domingo - 02/03/2025 - 11:36h

Desdém

Por Bruno Ernesto

Tronco amarrado no jardim de Dona Lourdes, minha mãe Foto do autor da crônica)

Tronco amarrado no jardim de Dona Lourdes, minha mãe Foto do autor da crônica)

Manhã de sexta-feira de carnaval, passei para falar com minha mãe antes do feriadão começar e poder me certificar quais plantas do jardim dela precisam de um cuidado adicional.

Embora esteja chovendo copiosamente, todo cuidado é pouco.

Apressada para poder pegar a estrada, saiu me apontando os jarros que ela queria mais atenção.

Olhou, olhou. Puxou um, outro. Trocou de lugar um jarro com uma muda de cróton.

Tinha várias novidades.

Ergueu um pequeno jarro contendo uma planta de folhas bem verdes, listras brancas – quase como estivesse sido feitas com um lápis giz -, e uma pequena flor amarela bem no topo.

– Cuidado com essa. Essa precisa só de um gole d´água. Não sei o nome dela.

Para facilitar a vida – eis umas das vantagens da inteligência artificial -, utilizo um aplicativo gratuito (PlantNet) instalado no celular que identifica rapidamente a flora. Basta fotografar e escolher como identificar: pela folha, flor, fruto, casca e hábito.

Era uma pequena zebra.

Percorremos o jardim e ela a me apontar cada planta, como se fosse uma médica apontando cada paciente em seu leito numa troca de plantão.

Me chamou para perto do portão pequeno e me apontou outras novidades, cujos nomes ainda não decorou.

Mais uma vez me vali do aplicativo: Dois Amores e uma Euphorbia Lactea Cristata, uma suculenta esquisita, popularmente conhecida como cacto monstro.

Apontando para o cacto, disse preocupada que o neto caçula, meu sobrinho Lucas – um príncipe de quase dois anos de idade e dono de uma personalidade que vai lhe ser muito útil -, já anda investigando o jardim, e vez ou outra aponta as mãozinhas no cacto monstro.

Entretanto, o que me chamou a atenção foi que ali, bem ao lado do cacto mostro, no meio da folhagem bem verde, se destacava uma flor com cinco pétalas, aveludada e bem vermelha. Única flor.

Como gosto de registrar as florações, cuidei de tirar algumas fotos dela e ao mudar de ângulo, percebi que, embora se tratasse de uma rosa-do-deserto, ela não era aquela típica rosa-do-deserto que se assemelha a um baobá em miniatura.

Seu caule era alongado e lembrava o do buquê-de-noiva, e estava amarrada num velho cabo de vassoura, já bem enferrujado e que serviu como guia quando a muda foi plantada naquele jarro.

Bem onde estava amarrado, o barbante laçado apertou-lhe o caule de tal forma que o marcou definitivamente, mas não impediu o seu crescimento. Certamente dificultou.

Como resultado, brotou uma única e solitária flor. A planta, porém, com desdém, caprichou.

Mais ou menos como devemos ser na vida.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/03/2025 - 09:32h

O direito de Shakespeare

Por Marcelo Alves

Arte produzida com recurso de Inteligência artificial para o BCS

Arte produzida com recurso de Inteligência artificial para o BCS

Um dos “mistérios” sobre Shakespeare diz respeito ao direito. Como poderia o Bardo ter tanta intimidade com o mundo jurídico, ao ponto de retratar tão fielmente os procedimentos legais da época das suas produções teatrais? Como poderia ele, com tanta precisão, debater questões como Justiça, formalismo legal, bom-senso etc.?

Formação clássica em direito, Shakespeare não possuía. Ele foi certa vez testemunha em um caso envolvendo pessoas da sua convivência, é vero. Esse, aliás, é um dos acontecimentos mais relevantes para comprovar a existência da pessoa William Shakespeare (1564-1616). Mas isso, por óbvio, está deveras longe de fazer dele um profissional/conhecedor do direito.

Esse mistério do conhecimento jurídico do Bardo tem martelado em minha cabeça desde quando, morando em Londres, tive oportunidade de assistir a duas de suas obras: “Bem está o que bem acaba” (no National Theatre) e, sobretudo, “A Comédia dos Erros” (no Globe Theatre), peça cuja trama gira em torno da condenação à morte de um comerciante de Siracusa, apenas por violar estrita proibição legal de cruzar a fronteira entre sua cidade e Éfeso. “A Comédia” trata, então, do dilema da pena de morte, do legalismo exagerado e meandros dos procedimentos legais da época.

