Por Marcos Ferreira
Escurece. Melhor dizendo, anoitece. “Escurece”, forma do presente do indicativo, verbo transitivo direto, intransitivo e pronominal, pertence a um pretérito que hoje em dia é coisa rara. Há bastante tempo, com breves ocorrências, já não escurece. Isto no que se refere à comutação do dia para a noite. Quase ninguém se importa ou acredita que ainda temos crepúsculos, arrebóis. Porque mal a noite se aproxima, ao contrário de antigamente, eis que um sem-número de postes acendem suas luminárias de modo automático e eficaz. As primeiras vítimas desse progresso foram os acendedores de lampiões, trabalho cantado em verso e prosa quando nos tinha serventia.
Até as estrelas, agora com a geração cabisbaixa dos smartphones imperando, têm passado despercebidas na infinitude do espaço. A poeticidade da Lua, sobretudo se não for cheia, também fica prejudicada nesta era tecnológica em que um reles celular rouba a cena e põe uma quantidade astronômica de gente com a ponta do queixo colada no peito. Exceto pelos astrônomos e por alguns poetas que vivem na órbita da Lua, ouso dizer que a própria Via Láctea está caindo no ostracismo.
Em nossa casa, no universo de minha meninice, escurecia de fato. Conforme principiei, “escurece” estaria com emprego adequado. Porque as lamparinas de querosene daquele nosso domicílio de pau a pique, sem luz elétrica, sem água encanada, só eram acesas (duas ou três em pontos cruciais) quando a visibilidade estava deveras comprometida. Enquanto houvesse pelo menos penumbra, um lusco-fusco que permitisse nossa locomoção e tornasse certas coisas encontráveis, a minha mãe não gastava querosene à toa. A senhora Branca era autodidata em economia. Senso este que desenvolveu ao longo dos sessenta e dois anos em que esteve por aqui.
No terreiro de nossa casa, situada na Avenida Alberto Maranhão, 3521, lá no finalzinho dos anos setenta para começo dos oitenta, havia uma grande árvore, um flamboyant que à noite nos oferecia uma espécie de chão de estrelas, parecido com a metáfora daquela célebre canção do Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Sob a copa do flamboyant, a gente se reunia (nove irmãos) para ouvir a senhora Branca contando histórias de onça e de mal-assombro.
Agora as onças, em especial as onças-pintadas, sofrem ameaça de extinção. As almas penadas desapareceram das conversas de roda. Talvez porque as assombrações, a exemplo das onças, têm medo desta sociedade hostil que formamos. Durante séculos a fio a Terra inteira é massacrada por nós.
Corrigindo, enfim, anoitece. Há muitas luzes, porém existem incontáveis trevas sociais sem ao menos uma lamparina de esperança, uma luzinha no fim do túnel. Tanta coisa boa morreu para um monte de coisas boas nascer. Mas seguimos sem respeitar tradições, destruindo costumes, a fauna e a flora. A Natureza agoniza sob nossa ganância e descaso. O planeta começou a se voltar contra a nossa índole predatória, deletéria.
Qualquer dia tudo vai escurecer de vez. Parece que o Sol tomou as dores do globo terrestre e decidiu fritar nossa existência. O aquecimento global está aí como carrasco implacável sobre o cadafalso, só esperando a hora de aniquilar essa humanidade desumana composta por uma gigantesca soma de pessoas insensíveis.
Mais cedo ou mais tarde um antiquíssimo verbo retornará para um acerto de contas com o bicho-homem, único animal que devasta o próprio habitat. Trata-se do verbo retransfigurar. O mesmo conjugado por Deus na época de Noé. Receio que dessa vez não contaremos com uma segunda arca. Nem o Todo-Poderoso reenviará o Nazareno para salvar a nossa pele. Paciência, como se diz, tem limite. Não. Não haverá outra arca. Apenas choro e ranger de dentes.
O Inferno é aqui.
Marcos Ferreira é escritor