Por Marcos Ferreira
Unindo suas idades, naqueles fins dos anos sessenta, não somavam quarenta janeiros. Ele tinha dezenove. Ela, apenas dezoito. Alguns meses de namoro e já se casaram, juntaram os troços. Seguiram namorando pelo resto da vida. Um ano depois, sem que houvessem planejado, veio a primeira cria, um menino feio da cabeça graúda. Era o primogênito de uma prole de onze filhos que teriam que sustentar — um atrás do outro, ano pós ano, cresciam e se multiplicavam.Bem-apessoados, ele moreno com topete e costeletas à moda Elvis, ela branquinha, esbelta, habitaram por mais de uma década, através de aluguel, uma casa de pau a pique localizada na Avenida Alberto Maranhão, 3521, no bairro Bom Jardim. Aquela modesta residência pertencia a um abastado senhor proprietário de vários outros imóveis de melhor qualidade neste município.
Naqueles começos de vida conjugal, apesar da carestia feroz que assolava o País, a exemplo do que voltou a acontecer, os jovens cônjuges viviam com o mínimo de dignidade que os anos de chumbo lhes permitiam. Ele não descuidava do topete, cuja farta cabeleira vez por outra tornava reluzente com um gel ordinário, porém perfumoso. Andava limpinho, sempre barbeado e engomado. Os vestidos e o cabelo dela, também dentro de suas posses, eram dignos de elogio.
Sapateiro profissional em uma Mossoró onde, àquela época, o ramo de calçados manufaturados era pujante, ele não tardou a compreender que teria de envidar maiores esforços para abarcar as despesas com a casa e a sua família ainda pouco numerosa. Trabalhava há um tempo, com carteira assinada, numa pequena indústria de calçados no Doze Anos, à Rua Adauto Câmara, 154.
Ao final do expediente, que às vezes se estendia em serões até às dez e meia, não raro levava trabalho para realizar em casa com a ajuda da esposa. Pois, a depender da produção, o jovem sapateiro ganhava uma grana extra no fim da semana, que se estendia às treze horas do sábado. Dessa forma, à luz das lamparinas de querosene, sobre uma esteira de palha disposta no chão de barro, urdiam peças de couro, cortavam palmilhas, pregavam ilhoses, fivelas, rabichos.
Sem lastro escolar (ele só cursara o quinto ano primário; ela não sabia ler nem escrever), oriundos de uma família de analfabetos, pouco a pouco foram sendo atropelados pelo rolo compressor da desigualdade socioeconômica que acomete este “impávido colosso” há mais de quinhentos anos. Por exemplo, a instalação da luz elétrica e o encanamento de água sempre foram adiados.
Com o descontrole da natalidade, posto que o casal já contava com cerca de oito herdeiros, as finanças entraram em colapso. Ela não tinha renda fixa, era tão só uma lavadeira de roupa que não sabia assinar o próprio nome com uma penca de filhos para cuidar. Ele, embora bom profissional, oriundo de uma família de sapateiros, não ganhava o bastante na fábrica para segurar a barra. Então, além dos serões na sapataria, a fim de ganhar algo mais, cantava em bares.
Eram as serestas das sextas-feiras e sábados. Talentoso, carismático, possuía boa voz. Arrancava aplausos ao interpretar, entre outros, sucessos de grandes artistas como Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, Sílvio Caldas, Ary Barroso, Lupicínio Rodrigues, Cauby Peixoto, Jerry Adriani e Roberto Carlos. Nessa época, sobretudo, arraigou-se o vício do álcool e do fumo.
Vieram mais filhos. Os primeiros dispunham de menos recursos e sobrava apetite à mesa. O pão minguava, multiplicavam-se dívidas e cobranças dos credores. O proprietário da casa de barro e madeira queria a todo custo receber o dinheiro do aluguel, atrasado em alguns meses. As cadernetas do fiado (bodega, farmácia, leiteiro e padaria) começavam a não funcionar. Faltava querosene para as lamparinas. O carroceiro que lhes vendia água vez por outra ameaçava:
— Vou suspender o fornecimento!
Como está visto, a situação daquele jovem casal se tornou insustentável. E tudo isso, como é fácil compreender, devido à grande quantidade de filhos para alimentar, vestir, calçar e educar. Mas aquele pai e aquela mãe lutaram bravamente para prover os seus. Fiavam, em última instância, que o Todo-Poderoso lhes apontaria uma saída, uma escapatória para os seus apuros financeiros.
