Dir-se-ia que estou quebrando o protocolo. Hoje não é domingo. É certo. Daà fica estranho em plena segunda-feira postar crônica, poesia, música e outros elementos comuns ao domingo, como este Blog costuma fazer.
Mas me rendo às convenções: Chegamos a 31 de dezembro de 2007.
Fechamos outro perÃodo de tempo humano. DaÃ, não estranhe, que eu repita uma crônica já postada no endereço do blog anterior, que movimentei até o dia 2 de maio deste ano.
Acho que me agradecerá pela lembrança. Trata-se da bela "Acorrentados", do mineiro Paulo Mendes Campos.
Aproveite.
Acorrentados
Quem coleciona selos para o filho do amigo;
quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava;
quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho;
quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carÃcia;
quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre;
quem se ri das próprias rugas;
quem decide aplicar-se ao estudo de uma lÃngua morta depois de um fracasso sentimental;
quem procura na cidade os traços da cidade que passou;
quem se deixa tocar pelo sÃmbolo da porta fechada;
quem costura roupa para os lázaros;
quem envia bonecas às filhas dos lázaros;
quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira;
quem manda livros aos presidiários;
quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio;
quem escolhe na venda verdura fresca para o canário;
quem se lembra todos os dias do amigo morto;
quem jamais negligencia os ritos da amizade;
quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona;
quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uÃsque a fim de conversar com amigo ou amiga;
quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos;
quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças;
quem guarda as cartas do noivado com uma fita;
quem sabe construir uma boa fogueira;
quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens;
quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência;
quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição;
quem se desata em sorriso à visão de uma cascata;
quem leva a sério os transatlânticos que passam;
quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz;
quem de repente liberta os pássaros do viveiro;
quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo;
quem julga adivinhar o pensamento do cavalo;
todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.
Paulo Mendes Campos, cronista mineiro falecido em 1991 aos 69 anos de idade.
linda crônica de paulo mendes campos,é um dos meus autores preferidos.valeu pelo bom gosto!