Esse “encafifamento” só aumentou depois que eu devorei, já no papel, as duas “peças jurídicas” de Shakespeare, assim classificadas por Daniel J. Kornstein em “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal” (University of Nebraska Press, 2005): “O Mercador de Veneza” e “Medida por Medida”.

“O Mercador de Veneza”, notável “courtroom drama”, é uma crítica à vingativa visão de Justiça “olho por olho, dente por dente” e à visão formal do direito, em prol de uma Justiça de equidade, a partir de um bom-senso natural aplicado às especificações do caso. É também uma aula de direito contratual e, sobretudo, no que considero o clímax da peça, uma lição de hermenêutica inteligentemente revolucionária, embora, como sói ocorrer no bom direito, atenta à “letra da lei” e aos “exatos termos” do contrato. Já em “Medida por Medida”, onde nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, aprendemos que “Leis para todas as faltas (…): são motivo de zombaria mais que de advertência”; e enxergamos a hipocrisia da Justiça absoluta aplicada pelos homens, uma vez que, no mundo real, de paixões e fraquezas, por não ser a medida certa, ela simplesmente não funciona. Pelo menos não no parecer do grande conhecedor da alma humana – certamente o maior de todos que, em poesia, dela tratou – que foi Shakespeare.

Há uma curiosa teoria que visa explicar essa sabença jurídica do Bardo. Segundo os autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” (J. M. Dent & Sons, 1978), Gareth Lloyd Evans e Barbara Lloyd Evans, existe a tese de que “Shakespeare foi assistente de advogado após deixar a escola”. Para eles, “isso, como uma defensável hipótese, não pode simplesmente ser colocada de lado. Não há prova factual, mas a evidência circunstancial é formidável: (a) durante a juventude, ele teria sido bem relacionado com os advogados de Stratford em razão dos afazeres do pai, tanto comerciais como na administração da cidade, e mesmo em litígios mais graves nos quais o volátil John Shakespeare estava envolvido, incluindo contravenções; (b) durante a vida, Shakespeare estava envolvido, como muitos do seu status social e econômico, com questões legais – em especial a compra, venda e aluguel de imóveis. Ele parece ter sido assíduo e informado nos seus negócios e tornou-se próspero; (c) suas peças são pródigas em profissionais do direito, em linguagem legal e mesmo em evidências de um bom conhecimento da ciência jurídica”.

Desconfio. Tanto quanto não gosto de teorias conspiratórias, desprecio teses mirabolantes. Prefiro acreditar que Shakespeare foi mesmo um gênio natural, autodidata, com insuperável capacidade de extrair maravilhas das suas fontes, reformulando-as nas tragédias e comédias que nos encantam até hoje.

Ele lia e relia os livros que podia, sobretudo os clássicos gregos, para fins de elaboração de suas peças, assim como as reescrevia e revisava frequentemente. Ao ler e reler os clássicos, pensar e revisar as ideias de outrem e as próprias, ele se fez autodidata na apresentação literária do bom-senso e da Justiça.

Aliás, os próprios autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” lembram que a grande força do Bardo não estava no seu conhecimento ou bagagem cultural – isso Milton, Francis Bacon ou mesmo Ben Jonson tinham muito mais do que ele –, mas, sim, na forma poética e insuperavelmente encantadora como ele punha esse conhecimento no papel e no palco.

Isso, para o direito, que trabalha com a linguagem, é muito mais do que muito. E não se aprende em faculdade alguma.

Crônicas anteriores

Leia também: Os roubos de Shakespeare (09-02-2025)

Leia também: As rupturas de Shakespeare (16-02-2025)

Leia também: Os mistérios de Shakespeare (23-02-2025)

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 02/03/2025 - 04:00h

Ouro em pó

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa da – Freepick/Vecstock

Arte ilustrativa da – Freepick/Vecstock

Estou deveras atrasado. Pois todos os meios de comunicação de Mossoró já divulgaram a ocorrência. A notícia (perdoem o lugar-comum) correu ligeira como um rastilho de pólvora. De qualquer modo, como a gente costuma ter a pretensão de contar as coisas de modo desejosamente invulgar, quem sabe artístico, vou descrever o que se passou na última quinta-feira em um supermercado bem pertinho do Conjunto Walfredo Gurgel, a uns quinze minutos de caminhada da minha casa.

