Por Marcos Pinto
O doloroso flagelo das secas tem forjado espíritos nobres e santificados em seus imensuráveis dons de resignação. Representa uma quadra de incompreensão e conflitos contextuais materiais, dominando a alma dos sertanejos em labaredas de ansiedades que atingiram e atingem dimensões cósmicas em forma de tristeza e dor. A fé revela-se consistente quanto à dinâmica de força interior que informa a dimensão do equilíbrio misterioso da alma sertaneja.
A calamitosa seca dos dois setes (1877) emoldurou as família nordestinas em um palco para uma revolução silenciosa de comportamentos, impondo desvios para uma espécie de escambo sexual. Moças ainda imberbes para conjunções carnais viam-se obrigadas a enojantes concupiscências libidinosas de inescrupulosos comerciantes, vorazes tarados diante à barata oferta da virgindade de magras moçoilas, em troca de gêneros alimentícios, geralmente farinha e carne seca, conduzidos pelas inditosas virgens para salvarem suas famílias das garras da fome seguida de morte.
Foi neste cenário de tristeza e dor que a inditosa Maria Gaga nasceu na zona rural da então povoação de Caraúbas, no ano de 1865, segundo consta no seu assento de óbito de n° 64, do livro de registro do cartório único da comarca do Apodi, lavrado aos 18 de agosto de 1911. Conta a tradição oral, que Maria Gaga aportou em Apodi acompanhando a sua família, durante a atroz seca de 1877, onde instalaram-se na margem da lagoa, no lugar conhecido como “Garapa.” No local já se achavam várias famílias oriundas de longínquos rincões, até da Paraíba.
A lagoa do Apodi representava um óasis em pleno sertão nordestino. Passados alguns dias, eis que a família de Maria Gaga resolveu fugir da inclemente seca, seguindo em demanda para Mossoró, sendo certo que Maria Gaga afeiçoara-se a uma das famílias também retirante, optando por ficar naquele aprazível lugar, no que contou com a aquiescência dos seus pais. Tempos depois a jovem Maria Gaga soube que os seus pais e irmãos haviam falecido à míngua, sob os tristes estertores da fome, durante o percurso entre Apodi e Mossoró.
Maria Gaga aprendeu a orar na infância sem perspectivas, marcando na alma sensível o sentimento de fé, que superou em essência todas as tentações ateístas surgidas durante o seu martírio existencial. A sua imensurável fé só aumentava diante tantas e cruéis dificuldades, evidenciando disciplina e amor ao próximo – uma forma subjetiva de amor a Deus. Sucediam-se as secas, aumentando os suplícios existenciais da sua extremada pobreza franciscana.
Só Deus penetrava no seu grau de sofrimento, perdoando-lhe o comércio do seu corpo para não sucumbir ao martírio da fome e da miséria. As aves de rapina, travestida em forma de sádicos comerciantes, consumavam seus instintos libidinosos sem atentar para os inevitáveis castigos divinos. Confundiam os gemidos de represadas angústias da infeliz moça, com reflexos de pecaminoso e odiento prazer.
Sugavam-lhes a alma e a mocidade em conta-gotas extraídas do seu frágil corpo magro e pálido, exposto sobre uma esteira de palha de carnaúba, estendida sobre o chão de barro batido da sua humilde choupana situada na margem da lagoa, feita com troncos de carnaubeiras e coberto com suas folhas. Dormia-se na dita esteira e cozinhava-se em rústica trempe com panela de barro tingida de preto pelo fogo dos maravalhos.
A infinita resignação imprimia-lhe características próprias da pureza espiritual, exalando odor de santidade. Da sua boca nunca se ouvia imprecações cheias de revolta. Submissa aos desígnios do destino, vibrava cheia de fé em oração estilizada em forma de simplicidade emblemática e abrangente.
Santa Maria Gaga avulta na tradição oral do Apodi como uma mulher que muito sofreu e morreu com perfil de santidade. Segundo sua fiel devota Tonha de Lucas de Bréu (do Apodi), Santa Maria Gaga tem obrado muitos milagres ao longo desses 112 anos do seu encantamento/falecimento. Conta-se que ao falecer, ao meio-dia de 18 de agosto de 1911 houve uma grande ventania que derrubou muitas árvores na cidade, como se a natureza estivesse em transe, com o triste e humilde desenlace de Santa Maria Gaga. Houve um tipo de explosão emocional coletiva, contagiando a todos.
A tradição oral não é uma construção do pesquisador. Nenhum conhecimento distancia-se da teologia quanto à real história elencada em minudências transmitidas de geração à geração, ao longo de mais de um século do encantamento da Santa Maria Gaga. O seu registro de óbito comprova a existência da sua sacrossanta trajetória. O conteúdo das narrativas da tradição oral vem do homem, das imperfeições humanas, incompatíveis com a perfeição concebível somente pela fé em um ser supremo e absoluto, onisciente e onipotente.
O último dia
Encantou-se fulminada por infarto fulminante, aos 46 anos de idade, sem que se soubesse qual a família de Caraúbas-RN que compunha. Ao falecer residia em humilde casinha de taipa que caridosa pessoa a acomodara, vizinha à residência do Sr. João Pereira de Siqueira, então chefe da repartição dos Correios e Telégrafos, e que foi o declarante do assento de óbito de Santa Maria Gaga.
Deixou-nos com um certo olhar melancólico, evidenciando santa transfiguração em forma de sutil sorriso em sua santa e pálida face. Roguemos à Santa Maria Gaga para interceder por nós em todos os nossos momentos, junto ao supremo arquiteto do universo. Minha benção, Santa Maria Gaga!
Marcos Pinto é advogado e escritor
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