Por Inácio Augusto de Almeida
No bar do Wellington, Lopes, Sandoval e IzaÃas continuavam tomando cerveja. A noite já adiantada. No céu, as estrelas formavam uma linda colcha de retalhos. Apenas o barulho do motor da geladeira era ouvido, quando o Lopes, fechando a mão, pigarreou. E, respirando fundo, começou:
– E estava Kung Fu-tse sentado num banquinho de três pernas, quietinho, meditando sobre os homens e suas relações, tanto para com a famÃlia como para com o estado, buscando uma definição, quando sem mais nem menos adentra ao pequeno recinto um brutamonte, que vendo aquele homem franzino, resolve escolhê-lo para mostrar a todos o quanto era valente.
E espanca Kung Fu-tse.Ainda no chão, Kung Fu-tse não demonstra estar surpreso com aquela atitude. Entende o ato de covardia. Só não consegue compreender uma coisa. E pergunta ao brutamonte:
– Por que fizestes isto comigo? Eu nunca te fiz o bem.
Sem entender, o brutamonte renova a agressão.
Kung Fu-tse renova a pergunta:
– Por que fazes isto comigo. Quando eu te fiz o bem?
O brutamonte apenas gargalha. Sente-se vitorioso, um mandarim. E na sua ignorância festeja a vitória.
Esta pequena história aconteceu há mais ou menos 2500 anos. Sim, cinco séculos antes do nascimento de Cristo. E que grande lição nos deixou Kung Fu-tse.
Lopes, o grande Boêmio (faz questão da maiúscula no boêmio), terminou de falar e ficou a analisar a reação dos seus ouvintes. IzaÃas, apenas coçou a cabeça. Sandoval foi que arriscou um palpite de uma forma meio tÃmida.
– Lopes, este Kung Fu-tse não é o grande filósofo Confúcio?
– AÃ, inteligência brilhante. Eu sabia que você conhecia o verdadeiro nome do maior pensador que já passou na face da terra.
IzaÃas, meio tÃmido, para não ficar calado, arrisca:
– Lopes, e a história? As pancadas que ele levou do brutamonte?
Lopes abriu o seu largo sorriso. E virando-se para Wellington, pede outra cerveja. É preciso fazer o suspense, e nisto o grande Boêmio é imbatÃvel. Encheu o copo, respirou fundo, bebeu um gole e resolveu continuar.
– IzaÃas, não me diga que você estava pensando que eu estava falando do Kung Fu daquele seriado da TV. Por favor…
– Não, Lopes, eu sabia que era do Confúcio que você falava.
Sandoval riu. Um riso discreto, mas riu. Lopes observou o riso do Sandoval e muito bem humorado, continuou:
– Vou repetir as palavras do Kung Fu-tse.
Sandoval não agüentou e explodiu:
– Lopes, deixa de qualiragem. Chama o homem de Confúcio mesmo.
IzaÃas, enchendo-se de moral, emendou:
– Aposto como o Lopes aprendeu hoje o nome do homem e fica bancando o erudito.
O bom Boêmio passa a mão por cima dos olhos, descendo por todo o rosto até ficar apertando o queixo. No gesto mostrava que buscava o autocontrole.
– Então os meus amigos não entenderam a moral da história?
Sandoval, que já estava com mais de seis cervejas na cabeça, não agüentou:
– Deixa de ser besta, Lopes. Para com esta cascaria. Vai, diz logo o que tem de dizer.
– É, fala logo, disse IzaÃas.
– Não entenderam. Não entenderam. Mas eu vou trocar em miúdos.
Wellington ria a não mais poder. Pela pose do Lopes e por estar entendendo bulhufas daquela lengalenga do Lopes.
– O que acontece se alguém a quem nunca vimos nos agride?
– Ficamos surpresos, apressou-se IzaÃas.
– Pronto. Aà está a resposta.
– Pera aÃ, Lopes. Mas ele disse, Confúcio disse. Aliás, você disse que Confúcio disse que nunca tinha feito bem ao brutamonte. Ora, se ele tivesse feito o bem, por que o homem iria agredi-lo?
Sandoval ouviu a argumentação do IzaÃas e baixou a cabeça. Lopes percebeu que Sandoval já tinha alcançado o sentido da história.
E foi com ar professoral, falando mais do que pausadamente, que o grande Boêmio, não sem antes colocar a mão no ombro do IzaÃas, disse:
– Voltemos à s palavras do grande Confúcio. Prestemos atenção no que ele disse: “POR QUE ME AGRIDES SE EU NUNCA TE FIZ O BEM?”
O bom Boêmio fez a pausa, Sandoval já não agüentava o riso preso.
– Você tem quantos anos, IzaÃas?
– Minha idade?
– Claro.
– Vinte anos.
– É por isso. Claro que é por isso. Quando você tiver quarenta, cinquenta, você não pedirá que lhe expliquem nada.
– Lopes, eu acho é que você não sabe explicar a fala do Confúcio.
Os olhos negros ficaram bem abertos, as sobrancelhas levantadas, o dedo em riste. Lopes era o retrato da indignação. Sandoval já não conseguia prender o riso.
– Quando você tiver os cabelos brancos, menino, vai saber o que acontece quando se faz o bem a alguém. O que se deve esperar. Entendeu agora a surpresa do Confúcio? Confúcio, claro, não é assim que vocês querem que eu chame o Kung Fu-tse. Mas não é por isso que devemos deixar de fazer o bem. Não devemos é esperar gratidão. Já a ingratidão, esta não deve causar surpresa a ninguém.
Sandoval parou de rir. IzaÃas começou a iluminar o rosto. E Wellington mostrou a sua dentadura mais do que branca. Aliás, a única coisa que tinha de branco, além da alma.
Inácio Augusto de Almeida é jornalista e escritor
Entender os homens, seus sentimentos e arroubos
não é tarefa das mais fáceis. A alma humana é imperscrutável.
Abraço.
Maravilha de Crônica, Sr.Inácio. Parabéns!