sexta-feira - 20/07/2007 - 10:53h

Somos amigos, não esqueça (Oração do Afeto)

Desperto ainda pela madrugada. Manhãzinha, para ser preciso. Uma luz assenta meu quarto, preguiçosamente, desejando-me bom-dia a seu modo. Invade-o pela janela envidraçada e semi-encoberta pela veneziana encardida. É minha primeira companhia de hoje. Como quase sempre. Ele, o sol, raramente falta a esse encontro matinal.

Eu!? Bem… repito Quintana: passarinho!

Ao computador, a boa nova que poderia ser banal. Sou avisado generosamente. Hoje, 20 de julho, é o “Dia do Amigo”. E-mails lembram-me da data, risível ou desdenhada por mim num passado que se distancia, quando parecia movido por uma pressa hedonista. Não, hoje não é um dia qualquer, amigo.

Particularmente, tenho a tese de que esses apegos crescentes às datas não surgem por acaso. Há muito de entonação biológica. É a idade de longo curso, lapidando e nos transformando. Para melhor ou para pior? Bem, aí é outra questão.

Refugiei-me por anos, décadas até diria, numa couraça a me proteger dos apelos mercantis: dia disso, dia daquilo. Não, definitivamente eu não me enquadrava na liturgia mecânica da alegria prefixada. Ou, quem sabe, não me convertera numa porção mais comum e humanizada do homo sapiens.

Fui ajudado, socorrido a tempo. Sou um simples mortal, que se derrete às lembranças e às datas, sem vê-las como antes. O que era número na cronologia romana de medir o tempo, agora representa valor existencial.

Desperto da aridez, fertilizado para me deixar tocar pelo aroma do bem-querer; o abraço que aproxima corações e me faz gente. De carne e osso. Alma carregada de todos os sentimentos do mundo. 

Da amizade sai toda a carga platônica de enxergar o homem. O homem em suas contradições, seus pecados, virtudes, força e fragilidade. Nela não há a figura do ex, o que se foi, aquele que partiu a deixar saudades. Não há vácuos. Sobra a permanente concessão ao afeto, a renúncia ao ter em nome do ser. Banho ritual pela compaixão.

A gente gosta e pronto. Defeitos? Onde? Nada disso. Conta a cultura oral da política de minha terra, que provocado a deixar um aliado às feras, o deputado Vingt Rosado resmungou: “Amigo meu não tem defeito. Inimigo, se não tiver, eu boto!”

Ah, que embrulho no estômago! Fica aquele gosto acre na boca, a respiração parece faltar. Nosso rosto espelha contrariedade. Olhos aturdidos, quase saltam pela tangente. As pernas não dão sinal de vida. Será que estão no lugar? Espero que sim, para correr daqui. Estão falando de e não “sobre” meu amigo. O corpo sozinho responde por mim: eu não gosto que falem “de”… Pronto. É isso. É meu amigo e daí?

Em troca, não apresento fatura, não invoco São Francisco e sua oração do “é dando que se recebe”, nem desconfio que vou ser traído. A ingratidão não existe. É tudo invenção de quem se foi, deixando para trás minha mão estendida.

Somos amigos, não esqueça.

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Categoria(s): Nair Mesquita

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