Aqui, todavia, eu me reservo o direito de não citar o nome da bodega onde aconteceu a invasão. Não farei, portanto, propaganda gratuita do estabelecimento comercial em que presenciei o ataque de oito ou dez homens fortemente armados. Um dos fora da lei, sujeito atarracado, usando um boné verde-musgo que deixava entrever o cabelo grisalho e um bocado crescido escapando pelas laterais, portava o que me pareceu um fuzil ou metralhadora. Os demais empunhavam pistolas e revólveres. Mandaram todo mundo deitar no chão e jogar para eles os nossos celulares.

Presumi que nenhum de nós, deitados de bruços no piso gelado, sofreria qualquer tipo de violência física. Eu estava certo. Não encostaram um dedo em ninguém. O indivíduo atarracado, decerto de meia-idade, foi arrastando os celulares com os pés para junto de um expositor de bananas. Exigiu, com voz alta e firme, que ficássemos de cabeça abaixada. Imagino que nenhum cliente desobedeceu.

— Não olhem para mim! — rosnou o assaltante, que se virava a todo momento para a porta automática do supermercado. Quem ia chegando ele apontava a arma e mandava que ficasse na mesma condição de todos nós: no chão. Os recém-chegados, sem exceção, tiveram que depressa entregar seus celulares.

Bateu-me logo o receio de que levassem os aparelhos, alguns talvez arranhados pela forma como o elemento amontoou os telefones. Ficar sem meu celular em decorrência daquele assalto, obviamente, representava um transtorno administrativo e financeiro. Todos ficamos de cara no piso, a exemplo dos operadores de caixa e de um policial militar à paisana, que foi pego de surpresa e rendido. O pê-eme fazia um bico como segurança da loja. Ficou sem a arma e também sem o celular.

O samango era um cidadão de cabeça quase raspada, gorducho, cara redonda e rosada, orçando pelos cinquenta anos de idade. Deitou-se à minha esquerda, quase roçando meu braço. Pude notar que tinha a testa porejando suor e demonstrava um nervosismo que o deixava com as mãos visivelmente trêmulas.

Eu, apesar de me ver em uma situação como aquela, sentia-me, para a minha própria surpresa, por demais sereno, tranquilo. Tudo naquela perigosa empreitada, a meu ver, indicava que os invasores não estavam ali para machucar quem quer que fosse. O objetivo dos caras, que possuíam grandes bolsas de lona e mochilas às costas, não tardou para ser alcançado. Encheram as sacolas de lona e as mochilas com todos os pacotes de café dispostos nas prateleiras do inflacionado produto.

Presumo que a operação inteira não chegou a dez minutos. Saíram tão rápido como entraram. Nenhum dos telefones foi levado. Exceto a arma do policial. Catei o meu celular entre os outros e me mandei para casa, deixando no reduto da carestia as minhas poucas compras reunidas em uma cestinha de plástico de cor laranja. Quando umas quatro ou cinco viaturas da polícia enfim chegaram, os ladrões de café já estavam muito longe do alcance dos militares. Por via das dúvidas, só voltei ao supermercado depois das sete da noite. Preciso informar, embora falhando na sequência da narrativa, que o roubo do ouro em pó se deu por volta das quinze horas e trinta.

Aqui entre minhas vizinhas, especificamente na redação do Fofocas News, a queixa é grande em virtude do alto custo de um pacote de café. Dependendo da marca e do tipo da rubiácea, ninguém pode sequer chegar perto. Mesmo aqueles mais ordinários receberam aumentos de preço mais que absurdos.

Porém, desafiando o alto custo do ouro em pó, a tradição não morreu por inteiro nas nossas tardes-noites nas calçadas de Sayonara e Rucilene. É verdade que uma ou outra redatora do Fofoca News aderiu ao chá. Mas não é fácil trocar o pretinho cheiroso de outrora, mesmo com os preços pela hora da morte.

Rucilene, por exemplo, não deita fora a borra do café feito de manhã. Guarda para a tarde e mistura com uma ou duas colheres de uma marca mais em conta. O problema é que sai tão fraquinho que é possível enxergarmos o nome Duralex no fundo da xícara. Desse jeito, segundo protesta a redatora-chefe dona Raimundo, é melhor ficarmos no chá. Maria dos Navegantes, no entanto, não se dobra em face da prática de preços abusivos. Ela já vendeu até um rim para não abrir mão do café.

Nossa querida vizinha Cilene Freitas, também repórter do Fofoca News, convenceu o esposo, o senhor Arimatéia Garcia, a abraçar a proposta de um chazinho de camomila, erva-cidreira, chá-mate ou de capim-santo.

