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segunda-feira - 26/01/2009 - 15:10h

Relatório formal sobre o inferno

Leia abaixo, um ofício da lavra do delegado de Polícia Civil, Aldo Lopes, datado de novembro-2008.

É endereçado à Corregedoria da Polícia Civil. Trata sobre as consequências de uma fuga na Delegacia de Ceará-mirim.

O texto é interessante. Revela um cenário que o cidadão comum ignora.

Senhor corregedor,

Dia 18 de julho de 2008. Carceragem da delegacia de Ceará Mirim. Cinqüenta e dois presos espremidos em três cubículos, verdadeiras cafuas inóspitas e malcheirosas, todos pobres, alguns analfabetos, negros, todos, sem exceção, criminosos pés-de-chinelo, delinqüentes que gravitam no submundo da baixa criminalidade.

Do lado de fora apenas um delegado, um agente e um escrivão. Dos três apenas um tinha arma. A delegacia não tem arma de espécie alguma. As que existiam foram “confiscadas” na última fuga de presos, que para desmoralizar ainda levaram a viatura.

Eis, em poucas palavras, a realidade de um Estado irresponsável e desumano que ao longo de 30 anos descurou de sua obrigação de construir presídios, deixando a cargo da polícia civil uma atividade estranha à sua função constitucional que é a de polícia judiciária, de polícia investigativa.

Com todo respeito, Senhor Corregedor, diante de um quadro desses,  seria muito natural que o delegado, este franzino e impotente senhor, se trancasse em seu gabinete, já que as metralhadoras, escopetas, munições e pistolas levadas pelos presos na última fuga  — e que nunca mais apareceram, à exceção da viatura — sequer foram repostas pela Secretaria da Defesa Social.

Portanto, meu paciente e compreensivo Corregedor, não seria exigível da parte do delegado comportamento diverso que não se trancar eu seu gabinete, coisa que ele nem sequer atinou em fazer. E se fizesse, estaria mais do que justificado, sobretudo se colocasse o birô e as cadeiras e mais aquelas velhas máquinas caça-níqueis encostadas na porta, à guisa de barricada.

Na hora do “desconforto espiritual” dos presos, só havia dois policiais (um deles desarmado) o escrivão, e este delegado, a minha humilde e anti-policialesca pessoa, que usa a arma apenas como enfeite, como fetiche, pois morro de medo de um dia me vir obrigado a usá-la, e ter de me ajoelhar, primeiro diante do doutor Ricardo Procópio, natural e justo juiz; e, segundo, diante do Senhor, mais justo ainda.

Portanto, não faço a menor questão se o senhor, a bem do serviço público, mandar recolher a minha arma, uma pistola ponto quarenta, que um dia caiu na Delegacia de Plantão, suspeitíssima, utilizada para a prática de vários assaltos, porque estava confiada ao policial Tavares que tem mandado de prisão e está “pinotado” como se diz no jargão dessa classe tão desunida, mas que até a presente  data ainda não foi excluído, coisa que eu não acredito. Estou bege, senhor. 

Quanto ao episódio grotesco de Ceará Mirim, não tenho obrigação de provar nada. O ônus da prova cabe a quem acusa, embora tenha ciência do princípio do in dubio pro societate que informa todas as demandas, tanto na fase de inquérito como na esfera disciplinar. Mas tenho couro grosso, e fique à vontade para dar a carga toda.

Todavia, meu arguto e sensível Corregedor, o senhor sabe que o Estado, em assuntos de cárceres e presos, está mais sujo do que poleiro de pato. Se existisse um Inferno, uma espécie de Corregedoria no outro mundo, o Estado do Rio Grande do Norte com certeza ia bater lá.

Portanto, não venham agora jogar os leões contra mim, querer me responsabilizar por um situação que foi o próprio Estado quem criou. O Estado que faça a mea culpa, tome um banho de sal grosso, construa presídios, retire essa imundície dos ombros da polícia civil e nos deixe trabalhar. 