Deus, entretanto, que tudo sabe, tudo vê e tudo pode, não se meteu nessa encrenca. A velha e revelha cantilena do livre-arbítrio. Isto é, cada um que responda por seus atos. Assim, sem a interferência do Altíssimo, a asfixia econômica daquela família se intensificou, chegou a níveis críticos. Não foram poucos os instantes em que o desespero e a fome arrancaram lágrimas daqueles rostos ainda apaixonados, porém sofridos e já meio que descrentes da piedade de Jeová.
Todavia, por instinto de sobrevivência, não se renderam. O sapateiro trabalhava tanto na fábrica quanto nas serestas. Fez um curso por correspondência no então Instituto Radiotécnico Monitor e passou a consertar aparelhos de rádio e televisão, além de objetos como liquidificador, fogão, ferros de engomar e máquinas de costura. Por sua vez, ela lavava e passava roupas para fora.
Os filhos mais velhos também ajudavam. Catavam metais e até ossos nos monturos, peças de cobre, tampas e panelas velhas de alumínio, compravam garrafas de tempero, refrigerante, cerveja, cachaça (tudo era de vidro), depois revendiam nos ferros-velhos e depósitos de bebidas. Com cerca de dez anos, o primogênito pastoreava bicicletas no Mercado Central, vendia cocadas, tapiocas e dindins, além de auxiliar crediaristas que comerciavam de porta em porta.
A educação formal da prole ficou em terceiro plano, contudo a fome começou a recuar. A essa altura, com pouco mais de trinta anos, o sapateiro e a lavadeira já haviam tido os onze rebentos. Continuavam na labuta para alimentar todas aquelas bocas, dar roupas e calçados na medida do possível. Pois, embora ele fosse daquele ramo, não lhe era nada simples calçar os próprios filhos.
Um dia, infelizmente, a família sofreu um duro golpe. A esquistossomose (infecção diarreica grave) levou duas crianças pequeninas do casal — Márcia e Hugo. “Deus quis assim”, afirmou um irmão do sapateiro com o propósito de consolá-lo. Não deu certo. O baque foi forte demais. O homem, já refém dos tentáculos do álcool e do fumo, mergulhou por completo no vício. Não mais cuidava do topete e costeletas à moda Elvis. Tornou-se sombrio, desleixado.
A mãe costumava contemplar, em lágrimas, o único retrato que possuíam com a família reunida, pendurado na parede da sala. O pai, dominado pela bebida, evitava tal exame. Ele morreu com cinquenta e quatro anos de idade, vítima de cirrose. Ela enfartou aos sessenta e dois. Agora o primogênito é quem observa o mesmo retrato, onde seus quatro entes queridos ainda vivem.
Marcos Ferreira é escritor
Maravilhoso texto sobre a vida excluída, que é também, da grande maioria dos brasileiros (as), aí me incluo. Se roubassem um miojo para comer seriam bandidos, mas se fossem como o presidente que gastou R$ 30 milhões em cartão corporativo ou como Moro que agora aparece enrolado com a justiça, não pelo que roubou, mas por não pagar impostos sobre o roubo, tudo seria diferente na história desta nação, que acredito, um dia transformará a vida como direito básico para todos e que a cultura e as artes sejam bens maiores. Parabéns do filho do padeiro que virou doutor, por não entender que a escola não era para gente pobre e está ignorância me trouxe para a universidade.
É isso aí, professor Valdemar.
Quem rouba um miojo é trucidado.
O Grande Percevejo torra trinta milhões somente com o tal cartão corporativo e é chamado de mito pela manada ruminante e acéfala.
Abraço e até a próxima.
Marcos Ferreira.
Bom dia, MF.
A vida apartada de tudo. Expressionismo é letra q nos soca o estômago.
Leio na imprensa q as deportações de brasileiros pelo governo dos E.U.A. continuam. Nossos pobres sofrem de todo jeito. Aqui e lá. Tanta riqueza nas mãos de poucos. Agora, na pandemia da covid-17, muito acumulam lucros. Prefiro nem me alongar.
Me chamam para um banho no Tibau, mas a preguiça me acompanha. “Nao vou, irmão. Já fui tanto q acumulo lembranças. Me perdoe essa de hoje rsrs”.
Meus vizinhos ainda não retornaram do hospital, onde se tratam dessa covid-19. Mais de 10 dias de u.t.i. Tal fato me diz q a boa romaria ainda se faz em casa.