Aqui em casa, felizmente, volta e meia os amigos que me visitam me trazem de presente um ou dois pacotes do ouro em pó, além de umas bolachas, pães, bolos e queijo. É uma fartura total. Só tomara que os elementos que roubaram o café do supermercado não descubram isso. Que Deus me livre e guarde.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 23/02/2025 - 11:16h

Lourdinha

Por Bruno Ernesto

Mercado da Cobal em Mossoró Foto: do autor da crônica/2025)

“Mercado da Cobal” em Mossoró (Foto do autor da crônica/2025)

Embora nos últimos tempos tenha se mostrado uma forma de ostentação involuntária para a maior parte da população, ir ao supermercado ainda é umas das coisas das quais sempre gostei de fazer, nem que seja para aplacar o calor com o ar condicionado e passar o tempo, se for preciso.

Dia desses, após descer do Uber – aos gritos -, uma passageira caiu desfalecida bem na porta do condomínio.

Foi perturbador; um desespero para quem presenciou aquela cena. O porteiro chamou o SAMU e avisou ao síndico.

Alguém gritou que tinha visto quando o Uber, mesmo vendo os acenos e gritos a plenos pulmões daquela passageira, e sabedor que seria rastreado pelo próprio aplicativo, arrancou em direção ignorada.

Coitada, aos prantos, a pobre mulher falou ao socorrista que esqueceu no banco do carro a sacola com dois pacotes de café que acabara de comprar no supermercado.

– Moço, era da nespresso!

A internet não perdoa. Memes e vídeos humorísticos sempre arrancam as maiores gaitadas do público.

Entretanto, pelo menos em Mossoró, nada melhor do que ir ao mercado da Cobal. Preferencialmente, o mais cedo possível. Tem coisas que a xepa não compensa.

Aquele furdunço de gente, os cheiros, as cores, os sons e os personagens são instigadores.

Tem de tudo. Mas prefiro os doidos e os vendedores sem paciência. Nada como perguntar repetidamente a um vendedor carrancudo, quase como numa maiêutica socrática, e, ao final, dizer que está caro ou pedir desconto.

Bem, antes que você ache que é brincadeira, relembre a estória acima. Não se pode esquecer mais nem um moi de coentro ou cebolinha no Uber. Tudo está não só pela hora da morte; mas também da missa, do enterro e da ressurreição.

Ah, claro! O estacionamento é terrível.

Tem vendedor que não faz muita questão de lhe vender. Se você pedir desconto, é capaz de apanhar.

Passei um bom tempo sem ir regularmente ao mercado da Cobal, além do que nem sou frequentador assíduo, a ponto de conhecer nominalmente os comerciantes ou alguns personagens, pois só vou quando preciso de algo bem específico – Lembre, caro leitor: o estacionamento; o estacionamento é terrível. -, mas é um excelente local para se frequentar e comprar delícias.

Como gosto de cozinhar e adoro comida sertaneja, numa sexta-feira dessas, já me deitei para dormir pensando no almoço do sábado: farofa d´água, arroz de leite da terra – cozinhado só com leite -, feijão de corda com cebola roxa, nata e um bom punhado de cebolinha e coentro – com talo e tudo; bem picado. -,  vinagrete bem azedo, carne de sol assada e uma bela pururuca.

A noite quase não passa. Roncamos eu e meu estômago, num dueto em si…se tivesse fava seria uma boa ideia. Talvez no outro sábado.

Outro dia fui à Cobal em busca de queijo de coalho e nata e, de longe, vi um amontoado de gente em frente a um box fincado bem nomeio da Cobal.

Encostei nele, e vi que estava repleto de produtos do sertão: queijo de manteiga, de coalho, nata, manteiga da terra, castanhas das mais variadas, mel de abelha e de engenho, leite e ovos caipiras. Cada coisa mais linda que a outra.

O balcão – tão organizado que, certamente quem o organiza ou é do signo de Virgem ou tem TOC – reluzia num amarelo intenso feito um altar de igreja banhado de ouro. Mas, ao contrário do altar santo, só despertava o pecado da gula.

Quem despachava era uma senhora por volta dos seus 65 anos de idade, muito ligeira, de voz firme, concentrada e de pouca conversa. Só estendia o assunto se fosse para rebater qualquer tentativa de desconcentrá-la.

Enquanto esperava a minha vez para ser atendido naquele amontoado de gente em frente ao box, um rapaz que tentou furar a fila sorrateiramente foi surpreendido com um olhar fulminante dela, que disparou sem hesitar:

– Vá pra fila. Tô atendendo ele!

Naquele instante, ela me arrebatou como cliente para o resto da vida. Gostei de pronto.

Pedi a ela queijo de coalho, nata e perguntei “como era a bandeja” de ovos caipiras.