Agora mesmo, Senhor Corregedor, está havendo aqui na Delegacia de Felipe Camarão uma visita aos presos. As celas abrigam quase quarenta homens, alguns asmáticos, outros alienados mentais, e dizem que tem até preso com aids, dizem. O fato é que, daqui de dentro deste calorento gabinete escuto o rumor de vozes e gemidos. São eles se reproduzindo, Sr. Corregedor!

O senhor nunca sentiu esse bafo infame, nem queira nunca ser delegado e ter de trabalhar numa delegacia emporcalhada de presos abandonados à própria sorte. Esse bafo, esse “odor característico”, vem pelas frinchas da porta e invade o cartório onde a competente escrivã Luciene, que ainda há pouco se passara pelo vexame de ter de fazer a tal “revista”, só falta morrer em cima dos inquéritos, muitos deles fadados à sepultura do arquivo, porque gastamos o nosso precioso tempo cuidando dessa cafua escrota e miserável.

Chega, Senhor Corregedor, EU TENHO HORROR A ESSE BAFO! O que deflagrou a insatisfação dos presos naquela manhã em Ceará Mirim foi a proibição da visita.

Ora, o delegado proibiu a visita, porque o delegado é o delegado, fez concurso público e sabe o que está fazendo. Ele tem carta branca da lei para administrar a unidade. E sabe o porquê da proibição, meu paciente Corregedor? não havia policial feminina para fazer a revista íntima. Nem civil nem militar. A policial civil, lotada na delegacia, estava de licença médica.

As policiais da PM, solicitadas para fazer a revista, mas estavam participando de um curso de polícia comunitária. O senhor já ouviu falar numa “revista íntima”?

Não há situação mais degradante para um ser humano do que uma “revista íntima”, tanto para a visita como para a policial. A mulher tira a calcinha e fica de cócoras e ainda é obrigada a afastar os lábios da genitália para a policial examinar se ali dentro tem algum objeto ou alguma substância ilícita.

Veja a que ponto o Estado chegou, senhor Corregedor, institui um concurso, gasta horrores de dinheiro no treinamento e capacitação de um policial para desempenhar o múnus de polícia judiciária, de polícia investigativa, para depois impor a este policial um criminoso desvio de função, cometendo a ele um trabalho para o qual não recebera a mínima instrução.

Um trabalho, na sua essência, degradante, vil, que é feito em outros países, e quando muito, com os recursos da tecnologia.

Natural, Senhor Corregedor, e procedente, a reclamação “das condições de trabalho e da situação carcerária dos presos”. A não ser que o delegado estivesse anestesiado ou fumado maconha estragada. Queriam o quê?

Não nasci para ser babão. Minha mãe, uma professora do interior, pequena, mas uma gigante de dignidade, me ensinou que um homem jamais deve se passar por babão ou puxa-saco. É melhor que nem escape de ser aborto.

Que condições carcerárias tem uma prisão que os próprios presos destroem em dez minutos apenas com a força dos músculos, sem britadeira, sem marretas e alavancas.

Em dez minutos, Senhor Corregedor, eles retorceram as grades como se fossem feitas de cera, quebraram as paredes como se fossem de isopor. Temos como testemunhas disso tudo a juíza e a promotora da Comarca de Ceará Mirim, com quem mantive contatos o tempo inteiro, já que a situação da delegacia deixava de ser um problema administrativo da Degepol para virar um caso de polícia, ou melhor, um caso de Justiça, uma excelente seara para o Ministério Público arregaçar as mangas e cair em campo com sua foice. 

A função institucional do órgão que o senhor dirige é apurar os desvios de conduta dos integrantes das polícias, apurar os delitos cometidos por estes em razão da função. Pois bem. Tenho a consciência do mal-feito e do bem-feito. Entendam como queiram.

Portanto aconselho o senhor a designar um delegado para ouvir os presos e saber deles como foi a recepção no presídio de Alcaçuz, perguntar se eles foram ou não bem tratados na chegada e na saída, fato este que a Diretoria de Polícia, quando ouviu “os familiares dos presos” certamente esqueceu de perguntar, ou fez questão de suprimir este capítulo, tão fundamental para a compreensão de toda a novela, cujo desfecho foi infame.

