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domingo - 23/01/2022 - 04:10h

Poeticidade

marcos-ferreira-jan22 - Papangu na rede - Ilustração para crônicaPor Marcos Ferreira

Busco nas cerdas invisíveis do vento uma suave escova que deslize sobre meus cabelos despenteados. Hoje estou carente desses afagos imateriais. Quero o beijo da aragem. Deixo-me estar à janela de minha alma, com vista para a rua de pedras e areia trazida pelas chuvas. Há estrelas cintilando no céu, grilos e sapos executam suas típicas sinfonias nos escaninhos da noite. Alguns audazes morcegos, como pequenos aviões de caça furtivos, cortam os ares arrojadamente.

O rock metálico do trânsito indica que as pessoas têm pressa de viver. Sim, a vida pulsa sobre o paralelepípedo e nos corações, apesar desse desgoverno nefasto que atua em desfavor dos pobres, da maldade de sua política contra a mesa e o prato dos brasileiros. Meu povo, neste Brasil e cidade, come lagartos, carcaças, cartilagens, e cerca caminhões de lixo à procura de comida.

Estou sempre sujeito (quem não está?) às influências do meio. Ou, para ser mais preciso, às influências do inteiro, do completo, do geral. Da vida, do mundo, enfim. Exatamente. Sou, como todos somos, influenciável. Embora algumas vezes eu também exerça alguma influência sobre terceiros. Basta uma lua obesa no céu, como aquela que ora contemplo, para a minha alma de poeta suburbano pensar num verso estratosférico, numa estrofe e rimas de brilho emprestado.

A vegetação nos campos, como em toda parte, após muito tempo trajando o grave cinza da estiagem, cobriu-se de verde. O útero do solo voltou a ser fecundado e a procriar com o milagre da água que o céu tem vertido sobre nós. Que importa que os enxames de muriçocas estejam de volta com redobrado apetite por sangue? Isso, diante do benefício do inverno, é café pequeno.

Entretanto, por característica desta região semiárida, o astro-rei continua dando as cartas. Predomina na maior parte do tempo. Em Mossoró ninguém morre de hipotermia. Não há qualquer dificuldade, por exemplo, para secagem de roupas expostas nos varais. Desde os tecidos mais leves aos mais pesados, tudo fica sequinho em minutos. Mofo?! Nada de mofo! A umidade relativa do ar está quase ao nível dos nossos pés. Aqui se frita, como se diz, ovo no asfalto.

A máquina fotográfica de um relâmpago iluminou momentaneamente o quintal. Esperei por um trovão, mas ele não veio. Talvez tenha preferido não interromper a cantoria dos sapos e grilos. Sem pudor, um gato e uma gata se amam em algum terreno ou telhado próximo. Discrição nunca foi o ponto forte desses adoráveis seres de patinhas acolchoadas. Circula um vento úmido.

Apesar das chuvas, ainda não há fartura. Nem sei se haverá. Não para as pessoas humildes. Muitas continuam nos semáforos exibindo cartazes pungentes, pedidos de socorro. São indivíduos que não têm o que comer. Outros não têm o que vestir nem onde morar. Fala-se muito na fartura dos grandes empresários agrícolas, porém essa riqueza toda é somente para eles próprios. Vai tudo para os bolsos deles, cuja maioria parece incapaz de oferecer um pão a um doido.

Bom, hoje não quero me alongar. Vim apenas dizer, entre outras coisas, que uma orquestra de sapos e grilos cantadores, além de uma constelação intermitente de vaga-lumes, trouxe um pouco mais de poesia para estas minhas horas de ócio criativo. Deixo à margem, em prol do lirismo, a horrenda metáfora da fome representada por tanta gente podre de rica, mas miserável de espírito.

Nós até resistimos, damos voltas no corpo, suportamos uma vida sem pão, sem teto e sem outras dignidades que nos negam e furtam, entretanto creio que a gota d’água de nossa existência será o dia em que nos faltar poesia. Porque poesia é a chama, é a força que nos faz resistir e lutar por dias melhores, é o nosso talento e pendor para a superação, mesmo perseguidos por inúmeras adversidades e privações. Poesia é a nossa coragem para sorrir na cara da tristeza.