– 30 ovos fica R$30,00. Amanhã deve passar para R$50,00. Do jeito que a coisa anda, segunda deve custar R$80,00!

Disse que uma bandeja com 30 ovos era muito pra mim. Perguntei se poderia ser só a metade.

– Pode.

Para descontrair, pedi que colocasse só dos ovos bons.

– Todos aqui são bons!

Tenório, com "Lurdinha" camuflada, caminha ao lado de aliados no RJ dos anos 60 Foto: Web)

Tenório, com “Lurdinha” camuflada, caminha ao lado de aliados no RJ dos anos 60 (Foto: Web)

Dobrei a aposta e disse, prendendo a gaitada: pois coloque os melhores.

Ela se virou e disse ao ajudante que estava lá pra dentro:

– Atenda ele aqui!

Na verdade, ela se virou para cortar o queijo de coalho que pedi.

Enquanto somava o meu pedido, tripliquei a aposta e perguntei se ela sabia quem foi Tenório Cavalcanti, o famoso “Homem da capa preta”, que foi deputado federal do Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960, que tocou o terror na Baixada Fluminense e cuja história virou até filme, estrelado pelo saudoso ator José Wilker, por esconder debaixo de sua capa preta uma submetralhadora modelo MP-40, para se proteger dos seus inimigos.

Séria, me fitou e disparou:

– Não, por quê?

Enquanto ela me olhava, perguntei se poderia pagar via PIX, pelo que ela apenas apontou para uma plaquinha de acrílico posta em cima do balcão, contendo um QRCode e o seu nome: Lourdinha.

Já com as minhas compras em mãos ela me reforçou a pergunta:

– Por quê?

Sorri pra ela e, apontando para a plaquinha, disse que Tenório Cavalcanti chamava sua submetralhadora carinhosamente de Lourdinha.

Ela deu uma gaitada e emendou:

– Por isso que o nome combinou!

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Abril de 2025 - 04-05-2025
domingo - 23/02/2025 - 09:50h

Os mistérios de Shakespeare

Por Marcelo Alves

Imagem criada com Inteligência Artificial do Grok para o BCS, simulando Shakespeare numa rua de Londres

Imagem criada com Inteligência Artificial do Grok para o BCS, simula Shakespeare numa rua de Londres em 1592

É quase uma convenção dizer: “o que se sabe, com segurança, acerca da vida de Shakespeare, é muito pouco”. Até a sua própria existência, embora isso seja um evidente exagero, é às vezes conspiratoriamente contestada. De fato, em William Shakespeare (1564-1616), há alguns mistérios para que ousemos imaginar na nossa vã filosofia.

Há lapsos factuais na “biografia” de Shakespeare. Pouco se sabe da sua juventude. “Mas por que deveríamos saber?”, indagam Gareth Lloyd Evans e Barbara Lloyd Evans, autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” (J. M. Dent & Sons, 1978), para depois responder: “Ninguém a sua época imaginava que ele ia ficar famoso ou mesmo havia uma tradição de anotar fatos biográficos”. E há sobretudo os ditos “anos perdidos”.

Sabe-se que Shakespeare casou com Anne Hathaway quando tinha 18 anos. Tiveram a filha Susana seis meses após. Quando ele estava com 20 anos, vieram os gêmeos Hamet e Judith. Mas o próximo registro sobre Shakespeare já o mostra com 28 anos, em Londres, atuando e escrevendo peças. Nada se sabe do paradeiro do Bardo durante esses “lost years”? Bom, isso é realmente um mistério.

Indo além, há diversas teses sobre quem teria sido Shakespeare ou, melhor dizendo, quem teria sido o verdadeiro autor das maravilhas que atribuímos a um tal William Shakespeare. Como explica François Laroque, em “Shakespeare: Court, Crowd and Playhouse” (Thames & Hudson, 2002), determinados críticos – alguns sérios, outros nem tanto –, sobretudo a partir do século XVIII, têm tentado provar que não poderia ser o ator William Shakespeare o autor das obras-primas compendiadas no “First Folio”, o primeiro cânone Shakespeariano, de 1623.

Eles, um tanto quanto preconceituosamente, não conseguem acreditar que um filho de artesão, comerciante de luvas, pudesse ter o conhecimento – do mundo clássico, da filosofia e do direito, para ficar em algumas temáticas principais – que, naquelas obras, é transformado no mais puro ouro literário. Como um homem de origem simples poderia adquirir todo esse conhecimento?

