Foi no dia quatro de quatro de noventa e quatro (04.abril.1994) que seu Rafael não acordou mais. A morte foi do jeito que ele desejava: rápida, abrupta, sem dor. Rebelde, dizia que jamais se internaria numa UTI. Felizmente não precisou, pois iria dar muito trabalho.
Aproveito a data para reproduzir um texto de Misherlany Gouthier que está escrevendo a sua biografia – Memória do tempo:
No perÃodo convulsionado pela Segunda Guerra mundial, largou-se para Natal, convocado para servir “inúmeras vezes, como soldado, como civil, no terror organizado pelo nefasto coronel Nilo Horácio de Oliveira Sucupira que àquele tempo comandava o 16o Regimento de Infantaria”.
O beletrista Cosme Lemos foi quem fez o discurso à primeira turma de mossoroenses, em 1942, que foram marchar para a segunda guerra mundial. (Ver Gazeta Vol. 23). Primeiro foi servir em Areia Branca, sob o número 5876, depois transferido para a 16o Regimento de Infantaria, em Natal.
Rafael Fernandes Gurjão, tio de Bruno, fez uma carta à dona Sinhá (mãe de Rafael Bruno e irmã do governador), na qual pedia que o sobrinho fosse passar dois meses em Natal, na Vila Cincinato, que era residência do interventor…
O próprio Rafael Negreiros confessa tudo: “A primeira vez que andei em Natal foi em 1941, quando o governador, ou melhor, o interventor era o Dr. Rafael Fernandes Gurjão, tendo como secretário-geral o Dr. Aldo Fernandes, que diziam ser a eminência parda do governador.” (Natal que eu conheci…)
“Leitor de clássicos, brincalhão, de uma postura clássica, aprendi a conhecê-lo e amá-lo desde os oito anos de idade, quando, vindo a Mossoró, chamava-me, colocava-me nos seus joelhos e ficava a brincar comigo ‘como vai meu querido sobrinho’… (‘Rafael Fernandes, sem retoques’, O Mossoroense, 24 de novembro de 1983 – Rafael).
”Dessa época destaca-se dentre suas leituras prediletas da pena de Romain Rolland ‘Jean Christophe’ (romance sobre a vida de um gênio musical refratário às convenções sociais e incompreendido, que se revolta e vive procurando a verdade no amor e na música. Nobel de Literatura em 1915).
Cercado por um mundo de inteligência – os livros, dizia-se “um homem que não tinha solidão”. Certamente, vê-se “um homem que não se deixa seduzir pelas glórias da vida e cujos conhecimentos, amplos, profundos, universais, adquiridos externamente, choca a comunidade acadêmica”.
“Naqueles tempos o principal centro comercial de Natal era a rua Chile, com a Viúva Machado fornecendo em grandes quantidades provisões às forças americanas, enquanto que o Wonder Bar era o apanágio das grandes farras e das grandes brigas, uma confusão dos diabos.”
“Os bondes passavam aos montes, mais pareciam pencas de bananas, cheios de soldados vestidos com farda verde-oliva”, conta o jornalista nas suas memórias.
Durante o perÃodo da Segunda Guerra, esteve como soldado datilógrafo do 16o R.I., sob as ordens do major Arthur Gomes Ribeiro, “um oficial baixo, entroncado, que suportava ver um soldado andando nu, mas com uma condição: que o colarinho do paletó ou da túnica estivesse devidamente abotoado no pescoço, rigorosamente”.
Nessa época conheceu Antônio Pinto de Medeiros, que na palavra de Raimundo Nonato “tudo nele respirava PlÃnio Salgado”, (mais tarde consagrado intelectual do nosso Estado, autor dentre outros de Um poeta à-toa), com quem serviu na Tesouraria do 16o R.I. Fez amizade com Antônio Pinto e aprendeu muito sobre nossa literatura brasileira.
Trabalhando sob as “ordens” do sargento Antônio Pinto de Medeiros, de quem se fez amigo e recebeu forte influência sobre a obra de Mário de Andrade. Daà porque anos mais tarde a revista Centelha Abolicionista publica um artigo assinado por Brutus sobre Mário de Andrade. Fora a primeira vez que ouvira falar em Mário de Andrade, em 1944. (Mário de Andrade Redivivo, O Mossoroense, 28/10/1982).
Depois de oito meses na tutela do coronel Sucupira, no 16º R.I., fez concurso para datilógrafo da 24a Circunscrição de Recrutamento, onde trabalhou ao lado do 1o tenente Amaral Varela, do tenente Michel Abiráched e do sargento Oldemar.
Tinha uma raiva absoluta da figura do coronel Sucupira, pois este o colocou dez dias em prisão especial, com sentinela à parte, sendo que “o pascácio do coronel acreditava” que aquele jovem irresponsável “era um indivÃduo altamente perigoso à ordem constituÃda, as baionetas dos dois soldados chega brilhavam no ar frio de Natal, naqueles tempos de 1944, o coronel era tão perverso que mandou colocar uma substância que dilatava as suas pupilas…” Foi a única vez que passou dez dias sem ler coisa nenhuma. (Leitura e Leitores, 4/12/1984) E lendo sempre, pois seu destino era ler…
Numa de suas crônicas cujo tÃtulo ilustra este capÃtulo, confessou a realidade daquela época: “DifÃcil mesmo eu entrar nos eixos, um irresponsável completo, atabalhoado, às vezes bancando o maluco, e achando que jamais chegaria o momento de entrar numa guerra, porque acompanhava os noticiários da BBC com uma pontualidade britânica, a velha história de que o medo faz a gente aprender a correr.”
Dessa fase, foram seus companheiros: Alcides Paula, Irineu Andrade, Raimundo Maia, Francisco de Queiroz Maia, dentre outros. Uma gama de gente de Mossoró. Fardo de soldado, rua acima, rua abaixo; às vezes diziam “ele é maluco, mas não faz mal a ninguém”… Um irreverente que ria de suas próprias peripécias.
Queria mesmo é que aqueles dias se finassem. Não agüentava mais: – Sim Senhor, não Senhor; “porque aquele negócio de fazer continência não ia comigo”, lembrava.
“Versado na história da Segunda Guerra Mundial, Rafael orgulha-se de ter escrito uma sÃntese deste acontecimento em 29 capÃtulos, ‘sem recorrer a nenhum livro’”. (Franklin Jorge Roque). Decorava todos os nomes dos militares japoneses, russos, alemães, datas, lugares…
Foi um péssimo soldado, diga-se de passagem.
“Em 6 de junho de 1945 o seu pai fez uma grande festa pela sua volta ao lar paterno ao final da guerra que, segundo ele, foi um herói em Areia Branca: ‘- Se peito fosse buzina, ninguém conseguiria dormir, pois eu pagava a alguém para tirar o meu serviço e ia namorar…’”, costumava dizer. (Armando)
A sua biblioteca, uma das mais invejadas da cidade, corresponde a um acervo de rica bibliografia universal. Obras de valor literário conhecidÃssimo. Camões, Tolstoi, são alguns das personas que compõem a sua biblioteca. E ainda: tudo sobre a primeira e a segunda guerra mundial.
Recado: Mishrlany, quando sairá a biografia? Abraços, Armando.
Armando Negreiros, médico e filho de Rafael Negreiros
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