Portanto, que nunca nos falte poesia. Coisa esta que não representa meramente uma composição em versos, mas a graça, o encantamento que estar vivo deve significar. Daí advém a poesia escrita, que é o retrato literal da humanidade e do mundo. Se esses sapos e grilos cantantes, além dos morcegos nos seus voos acrobáticos, se tudo isso não for poesia, então não sei o que é poesia.

Marcos Ferreira é escritor

*Texto originalmente publicado na revista Papangu na Rede.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Cristiane dos Reis Braga diz:

    “Ode aos que resistem e ainda sorriem”, não um riso frouxo e descomprometido, mas a verdadeira alegria d’alma por coisas simples da vida. Cantemos sob a sinfonia de pardais da mangueira da casa ao lado. Bom dia.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida Cristiane,
      Boa tarde.
      Sim, estou com você: “Ode aos que resistem e ainda sorriem”.
      Que nossos corações cantem e nossa alma dance.
      Abraço e até próxima.
      Marcos Ferreira.

  2. Vanda Maria Jacinto diz:

    Bom dia, Marcos!
    Parabéns pela belíssima crônica!
    Como você bem o disse, a poesia nos capacita olhar os dois lados do mundo, captando nas entrelinhas do dia a dia, um jeito mais suave de vida… Aí de nós, não fosse a poesia!

    Abraços

    • Marcos Ferreira diz:

      Amiga Vanda,
      Boa tarde.
      Esqueci de lhe dizer que foi a partir da leitura de sua bela crônica no De Fato, intitulada “Quando a cidade dorme”, que arrumei inspiração para escrever esta “Poeticidade”. Não é a primeira vez que isso acontece. Lembra? Muito obrigado. Forte abraço e uma ótima semana para você.
      Marcos Ferreira.

  3. Amorim diz:

    É realmente uma poeticidade!
    Marcos como você está?
    Posso ajudar?
    Um abraçaço!

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Amorim,
      Boa tarde.
      Está tudo bem. Tudo na santa paz, como se diz.
      Muitíssimo obrigado por perguntar.
      Forte abraço e até breve.
      Marcos Ferreira.

  4. Carlos Silva diz:

    Meu nobre amigo, como sempre, suas crônicas retratam o cotidiano de forma perfeita. Admiro muito a sua habilidade ao escrevê-las. Desejaria ser como você, porém este dom, o criador presenteou você. Parabéns.

    Quem sabe algum dia sua memória o leve a escrever sobre nossos tempos de vivência nas salas e corredores do CAM.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido amigo Carlos Silva,
      Boa tarde.
      Você é uma das melhores recordações que guardo do OP-CAM.
      Nosso dia a dia e nossa convivência eram mais que salutares, eram edificantes. Graças à sua humildade, carinho e boa vontade em sempre contribuir e ajudar aqueles menos experientes em algumas atividades, como eu.
      Portanto, meu caro, você sempre terá um espaço especial no meu coração.
      Qualquer dia, quem sabe, narrarei em livro nossas memórias do velho Canto do Amaro.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  5. ROZILENE FERREIRA DA COSTA diz:

    Emocionada ! Simplesmente perfeito. Bom dia a todos. Abraço em Natália, amigo Marcos.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida amiga Rozilene,
      É sempre uma recompensa contar com qualquer linha da sua opinião e sensibilidade sobre estas minhas crônicas dominicais. Muitíssimo obrigado e até breve.
      Marcos Ferreira.

  6. Alcimar jales. diz:

    Bom dia meu velho e bom amigo. Marcos Ferreira.
    Como sempre você arrebentou. Q bela crônica meu veio,
    Que Deus abençoe sempre, para que você nos presentei com suas belas crônicas e poesias. Um bom domingo garoto.