Isso e outras circunstâncias – como os já referidos “lost years” e a ausência de manuscritos autênticos – têm contribuído para a controvérsia existencial e, sobretudo, autoral. Outros nomes têm sido apontados como o verdadeiro autor de “Otelo”, de “Macbeth”, de “Hamlet”, do “Rei Lear” e de outras tantas maravilhas. Francis Bacon, Christopher Marlowe, Bem Jonson, Walter Raleigh, John Donne, os Earls de Derby, Oxford, Essex, Salisbury e Southhampton, o cardeal Wolsey, esses são alguns dos “suspeitos de sempre”.

Mas há também alguns “acusados insuspeitos” – um tanto quanto bizarros –, segundo anotam os autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare”, como Mary, Rainha da Escócia, a Rainha Elizabeth I, um grupo de jesuítas ou mesmo uma anônima freira irlandesa. Nesse ponto, eu até recomendo um bom filme, intitulado “Anonymuos”, de 2011, que propagandeia, embora equivocadamente, haver dado um ponto final ao mistério.

Na verdade, como consta do “Everyman’s Companion to Shakespeare”, guardadas as circunstâncias de tempo e lugar: “(a) Nós sabemos mais sobre a vida de Shakespeare, tanto em termos de fatos quanto acerca das conclusões racionais deles advindas, do que de qualquer outro dramaturgo elisabetano. (b) A cronologia de eventos conhecidos (certidão batismal, registros de morte e enterro, de compra e venda de mercadorias e imóveis, datas de suas publicações e produções) indica uma grande quantidade de material factual existente sobre ele e sua família. Quantos céticos poderiam juntar tantas evidências acerca de um membro de suas próprias famílias, mesmo numa época em que a documentação tem se tornado comum? (c) Documentos relacionados às atividades de Shakespeare, incluindo cartas para ele e material relacionado à sua família, são abundantes no Shakespeare Center Records Office em Stratford-upon-Avon. Poucos poderiam razoavelmente permanecer céticos se examinassem esses materiais”.

Seguidor da Navalha de Ockham, vou nessa mesma linha, a da explicação mais simples. Shakespeare foi William Shakespeare mesmo. Cidadão nascido sob o reinado de Elizabeth I, em 1564, em Stratford-upon-Avon, na casa da Henley Street. Foi trabalhar em Londres. Foi ator. Foi poeta e dramaturgo. Foi produtor e empresário. Gozou seu auge na capital do Reino. Voltou à sua terra natal, em 1611, já rico e famoso. E foi viver em New Place até a sua morte em 1616. O resto são estórias, dele e sobre ele.

Leia tambémOs roubos de Shakespeare (09-02-2025)

Leia tambémAs rupturas de Shakespeare (16-02-2025)

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 23/02/2025 - 07:28h

Crônica artificial

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa com uso de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com uso de Inteligência Artificial para o BCS

Um dia desses, por curiosidade, acessei um desses chats e solicitei a elaboração de crônicas sobre temas variados. Em poucos segundos, a Inteligência Artificial (IA) elaborou várias crônicas; textos bem-feitos, diga-se.

Pois bem, entramos na era da IA. É uma realidade da qual não podemos fugir, a tecnologia caminha a passos largos. Entre vários conceitos, pode-se dizer que “a Inteligência Artificial é um campo da ciência da computação que se dedica ao estudo e ao desenvolvimento de máquinas e programas computacionais capazes de reproduzir o comportamento humano na tomada de decisões e na realização de tarefas, desde as mais simples até as mais complexas”.

Segundo li, existem quatro níveis básicos de AI: a primeira, a “fraca”, está associada a tarefas simples, como trancar a porta do carro. A segunda, chamada de “geral”, é aplicável a atividades automatizadas, como na linha de produção ou gestão de lavouras. A terceira, “superinteligência artificial”, é utilizada em máquinas que podem decisões rápidas, a exemplo dos carros sem motorista. Por fim, a quarta, “generativa”, capaz de elaborar textos, imagens, códigos de programação, vídeos etc.

É inegável os avanços que a IA trará para a humanidade, embora muitos tenham receio dessa tecnologia de ponta. Entretanto, os avanços em todas as áreas do conhecimento humano, seja na medicina, na produção agrícola e no nosso dia a dia serão notórios, segundo os especialistas.

Contudo, no tocante ao ato de escrever, sobretudo, na elaboração de crônicas, nada substituirá o humano, os sentimentos que deixamos impressos ao escrever. Não quero nem imaginar, por exemplo, uma crônica sem a magia das palavras de Marcos Ferreira.