 Deixou Ceará Mirim, fim de tarde, aquele ônibus horroroso da Polícia Militar, mas parecendo um rabecão, um navio negreiro, um veículo de campo de concentração nazista, com as mulheres e os filhos seminus chorando pelas ruas, gritando pelos seus pais. A única diferença é que não foram para um forno crematório, voltaram no dia seguinte, no mesmo ônibus funerário, uma multidão de policiais, tanto militares como civis, queimando combustível caro do bolso do povo, sobretudo os da polícia civil, numa ocupação estranha às suas funções.

E pensar que todos esses homens voltaram a ocupar suas celas no estado em que se encontravam, com os pedreiros dando início aos trabalhos de reconstrução, levantando as paredes e pregando as grades no lugar, e os policiais com as armas apontadas pela eles, e ficaram assim por um bom tempo, até o cimento secar. Um retorno sem explicação, irresponsável, que nem mesmo os veementes protestos da  promotora da comarca (uma Davi de saias enfrentando o gigante Golias) foram o suficiente para evitar.

Protestando por todos os meios de prova em direito admitidos, e pedindo vênia, máxima vênia, pelo desabafo, humildemente subscrevo-me.

Cidade do Natal, 03 de novembro de 2008 

Aldo Lopes de Araújo – Delegado de Polícia Civil, atualmente acumulando as funções de Delegado-Adjunto  e Carcereiro ad hoc do 14º DP – Felipe Camarão.

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Categoria(s): Nair Mesquita

Comentários

  1. Flavio Roberto diz:

    Impressionante este relato. cabe a sociedade cobrar mais respeito e dignidade, tanto para quem trabalha como para quem esta cumprindo pena. em delegacia num deveria passar pouco tempo, ser julgado e se for condenado levar para penitenciaria. vejo que o problema não esta em uma esfera, a justiça também falha quando demora nos julgamentos. meu deus, neste contexto sofre a população sem segurança e impotente.

  2. Marco Andreu diz:

    Brilhante! Cruel mas brilhante.

  3. Hugo diz:

    Caro Jornalista. O relato do delegado Aldo Lopes, em que pese toda a objetividade que o envolve, expõe à saciedade, as vísceras putrefatas de um estado caótico e fragilizado não só pela ação desastrosa dos que têm o dever de torná-lo forte, contudo o fazem cada vez mais vulnerável às mazelas da vida moderna, como a violência retratada no alto índice de crimes que grassa em nosso meio, mas sobretudo pelo desrespeito aos preceitos constitucionais insertos nos incisos III e XLIX, da Constituição da República que, diga-se de passagem, nenhum óbice vislumbro capaz de impossibilitar seu cumprimento, cujas redações são as seguintes: “III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degranante; XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”; Como age, porém, de modo diveso, conforme se observa no relatório, obviamente que está deixando de cumprir seu papel constitucional.

  4. Ceiça Praxedes diz:

    Carlos estou atordoada! Como podemos enfrentar tal situação? A quem cobrar por tamanho descaso se todos as personagens já estão envolvidas e não pode alegar desconhecimento? Confesso que estou apavorada. Que Deus tenha piedade de nós.

  5. Pavlo César diz:

    Infelizmente, nada de impressionante, nada de incrível, nada de extraordinário. Nonada mesmo. O relatório-libelo do doutor Aldo Lopes nada mais é que a verdade nua, crua e sem peruca a que chegou o estado brasileiro como um todo. Então, o que se poderia esperar de uma unidade federativa como este pobre Rio Grande sem sorte? Sim, pobre, pois detentor de um dos mais irrelevantes PIB da economia nacional. Desenvolvimento por aqui é só promessa de político. Rio Grande sem norte, onde quase tudo está degringolado, desde a educação básica (próxima semana tem nova greve) passando pela segurança e a saúde públicas. A impressão que se tem, morando aqui, é que no Haiti o serviço público e a vida do cidadão são bem melhores.

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