Por Rubens Lemos Filho
O pesadelo recorrente do detetive da Divisão de HomicÃdios: sentado na cabeceira de uma mesa gigante e cercado por todas as vÃtimas dos crimes que ele não conseguiu resolver. Na cavidade ocular, a marca comum dos mortos: sangue envelhecido. Também há intensas lesões nas cabeças baleadas.
– O que as vÃtimas dizem a você? Pergunta o interlocutor calculista à mesa do bar em penumbra.
– Elas não me dizem nada. Elas não têm nada a dizer. Elas me cobram tomando meu sono.
A cena é clássica em Fogo Contra Fogo, dos mais realistas filmes policiais modernos. O policial é Al Pacino e o diálogo ele trava com Robert de Niro, bandido sofisticado e implacável. Os dois se admiram, o que não impede o personagem de Pacino de plantar quatro definitivos tiros de pistola 9 milÃmetros em De Niro no clÃmax da história.
Pano caÃdo e surrado do teatro real, é no tormento de Al Pacino detetive que imagino a aflição de quem é ator desesperado da agenda diária de enterros de inocentes mortos na guerra vencida com cinismo e folga pelo crime.
Somos todos o desespero berrante em silêncio de carceragem sem delito. Presos em nossas masmorras domiciliares enquanto monstros assassinam, estupram, sequestram e matam para roubar. Trucidam policiais, invertem a ordem. Diante das câmeras, dos irritantes duelos de facções nas redes sociais, na omissão cúmplice dos (defo)rmadores de opinião, na sucessão de tragédias confundidas com numerologias ou estatÃsticas.
Ao percorrer cemitérios, vejo nos rostos colados em mármore ou cimento simples, enigmas de quem passou por um imenso portão misterioso e me espera. Pacientemente. O tempo já não conta pra eles.
Ao ler, indignado, o drama de mortes sucessivas, como as de Gizela Paiva (veja AQUI) e, agora, da jovem Karolayne (foto, veja AQUI), 19 anos e quimeras infantis (Karolayne entregou seu celular ao bandido na Zona Norte de Natal e caiu fulminada com um tiro no peito), rabisco meu roteiro particular.
Gizela, Karolayne e todos os cidadãos e cidadãs perdidos para o sadismo facÃnora, em mutismo arrepiante. Em torno de uma mesa imensa. A mesa da consciência geral. Eles e elas também não dizem nada. Nada têm a dizer. Nada cobram. Nem o sono coletivo.
Não são atrizes, atores.
São dores do bem que perdeu a guerra.
É nesses casos intrÃnsecos que sou literalmente a favor da pena de morte. Sem pena nem dó.
PolÃcia sem recursos, sem armas, sem equipamento necessário, sem contingente para conferir segurança. As jovens que perderam as vidas foram vÃtimas de um Estado desorganizado que finge não ver uma polÃcia maltrapilha. Choro por elas.