Vou pegar sol no quintal e brincar com os coelhos João e Guigui Rosa. Há beija-flores e isso me basta por agora.
Bons dias.
Ps.: Vi q anda de amores com nova Gudãozinha. Ótimo.
Vida severina, meu caro poeta Aluísio Barros.
Esta é, arrisco dizer, a realidade da maioria dos brasileiros, da gente pobre e desassistida.
Agora fugindo do assunto da crônica: sim, resgatei mais uma gatinha da rua. Estava quase se afogando durante aquela última grande chuva que desabou em Mossoró durante a tarde e alcançou a noite. O nome da gatinha é Pitucha. Pesa duzentos gramas, cabe na palma da mão. Levei-a ao veterinário, tomamos algumas providências, comprei leite especial para filhotes lactentes e estou cuidando. Hoje ela está completando um mês de nascida. Já quero bem demais. Porque “ela me faz tão bem”, como na letra daquela música.
Forte abraço e uma ótima semana para você.
Marcos Ferreira.
Olá, Marcos!
Sua história é comovente! Entremeada de sucessos e retrocessos, vem se delineando até os dias atuais. E por mais que tenhamos momentos parecidos, lá na frente percebemos que cada um tem a sua própria história, até dentre os membros da mesma família! O importante, é saber aprender com cada situação, só assim a nossa evolução acontecerá! Abraços
Obs.: Adorei saber que você já anda de gatinha nova…
Bom dia, amiga Vanda Jacinto.
É isso, poetisa. Todos nós temos a nossa história, as nossas marcas existenciais e particularidades familiares. Então, como você bem assinalou, é importante que aprendamos com as situações e desafios que a vida nos reserva. Mudando de assunto, é verdade, estou com outra gatinha. Tão pequenina que cabe na palma da mão. Estava quase se afogando na rua (sem que a mãe pudesse fazer nada) durante aquela última grande chuva que desabou sobre Mossoró, à tarde. Natália me alertou sobre a situação, e eu entrei na chuva para pegar a filhotinha. Eu havia acabado de chegar daquela entrevista que concedi à TCM. Ainda estava de mangas longas, mas não esperei para trocar de roupa. Estou muito feliz com minha nova companhia. Ela também não desgruda de mim, o tempo todo querendo meu colo. Não entendo como ainda há pessoas (monstros) que se ocupam em oferecer veneno ou maltratar esses seres adoráveis.
Forte abraço e até a próxima.
Marcos Ferreira.
Boa notícia querido Amigo, permita-me chamá-lo assim.
Amor a Gudãonzinho!
Pois bem, conheci uma família aqui em Mossoró que passou por perrenques semelhantes!
Casal único, admirado por todos.
Todos os filhos têm reconhecimento local e estadual; até “ajudei” em seu Bar..
Adorava ouvir as histórias de como foram criados com precisão na água grande!
No umbigo do recém nato, colocava aquela poeira que ficava na réstia do telhado!
Saudades de coração!
Tô emotivo!
Um grande abraço
PS. Posso te conhecer pessoalmente?
Sou injerido!
Boa notícia querido Amigo, permita-me chamá-lo assim.
Amor a Gudãonzinho!
Pois bem, conheci uma família aqui em Mossoró que passou por perrenques semelhantes!
Casal único, admirado por todos.
Todos os filhos têm reconhecimento local e estadual; até “ajudei” em seu Bar..
Adorava ouvir as histórias de como foram criados com precisão na água grande!
No umbigo do recém nato, colocava aquela poeira que ficava na réstia do telhado!
Saudades de coração!
Tô emotivo!
Um grande abraço
PS. Posso te conhecer pessoalmente?
Sou injerido!
Onde se lê precisão, leia-se preá
Prezado Amorim,
Bom dia.
Claro, podemos nos conhecer. Ficarei feliz em encontrá-lo para uma conversa e um café.
Pode dizer o dia, a hora e o lugar. Estou à sua disposição.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Não existe necessidade de comentar essa crônica. Simplesmente excepcional. Parabéns Marcos. Literalmente fiquei sem palavras.
Querido amigo Carlos Silva,
Bom dia.
Obrigado por suas palavras, mesmo que elas lhe tenham faltado, como você destacou. Isso, estou certo, em virtude da sua grande sensibilidade e bom coração.
Forte abraço e até domingo.
Marcos Ferreira.
Boa noite, querido e impoluto poeta!
