Por Marcos Ferreira
Sábado de aleluia. Avenida Presidente Dutra. Os dois naquele trecho entre uma ponte e a outra. Primeiras horas da manhã. Comércio ainda fechado. Pouco fluxo de veículos. Ali sentado em uma calçada um idoso com seu cãozinho tristonho e felpudo. Duas vidas sem amparo algum. Mendigo de barbas e cabelos longos e brancos. A noite dormida naquela calçada úmida entre cobertores sujos com aquele cachorrinho. Ambos sob a marquise de uma loja de móveis caros. Expostos à cruviana, ao vento frio da madrugada, às adversidades ao redor. Companheiros de privações e desventuras. Desassistidos, vulneráveis. Há quanto tempo sem um banho? Decerto vários dias. Indivíduo com mais ou menos setenta anos. Pele branca, rosto vincado.
Semana santa infernal para muita gente em tais condições, à margem da sociedade, na sarjeta. Alguns com tanto e tantos sem nada. Sociedade predatória, desigual. A partilha do pão? Uma falácia! Mundo impiedoso com os sem-teto, os desvalidos, elementos invisíveis aos olhos da grande maioria da população abastada e insensível aos irmãos tragados pela miséria. Vida excruciante, severa, perversa.
Cidadãos vítimas do caos profundo, pessoas mergulhadas no abismo de suas existências miserandas, desesperançadas, sem voz e sem verbos. Nesta importante avenida de Mossoró, um retrato nu e cru do desmantelo social: um velho e o seu cão entregues ao deus-dará. O Deus do Céu talvez alheio a esse panorama dramático. Muitas coisas, muitos problemas para “Aquele que tudo pode”. Sim, uma calamidade complexa, soluções difíceis até mesmo se nas mãos do Todo-Poderoso.
Um pobre homem e seu inocente e pequenino cão destroçados pelas colossais engrenagens deste sistema avaro, ignorados por cristãos e protestantes materialistas, de espíritos azinhavrados. Cadê aquela ecumênica historinha de liberdade, igualdade e fraternidade? Frase embusteira, vazia, demagógica. A miséria, o abandono e a fome às escâncaras debaixo de viadutos, nas calçadas, nos bancos de praças. Nenhum de nós responsável por nada disso. Cada qual com os seus projetos e prioridades, com nosso umbiguismo arraigado, individualista, sem dó, sem compaixão.
De quando em quando uma espécie de remorso, imenso constrangimento atravancado na minha consciência. Vergonha do meu hipotético status de ser humano, de filho de Deus, de irmão dos meus irmãos mais necessitados. Não, obviamente, desses irmãos sem ao menos um pão duro a cada dia. Igual àquele desvalido exposto ao relento na Presidente Dutra, em situação degradante àquela hora da manhã de ontem (sábado de aleluia), invisível em uma calçada de loja com o seu cachorro melancólico. Por que, meu Deus, tanta lástima sob os Céus? O poeta condoreiro Castro Alves também sem essa resposta antes de sua partida para o além-túmulo. O Criador, cheio de afazeres até o pescoço, sufocado, impotente diante deste mundo tão cruel.
Provavelmente o Altíssimo já sem forças para esse fardo gigantesco, desmedido. A cada um de nós, no entanto, o dever de boas ações, da divisão de renda, da partilha de alimento, moradia para todos, o mínimo de dignidade. Oh, Senhor, perdão por esta crônica meio zangada em favor desses teus filhos rifados nas ruas, em todo recanto da Terra, desprotegidos, sem guarida, sem vez, sem verbos.
Marcos Ferreira é escritor
Boa reflexão sobre o quanto somos infantilizados por aqueles que detém a verdade e a razão, que continuemos inertes esperando a vinda do salvador acomodados nas nossas ilusões e satisfeitos com as mentiras que nos são impostas!
Olá. Obrigado por sua atenção, leitura e comentário. Uma ótima semana para você, saúde e paz. Abraço.
Tessitura perfeita.. Parâmetros e paradigmas contextualizantes.
Valeu, meu xará
Obrigado por seu comentário. Não podemos esquecer de que estamos do mesmo lado: contra os nazifascistas e os golpistas, inimigos da democracia. Feliz semana.
Abraço.
É uma crônica bem polêmica: há muita desigualdade; poucos com muito; alguns com o necessário e muitos sem nada. Aos nossos olhos parece que Deus não se importa… não acredito nisso! Há o livre-arbítrio: o homem tem a liberdade de construir e destruir; fazer o que quiser do mundo… entendo que tudo tem causa e consequência! Mergulhar nas questões individuais é bem difícil! Cristo ensinou que devemos amar uns aos outros como nos amamos! Se o amor-próprio se espelha no amor de Cristo que se doou por uma causa, coloco a pergunta: será que nos amamos o suficiente para termos amor para distribuir?
Obrigado, minha amiga.
Sua opinião é muito valiosa para mim.
Abraço.
Bom domingo, poeta…
Lembrei agora da história do ” Sem família” do Francês , se não me trai a memória, Hector Malot. A má distribuição de renda, a espúria de nossos governantes, a insensatez de tantas igrejas pidonas, que muito recebem e que tão pouco doam…
E assim segue a humanidade sob as trombetas inflamáveis das facas de muitos discursos e poucas ações.
Caro poeta Francisco Nolasco,
Suas palavras, como sempre, carregadas de sensibilidade e bom senso. Muito obrigado.
Abraço.
Fantástico resumo do sistema escroque que avilta a dignidade de tantos!
Querido amigo Dr. Dirceu Lopes,
Grato por sua leitura e depoimento sensível e relevante. Uma feliz semana para você, muita saúde e paz.
Forte abraço.
Feliz Páscoa! Companheiro.
Meu fraterno amigo Campina,
Desejo uma semana abençoada para você e sua família.
Forte abraço.
Parabéns sempre!
Obrigado, querido Campina.
Forte abraço. Saúde e paz.