Por Marcelo Alves
O que devemos levar em conta para atribuirmos aos animais não humanos direitos e proteção? Em 1789, quando da publicação do seu “An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”, essa questão já inquietava Jeremy Bentham (1748-1832):
– “É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino [de torturas, a que eram submetidos, outrora, os homens de pele escura]. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar?”.
Bom, ao que tudo indica, a faculdade de raciocinar – raciocinar como nós, humanos – não é um critério adequado. Não funciona. Afinal, com já lembrava Benthan, “um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês”. Aliás, tornou-se clássica a observação de outro filósofo, Peter Singer (1946-), em seu “Animal Liberation” (1975):
– “Mesmo com o maior cuidado intensivo possível, alguns bebês gravemente retardados jamais poderão chegar ao nível de inteligência de um cão. (…). A única coisa que distingue o bebê do animal, aos olhos dos que alegam o ‘direito à vida’, é ele ser, biologicamente, um membro da espécie Homo sapiens, ao passo que os chimpanzés, os cães, os porcos não o são. Mas usar essa diferença como princípio para conceder direito à vida ao bebê e não a outros animais é puro especismo”.
A capacidade de linguagem/fala – embora isso nos constitua e nos diferencie dos outros animais, como sugeriram pensadores como Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ou Jacques Lacan (1901-1981) – também não é suficiente. Bebês humanos, por exemplo, nada ou pouco dela a têm no nível sofisticado dos adultos. Por que, então, a linguagem seria capaz de gerar um discriminem dessa magnitude, separando os que merecem ou não respeito e proteção moral e legal?
Singer dizia: “A linguagem pode ser necessária para o pensamento abstrato, ao menos em alguns níveis; mas estados como a dor são mais primitivos, nada tendo a ver com a linguagem”.
A resposta parece estar numa tal “senciência”, um conceito que, para os fins do direito (dos animais, em especial), tem de ir além do que nos é emprestado pelos dicionários. Capacidade de ter sentimentos, sensações, consciência, talvez seja um bom começo, mas não é um suficiente final. Talvez Bentham tenha razão mais uma vez: “A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim, se são passíveis de sofrimento”.
Devemos dar conta da senciência dos animais no sentido de que, embora não tenham uma racionalidade igual à humana, eles não são assim tão diferentes (de nós) ao ponto de podermos negar as suas capacidades de sofrimento. Aqui podemos incluir não só as sensações de dor, mas também de ansiedade, medo e agonia. E devemos concluir que todos os animais vertebrados ou dotados de um sistema nervoso central são sencientes (embora haja quem vá mais longe e atribua a característica a todo o reino animal).
Essa proteção aos sencientes eu também extraio de disposições da “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela UNESCO em 1978: “todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem; nenhum animal deve ser maltratado; o animal que o homem escolher como companheiro não deve ser nunca abandonado; nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor; os direitos dos animais devem ser defendidos por lei”.
De toda sorte, é importante ser dito que alguns criticam o próprio critério da senciência. Segundo li na maravilhosa “Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare” (Greenwood Press, 2010), editada por Marc Bekoff (1945-), esse critério denotaria “uma atitude que arbitrariamente favorece os seres sencientes sobre os não-sencientes”. Ele condenaria “toda a criação não-senciente, incluindo os animais inferiores, na melhor das hipóteses, a um status bem inferior… ou, na pior, a um status sem qualquer proteção”.
Faz certo sentido. O problema é que a senciência é hoje o melhor critério que nós temos.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANRL)
Este texto apresenta uma visão inovadora para mim. Até então, o raciocínio humano e o instinto animal seriam as diferenças. O conceito de senciência e a valoração da perspectiva de dor e sofrimento me deram um novo entendimento.
Mais uma vez obrigado pelo conciso e brilhante artigo, sem esquecermos que os ditos seres humanos mais que devam aprender e apreender conhecimento, claro, à partir da sua trágica/carnificina histórica de predadores natos.
Mais ainda quando somos sabedores de que a unilateral e histórica régua imposta aos outros seres vivos, efetivamente não deve servir de imobilismo cientifico, sobretudo partindo do pressuposto e da compreensão do que deva ou não ser considerado civilizado e (ou) racional.