No último dia 25 de agosto, sexta-feira, se estivesse viva a professora Dagmar de Miranda Filgueira estaria completando 100 anos de idade.
Foi fundadora do Colégio Dom Bosco (Mossoró), onde estudei minha infância e parte da adolescência. É-me até hoje uma das grandes referências à formação que tive.
Nesta postagem, em sua homenagem, republico a crônica que veiculei nesta página no dia 22 de julho de 2012, há pouco mais de cinco anos.
Por Carlos Santos
“Ninguém se realiza com o que é perecível”, (Sêneca)
Uma cena não me sai da cabeça, entre tantas da infância tão distante cronologicamente. É recolhida com enorme facilidade dos recônditos de minha memória, porque guarda uma ambiguidade. É boa, é ruim. É marcante.
Vamos à ela:
Sou flagrado ao lado de uma trupe, em espalhafatoso corre-corre entre carteiras escolares. Uh-huuu!! Era algazarra de meninos imperativos ou que desejavam extravasar uma energia pessoal e coletiva que parecia inacabável.
A presença daquela mulher à porta, com mãos sobre as cinturas, braços arqueados, seria suficiente para nos impor ordem e o necessário silêncio ao ambiente. Impávida. Onipotente. Parecia nascida de um filme de Hitchkock, em preto em branco, com solene autoridade.
Seus olhos fixos e penetrantes, protegidos por lentes de óculos em armação grossa, escolheram a mim para sustar o alarido. Nada mais seria necessário para nos intimidar, lhe digo. Paralisado, ouvi-a: “Você já ficou bom para estar se danando?”
O menino de cabelos escorridos, lábios carnudos, braços e pernas longilíneos desabou ali mesmo. O saçaricado foi substituído por uma resposta quase inaudível, de cabeça baixa e coração acelerado. A respiração saía por um bico. Era medo, vergonha. Um misto disso:
– Não senhora!
A professora Dagmar Filgueira, diretora geral do “Educandário Dom Bosco”, recebera-me poucos anos antes à sua sala com delicada finura. A matrícula escolar estava confirmada e eu faria parte de um projeto pedagógico todo seu, que tinha a marca de quem dedicara a vida à educação. Enxergava a família como princípio de tudo e, a escola, o suplemento indispensável à formação do homem.
Eu não entendia nada desse lero-lero, nem me interessava muito por estudar, cumprir regras, atender a exigências escolares. De algum modo, eu já tinha muitas normas em casa e não gostava. Os anos seguintes, cerca de dez, foram muitos dos melhores momentos de minha existência entre corredoes, escadarias, pátio, cantina e salas de aula.
Os desfiles escolares sempre em farda impecável, acordar cedinho para a educação física e a inapetência para o esporte também constam dessas reminiscências.
Diversos amigos da época os conservo até hoje. Entretanto, existem aqueles que estão guardados apenas na fisionomia da meninice, sem nome. Vejo-os passar e com eles também passam filmes da infância. Retorno ao Dom Bosco em frações de segundos. De lá, acredito, nunca saí de verdade.
Professores como Deusa e Oscar são eternas referências. Com “Tamela” há uma dívida enorme e insanável, além de confissão do réu confesso: continuo um desastre na matemática e graças a algumas “colas” sobrevivi ao seu rigor de ensino. Ficam as desculpas, mas sobretudo o agradecimento.
“Dona Dagmar”, entre todos, incluindo o diretor “Filgueira”, era a própria instituição. Uma tutora de cada um de nós, por confiança de nossos pais. A preceptora à moda milenar dos romanos e gregos, que parecia ter tocado a pedra filosofal. Se a vida lhe foi longa, ainda maior é o que soube germinar.
Em suas cartas que deram vida ao livro “Sobre a brevidade da vida”, o filósofo Sêneca fala sobre o real significado da existência humana, em relação a seu rápido transcurso temporal. No fundo, ele dilata essa importância a partir do que de melhor se pode fazer do tempo terreno. “Ninguém se realiza com o que é perecível”, assevera o pensador.
A professora Dagmar conseguiu se multiplicar nos seus milhares e milhares de ‘filhos’, fardados, em fila indiana na direção da sala de aula, no pátio a cantar o hino nacional, no repique do tarol em todos os 7 e 30 de setembro, no grito de gol do time de handebol na quadra esportiva.
