Por Marcos Ferreira
Passei o dia quase todo no fundo de uma rede armada lá no quarto. Às vezes não me sinto muito confortável na cama e faço uso dessa opção. Sobretudo no período da manhã e da tarde. O quarto não é quente, embora forrado com gesso. Ligo o ventilador e coloco uma cadeira perto de mim. Em cima da cadeira, ao alcance do meu braço, ponho os óculos e o telefone. Vez em quando (quase que um vício) dou uma olhada no celular e confiro um monte de questões e polêmicas que transbordam da internet. Vi, por exemplo, que a famigerada “PEC da bandidagem” foi enterrada no Senado. Uma vez na vida e outra na morte, felizmente, os políticos brasileiros nos surpreendem de forma positiva. Pois é, jogaram uma pá de cal naquela proposição mais que vergonhosa. O povo saiu às ruas em todo o Brasil, e a manifestação surtiu efeito.
Mudando de assunto, agora me encontro a tocar esta narrativa tão pífia quanto mal-alinhavada. Saí da rede por volta das quinze horas, deixei a cafeteira processando o moca e fui tomar um banho. Depois, enquanto o café terminava de pingar na jarra, liguei a torneira do quintal, desenrolei a mangueira e comecei a aguar aquele pedaço de terra onde plantei algumas sementes de jacarandá.
Parentes, salvo exceções, às vezes só nos trazem problemas, dor de cabeça. Hoje, ironicamente, sinto falta de ao menos um familiar; um tio, tia ou primos. Sozinho no mundo, sem um herdeiro consanguíneo, vejo-me nesta situação de não ter a quem deixar o pouco que adquiri no decorrer de vários anos; à custa de muito trabalho. Compreendo que o tempo é curto para conquistar alguém, arrumar uma pessoa com a qual eu consiga estabelecer um relacionamento amoroso. Devo, entre os bons amigos que possuo, providenciar os papéis e deixar meu espólio a algum deles. Seria uma forma de viabilizar a publicação dos meus livros ainda inéditos.
Posso, pensando melhor, dividir a herança entre o causídico Marcos Araújo, o engenheiro Clauder Arcanjo e o jornalista Carlos Santos, editor do blogue onde venho publicando aos domingos, pedaço por pedaço, esta narrativa agônica, nua e crua. Trabalhando em equipe, esses três confrades terão meios de lançar minhas obras, em especial os romances e o meu único livro de contos.
Os originais de poesia (cinco ao todo) podem esperar um pouco mais. Tenho preferência pelo lançamento dos quatro romances e os contos. Isto sem incluir este relato ao qual talvez eu não consiga fornecer um desfecho. Minha poesia é o gênero em que tive uma única obra publicada há mais de vinte anos em virtude de ela haver conquistado um prêmio em São Paulo. Uma grande parte foi exposta no Facebook e no Instagram.
Nos últimos dias fiz um apanhado desses textos avulsos, dividi em cinco volumes com títulos pretensamente atrativos e salvei os arquivos no meu e-mail. Com antecedência, claro, revelarei a senha aos meus prováveis editores. Se não estou equivocado, já se passaram quase duas semanas que não falo com esses três, ignorando os telefonemas e as mensagens que me têm enviado pelo WhatsApp.
Meu contato se limita ao editor do blogue, o qual persiste em puxar conversa, sempre tentando obter alguma notícia, entretanto eu o deixo sem respostas, sem informação alguma. Limito-me tão somente a destinar os capítulos desta história de saúde debilitada assim como eu próprio. Saio tão somente para fazer algumas compras inevitáveis. Sobretudo itens com os quais abasteço a geladeira. Não faço “comida de verdade”, a exemplo de feijão, arroz, cuscuz ou legumes. Quando a preguiça permite, preparo um macarrão com molho de tomate e sardinhas enlatadas. Aqui e acolá faço carne assada no air fryer. Afora isto, conforme tenho revelado diversas vezes, há o café. Consumo algumas frutas, a exemplo de abacate, banana e mamão, que passo no liquidificador com leite. Ia me esquecendo: também faço ovos mexidos.
Quanto a este silêncio, tenho absoluta consciência que terei que quebrá-lo. Preciso dar notícias aos hipotéticos editores, discutir o assunto das publicações póstumas de meus trabalhos literários e (repito) informar a senha do e-mail. Certa feita, há mais ou menos dez dias, um desses cavalheiros bateu no portão e me chamou umas três ou quatro vezes. Reconheci a voz um pouco rouquenha: era o prezado Marcos Araújo. Nesse domingo (recordo bem a data) ele já havia telefonado e enviado algumas mensagens de áudio pelo WhatsApp. Fiquei calado e ele foi-se embora.
Senti um certo arrependimento por não tê-lo recebido. Seria uma oportunidade de, enfim, revelar a minha condição de enfermo com um câncer inoperável. Essa ideia de torná-los meus herdeiros, o que financeiramente poderá cobrir com sobras os custos de publicação de minhas narrativas, está se fortalecendo aqui no meu bestunto. A menos que, por mais incerto que pareça, eu descubra alguém que se afeiçoe a mim e com quem me relacione; um indivíduo que apresente um bom caráter e que esteja disposto, livre para uma relação homoafetiva.
O que não sei, entretanto, é se disponho de tempo hábil para me deparar, conhecer e me envolver com sincera reciprocidade. A cada dia que se passa bate um grande desânimo, uma angústia e desesperança de encontrar, assim às pressas, um tipo no qual valha a pena investir, dedicar os poucos meses que me restam. Sei perfeitamente que agora o relógio está contra mim.
De qualquer jeito, bem lá no fundo do meu coração, existe uma fagulha de otimismo que sugere um improvável final feliz. Isto ocorrendo, espero estar com a saúde um tanto quanto estabilizada. Porque nenhum homem, por mais sensível e bem-intencionado que seja, não vai querer um morto-vivo.
Marcos Ferreira é escritor
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