autoexaminação: “a consciência faz covardes de todos nós.” O escritor irlandês Oscar Wilde, em “O Retrato de Dorian Gray”, confessa: “Há pecados de que se pode falar. Mas há outros, tão vergonhosos, que a boca os repele, os olhos os recusam a ver e o ventre, até os nega, afirmando que não são.”
Pois bem. Numa constatação consciente, descumpro todas as convenções sociais, fujo do estereótipo do controle da “máquina” realista, e dentro da minha liberdade de alma, proclamo com sinceridade a minha loucura e o meu pecado. Tomando de empréstimo novamente Dostoevsky, em “Crime e Castigo”: “Todas as pessoas são pecadoras e eu, mais do que ninguém.”
Lima Barreto, um dos mais geniais escritores brasileiros, perseguido e ignorado por ser negro e louco, no autobiográfico “O Cemitério dos Vivos” (1881-1922) escreveu que: “Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral.”
Alguém lendo este texto poderia pensar como a personagem Alice, do livro de Lewis Carrol (na verdade, o autor é Charles Lutwidge Dodgson, que em 1865, sob o pseudônimo de Lewis Carroll, publica a obra mais célebre do gênero literário nonsense, “Alice no País das Maravilhas”), que seria melhor não ter nenhum contato comigo. Relembrando o diálogo de Alice com o gato:
– “Mas eu não quero me encontrar com gente louca”, observou Alice.
– “Você não pode evitar isso”, replicou o gato.
– “Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco, você é louca”.
– “Como você sabe que eu sou louca?” indagou Alice.
– “Deve ser”, disse o gato, “Ou não estaria aqui”.
Viver neste mundo atual não comporta sanidade.
Simão Bacamarte tem razão: temos todos um pouco de loucura! Feliz é quem, em sã consciência, se assume…
Marcos Araújo é advogado e professor da Uern
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