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado amigo Alcimar Jales,
      Boa tarde.
      Grato por sua leitura e palavras. Faço votos que tenha se recuperado o quanto antes e bem da Covid.
      Uma ótima semana para você.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  7. Genildo Costa Silva diz:

    Caríssimo cronista e poeta de.minha predileção. Numa atitude de tamanha cumplicidade, certamente, não poderia optar por atalhos que negasse a tua indignação quanto aos dias de incertezas de um ambiente tão inóspito e perverso que ora presenciamos nesse terreno tão movediço das relações que se impõem sob a lógica do salve – se quem puder onde são poucos com muito e muitos sem nada. Esse teu sentimento se universaliza na medida em que aprendemos a alcançar um pouco mais longe que os olhos. Tarefa simples e algo, necessariamente, possível. A minha sincera e humilde manifestação de carinho e respeito ao parceiro e cronista sem esquecer de estender o meu abraço fraternal ao jornalista Carlos Santos por esse presente genial de todos os domingos nesse espaço belíssimo de encantamento na sua plenitude. Bom dia. Paz..paz.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido poeta cantador Genildo Costa,
      Boa tarde.
      É difícil assistirmos a tudo isso apáticos, indiferentes, como se não tivéssemos nada a ver com o sofrimento de tantos brasileiros que a esta hora padecem em toda parte deste imenso país. Portanto, poeta, a gente tem que protestar, gritar. Como diz o ditado, às vezes, por falta de um grito, perde-se uma boiada. Especialmente nesses tempos de tanto gado louco.
      Forte abraço e até breve.
      Marcos Ferreira.

  8. Aluísio Barros de Oliveira diz:

    Bom dia, MF.
    Tá dito. E quem não gostar que siga o q está escrito na bolsa da freirinha de Roma [uma fotografia q arranjei na net]:
    – Sti cazzi.
    Que venha o Sol.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido poeta Aluísio Barros,
      Boa tarde.
      Que alguns de nós queiramos ou não, o Sol sempre virá e prevalecerá. Só desejo que, vez por outra, ele venha entremeado com umas boas nuvens de chuva, para esfriar um tiquinho esse braseiro de Mossoró e região.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  9. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Olha, Marcos, a sua crônica poema-em-prosa é um primor, pois fala das agruras do cotidiano, da amargura do pensar e das inconcebíveis intolerâncias praticadas por aqueles (e nós) que deveriam justamente fazer o contrário; porém, de uma forma poética, suavizada pela pena branda do verso e das frases melódicas da poesia, você dá um tom menos gris e nos revela as nuances de várias cores textuais. Parabéns!

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro escritor Raimundo Antonio,
      Boa tarde.
      Mais uma vez, amigo, simplesmente adorei a sua maneira de ler e comentar minha escrita.
      Sinto-me honrado com o nível de leitor que você representa. Muito obrigado.
      Forte abraço e até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  10. Airton Cilon diz:

    Não importa se a poesia esteja à margem ou no centro, ela sempre contempla a paisagem, expressando seu sagrado significado. Só os tolos são capazes de amar com toda pureza do coração… Estes se fazem poetas, Quixotes da esperança! Abraços, poeta escritor Marcos Ferreira…

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro poeta Airton Cilon,
      Boa tarde.
      Acho que você disse bem: nós, os poetas, somos “Quixotes da esperança”.
      Grande abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  11. Rizeuda da silva diz:

    Boa tarde, Marcos!
    “A gente precisa de poesia dentro da gente…”(Fabíola Simões).
    É disso que sempre falo nos meus comentários, dessa poesia que salta das palavras e se prende na retina. Traduzir o cotidiano em poesia, é coisa de gente grande. Adoro a poesia que pulsa no seu ser, menino poeta. Parabéns pela maravilhosa crônica!
    Acalorado abraço das bandas do Norte!

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida poetisa Rizeuda,
      Boa tarde.
      Como você escreve bonito. Tanto que faz meus textos parecerem melhores do que talvez sejam. Fico simplesmente encantado, além de grato, com sua sensibilidade e competência. Um abraço também para você aqui das bandas do Nordeste.
      Marcos Ferreira.

  12. Marcos Aurélio de Aquino diz:

    Bom dia meu caro, que belo texto, harmoniosamente o lirismo e o engajamento social reverberam sua alegria e também sua insatisfação com as mazelas produzidas por esse desgoverno infame. Mto obg

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Marcos Aurélio de Aquino,
      Boa tarde.
      Muito bom tê-lo de volta aqui com a sua leitura e capacidade de compreender a grave situação por que passa o nosso país. Felizmente, amigo, o fiz dessa temporada de trevas está bem mais perto do que longe. Forte abraço e uma ótima semana para você.
      Marcos Ferreira.

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