Li sua crônica dominical ainda cedo. Quando ia fazer esse comentário uma senhora maltrapilha estendeu-me a mão e dei-lhe um pão.. aí, saí do foco!
Sua belíssima crônica é o retrato fiel da velha roupa colorida que vestimos todos os dias… é a sombra de tantas vivências e de muitas famílias que nos dias atuais amargam essas condições.
Caro poeta Francisco Nolasco,
Bom dia.
Grato por sua leitura e depoimento. Infelizmente, amigo, a crônica retrata a realidade de uma imensa parcela do povo brasileiro. A desigualdade social, agravada pela corrupção na política partidária, impera neste país onde poucos possuem tantos recursos e tanta gente não tem nada.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Que crônica maravilhosa, apesar de triste. Lembro da fábrica de calçados da rua Adauto Câmara, onde vivi boa parte de minha infância. Abraço grande meu amigo.
Querido Marcos Aurélio de Aquino,
Bom dia.
Fico feliz que tenha conhecimento sobre essa pequena fábrica de calçadas à Rua Adauto Câmara, 154, no bairro Doze Anos. Ali comecei ajudando meu pai e recebi a primeira assinatura (emprego formal) na minha carteira de trabalho. Eu contava quinze anos de idade. Era a Indústria e Comércio de Calçados Arruda Ltda, dos irmãos Ivo e Ivanildo Arruda, os quais recordo com carinho e gratidão. Forte abraço e um ótimo final de semana para você.
Marcos Ferreira.
Uma narrativa, diria, onde a pessoalidade é inserida para dar contornos aos fatos. Sem sombra de dúvida, uma vida Severina, marcada pelo drama dos que não nascem em berço de ouro.
Caro escritor Raimundo Antonio,
Bom dia.
Sua síntese é oportuna e certeira: vida severina, como no célebre poema do João Cabral de Melo Neto, sempre em voga neste país de assombrosa desigualdade social. Forte abraço e uma ótima semana para você.
Marcos Ferreira.
Bom dia, amigo Marcos!
“Vida Severina!” Quantos de nós não trilharam esse viver um dia? Alguns obtiveram êxito ao longo do caminho, através dos estudos, já outros ficaram à margem. O que é vivido na infância molda a tarefa de sobrevivência, mediante ação futura. Uma batalha sem igual. Até que olhamos pra trás, e descobre que de alguma forma, somos vitoriosos. Existe uma força incomum que nos impulsiona nadar contra a correnteza. É dolorido o fator amadurecimento, as lembranças de tempos difíceis, os sonhos perdidos na memória e as incertezas que virão na pela estrada. Somos filhos do mesmo sistema, mas também somos protagonistas da nossa história. Que a pena e o tinteiro possam (re) escrever parte da vida que deixamos lá fora. É preciso acreditar sempre. Avante, poeta! Abraços da sua amiga, aqui das bandas do Norte.
Prezada poetisa Rizeuda da Silva,
Bom dia.
Você, para variar, por meio de sua sensibilidade e talento no manejo da palavra escrita, consegue comentar ou discorrer sobre coisas tristes, desagradáveis, com admirável doçura e beleza, amenizando a tônica sombria e merencória da crônica em análise. Recurso mesmo de poetisa, de uma alma de artista. Muito obrigado por sua leitura e depoimento.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Sua crônica se assemelha a vida comum de tantos outros nordestinos, cujo o destino foi lutar por uma subsistência digna. E eu sei bem o que é isso. Isso me lembrou uma canção muito tocante do Genial Belchior, “Pequeno Perfil De Um Cidadão Comum” cujo os versos finais diz assim: “Era feito aquela gente honesta, boa e comovida, que caminha para a morte pensando em vencer na vida. Era feito aquela gente honesta, boa e comovida, que tem no fim da tarde a sensação da missão cumprida. Acreditava em Deus e em outras coisas invisíveis. Dizia sempre sim aos seus sennhores infalíveis. Pois é, tendo dinheiro não há coisas impossíveis. Mas o anjo do Senhor de quem nos fala o Livro Santo, desceu do céu para uma cerveja, junto dele, no seu canto. E a morte o carregou feito um pacote, no seu manto… Que a terra lhe seja leve.”
Caro poeta Airton Cilon,
Boa tarde.
Você, como sempre, contextualizando bem estes meus escritos através de sua sensibilidade poética e cultura musical. A exemplo de outros amigos leitores, sua presença e comentários só enriquecem ainda mais este espaço de informação, opinião e cultura.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.