Escrever crônicas é navegar em sentimentos, lembranças e saudades. É resgatar tempos idos, esmiuçar o cotidiano. Como escrever sobre a beleza do mar ou do horizonte sem ter vislumbrado a paisagem? Como falar sobre o amor sem vivê-lo, senti-lo?

Uma crônica não pode ser artificial. A crônica é viva, pulsante. Escrever crônicas é fazer do feio, o belo, do menor, o maior. É observar a vida sob diversos ângulos, em diálogo com o leitor, que também embarcará nessas reminiscências.

Como bem disse Rubem Braga, dos nossos melhores cronistas: “escrever com sentimento tão fundo, e a mão tão leve, que não sei dizer o que quero, ou talvez não queira dizer o que sinto”.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 16/02/2025 - 14:54h

Ouvir é uma arte

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa com uso de Inteligência Artificial do AI Meta para o BCS

Arte ilustrativa com uso de Inteligência Artificial do AI Meta para o BCS

Existe um poema do escritor Rubem Alves que diz: “sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir”.

E é verdade. Neste mundo, fala-se muito, ouve-se pouco. Todos querem falar, contudo, quase ninguém escuta o outro. Quase todos querem aparecer, mostrar-se ao mundo virtual, ser o dono da razão; as redes sociais estão aí para provar.

No entanto, às vezes, é preciso silenciar. Escutar. Ouvir, principalmente, a voz do coração. O silêncio tem muito a dizer. Escutar a voz do outro, os desejos de quem está ao nosso lado não é comum. Normalmente se quer ganhar no grito, pois ouvir é uma arte.

Será que realmente sabemos o que pensa o outro? Será que temos a sensibilidade para escutar o que a outra pessoa tem a nos dizer? Talvez, ela necessite ser ouvida. Ao escutar o outro, entramos no seu mundo e, quem sabe, podemos ajudá-lo de alguma forma.

Onde também existe muita zoada é no ambiente da política; fala-se demais, ouve-se de menos. Quase ninguém escuta os argumentos contrários aos nossos. Aliás, a paixão pelo candidato de nossa preferência tem nos tirado a razão. E eles estão lá, no “bem-bom”.

O exercício da cidadania não combina com paixão cega. Devemos acompanhar o político que elegemos, se ele tem realizado o prometido. O cidadão consciente de seu papel aponta os erros desse ou daquele político, mesmo o de sua preferência.

Enfim, “aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça, disse-nos Jesus. Se és homem ou mulher de fé, escute a palavra de Deus. Ele tem muito a nos ensinar. No silêncio da nossa alma escutamos a sua voz. Sim, Ele nos fala, mas precisamos escutá-lo.

Nesse contexto, o cardeal José Tolentino escreveu:

“A audição se faz com os ouvidos, mas também com o coração, ouvindo o dito e não dito, o fora e o avesso, o presente e o futuro que é dado em cada instante”.

Tente diminuir a correria da vida. Fique em silêncio.

E escute.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 16/02/2025 - 08:32h

Que fique bem, claro!

Por Bruno Ernesto

Escultura de um macaca Foto do autor da crônica)

Escultura de um macaca (Foto do autor da crônica)

Diz o velho adágio popular que é melhor lidar com bicho do que com gente.

Quem é cordato, normalmente é tido como uma pessoa amigável. Não se impor é sempre mais atraente para os outros, que se impõem.

Quando a imposição se dá por meio de argumentos, ainda que refutáveis, talvez seja mais fácil digeri-la.

Quem aceita tudo calado, talvez já tenha desistido da vida, pois são as pequenas atitudes que nos faz resilientes.

Toda pessoa sempre tem duas chances de dar alegria aos outros: quando chega ou quando vai embora.

A despeito da dualidade humana, ou seja, essa coexistência de dois elementos opostos, como raiva e alegria, simpatia e antipatia; no que diz respeito aos bichos, mais uma vez eles têm vantagem em relação à gente, pois a simpatia deles é genuína.

Admiro enormemente o que o filósofo Mário Sérgio Cortella ponderou sobre o comportamento humano, ao dizer que gente excessivamente simpática é chata e dissimulada e que nessas horas, a sinceridade maior vem dos antipáticos.

Em outra vertente, diametralmente oposto, também é pertinente o que Idi Amin, ex-ditador de Uganda, disse sobre liberdade de expressão: “Aqui tem liberdade de fala. Só não tem liberdade após a fala.”

Nesse contexto, um interlocutor queixou-se que hoje há poetas demais e poesia de menos e, um tanto reticente, disse que não via mais graça em certas ocasiões e em alguns encontros literários, e que tais encontros se restringiam a elogios recíprocos sobre coisa alguma.