Por falar em tempo, creio que ainda é possível dizer à professora-diretora que valeu a pena essa infância, cada segundinho da convivência. Mesmo dessa lonjura, não me desapego dessa parte da vida que se agarra a gente como tatuagem, para nunca mais nos largar.
Todos os dias, de algum modo, voltamos a ser criança, a cruzar o chão de terra, a fazer burburinho diante da sirene que nos chama de volta ao banco escolar, a rasgar o joelho em mais uma carreira desembestada.
Ah, não posso deixar de esclarecer! Fiquei bom.
Depois de muitos anos de sofrimento, várias crises, internamentos, angústia minha e de meus velhos, balão de oxigênio e pânico pelo o ar que me fugia, superei a doença, professora Dagmar. Há tempos aquela asma torturante foi embora, sem deixar saudades.
Agora lhe respondo melhor, sem a voz chiada e temerosa, porque me fiz mais forte e autoconfiante, também graças a ti. Acho que tudo valeu e continua valendo a pena.
Agradeço a DEUS por ter me proporcionado a felicidade de privar da adorável amizade de dona Dagmar durante muitos anos, principalmente no dia-à-dia do período em que lecionei em seu histórico COLÉGIO DOM BOSCO (1980-1985). Apesar do seu semblante sisudo, tinha um coração boníssimo, afável, de convivência fidalga. Com certeza é um das estrelas de primeira grandeza em virtudes a compor a constelação da mansão celestial. SAUDADE infinita.
Muito bom! Lendo isso também me vi naqueles corredores. Boa memória.
Uma justa e merecida homenagem. Acho que temos algo em comum:de matemática só sei as “três operações e a regra de quatro”.
Parabéns pela homenagem à nossa saudosa e eterna professora…
Jornalista Carlos Santos. Que crônica comovente, que riqueza de detalhes de uma infância animada, movimentada e bem dirigida. D. Dagmar apareceu, em imagem, na sua letra.
Carlos Santos, dentre tudo o que já escreveu, meus olhos estão querendo dizer que essa foi a sua mais linda redação.
Ninguém se livra da infância. Bela crônica!
Blz Carlos, todos nos tínhamos um grande respeito por ela, lembro-me muito bem dela, e dos corredores do nosso Dom Bosco, e de nossas pelejas na aquele grande colégio, belos anos, que defendíamos com unhas e dentes das estocadas dos alunos do Diocesano.
Sr. Carlos que homenagem comovente! Descreve tão bem a firmeza e ao mesmo tempo a doçura da minha querida e saudosa, “Tia Dagmar”. Sempre que vinha nos visitar em Fortaleza, era motivo de muita alegria pra todos da família. Culta, elegante e sempre muito animada, deixava saudades quando as férias terminavam. Sim, seu olhar era penetrante, impunha respeito. Mas seu sorriso e doçura era de deixar qualquer criança fascinada. Gratidão Sr. Carlos, por trazer-me tão doce lembrança.
Estudei no Colégio Dom Bosco de 1986 a 1990. Estudei com Gláucio Fabrízio, Cícero Marques, Jefferson Filgueira, Souza, Serginho que morava na Ilha de Santa Luzia, Flávio Soares, João Paulo Targino, Isadora Brasil, Suzana e sua irmã, Rivana Rolim, Tereza, entre tantos. Meu par no São João foi Kátia Filgueira (in memorian). Dagmar já estava meio que aposentada, assim como D. Tãmela. Fui aluno da professora Lourdes e de Socorro Soares, além de um professor que diziam que era descendente de índio, que esqueci seu nome agora. Comprei pipoca em Márcio, já fui pra sala de Filgueira por mau comportamento, comprei filóis de Gavião, aperreava “Dona Perereca”, comprava na cantina do colégio, subi num pé de castanhola que tinha atrás do colégio, fui ao Horto Municipal, à salina em Areia Branca, treinei Handebol no Dom Bosco, apanhei do filho mais velho de Filgueira (Sanderson Satyro Filgueira) e sua turma, apanhei de Cristopher, lasquei a cara no chão pegando morcego numa caminhonete, me apaixonei por Melissa que veio dos EUA em 1990. Minha mãe chegou a ter uma lanchonete ao lado do colégio. Época mágica!