Ponderei que talvez o problema não fosse apenas de composição; quem sabe de leitura ou interpretação.

Como não sei interpretar um poema como fazia Antônio Abujamra, e o fazia de uma forma inigualável, fico apenas com a minha sinceridade, pois não desejo o mal a ninguém.

Que fique bem, claro! Quando digo que não adianta desdizer, é porque o que foi dito não pode ser desouvido, ainda que seja verdade.

Que fique bem, claro! Admiro a maior característica dos deuses do Olimpo. Tudo é extremo, bom ou ruim.

Que fique bem, claro! Mozart tinha razão ao dizer que a música não está nas notas musicais, mas no silêncio entre elas.

Que fique bem, claro! Se não falei, não significa que não tenha pensado.

Mas que fique bem, claro!

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Abril de 2025 - 04-05-2025
domingo - 16/02/2025 - 07:38h

As rupturas de Shakespeare

Por Marcelo Alves

Imagem de Hamlet gerada com Inteligência Artificial do Grok, do X, para o BCS

Imagem de Hamlet gerada com Inteligência Artificial do Grok, do X, para o BCS

Na semana passada, tratei aqui dos “roubos” de Shakespeare (1564-1616) – veja AQUI, no sentido de que o Bardo, com poucas exceções, não teria inventado os enredos de suas peças. Ele tinha suas “fontes”. Shakespeare reescreveu histórias antigas ou lendárias; trabalhou a partir de obras de escritores italianos relativamente próximos de seu tempo; adaptou ficções populares de seus compatriotas contemporâneos.

Ele apreendeu e compreendeu essas ideias; reinterpretou-as para diferentes universos e épocas; disse o não dito a partir do já dito. Com seu gênio, roubou/transformou o que já era muito em muito mais do que muito.

Mas o que fez ser Shakespeare – e sua obra dramática – muito mais do que muito?

O Bardo foi, entre outras coisas, um disruptor, dando a este vocábulo um sentido não só negativo de destruição, mas também de consequente e positiva reconstrução.

Shakespeare marca uma clara ruptura com a tragédia grega. Ele lia os clássicos gregos para fins de elaboração de suas peças, é vero. Ao escrever suas peças “romanas”, ele baseou-se amplamente nos escritos de Plutarco (46-120). Ele estava também familiarizado com a sabedoria Bíblica. Mas, se a Grécia é o berço do teatro ocidental, da tragédia clássica com a sua lei das três unidades – tempo, lugar e ação – segundo Aristóteles (384-322a.C.), Shakespeare rompeu com isso em direção ao teatro/cena moderna. O seu tempo é mais longo (e não um só dia como na tragédia clássica), seus cenários são múltiplos e tanto os seus protagonistas como as suas personagens secundárias determinam o rumo da trama.

Se Shakespeare foi um revolucionário mestre das tragédias, ele também o foi das comédias. Com um adendo importantíssimo: misturando-as sublimemente adocicadas com romance. Se, em especial no teatro grego, a tragédia e a comédia eram tratadas separadamente, Shakespeare, no seu palco, imita a vida, essa nossa “tragicomédia” de paixões, de idas e vindas, real e cotidiana.

Sob o ponto de vista linguístico, ele foi um inigualável inventor de palavras. Dotado de uma mente perceptiva, que respondia célere e inventivamente às inspirações da linguagem literária e falada, é imensurável a influência de Shakespeare para o desenvolvimento do vocabulário, da língua e da cultura inglesas dentro do seu país e mundo afora.

Como anotam Leslie Dunton-Downer e Alan Riding, em “Essential Shakespeare Handbook” (Dorling Kindersley, 2004), “nenhum outro poeta possui uma criatividade vocabular tão plena quanto Shakespeare, que introduziu no inglês cerca de mil e quinhentas novas palavras entre as vinte mil utilizadas em suas obras. Muitas das mais conhecidas frases ainda hoje em uso na língua inglesa apareceram pela primeira vez nas suas peças e na sua poesia”.

A partir das suas “fontes” históricas/literárias ou desenvolvendo-as inteiramente do zero, Shakespeare foi o criador de personagens humanizadas, que, embora vivendo suas estórias fantásticas, parecem muito próximas de nós em suas qualidades e, sobretudo, em seus defeitos. Conforme registra Caroline Cunha, no texto “As inspirações do teatro de Shakespeare”, no blog Letras in.verso e re.verso, “a dramaturgia shakespeariana é conhecida por sua extensa galeria de personagens emblemáticos como Hamlet, Ofélia, Otelo, Iago, Cleópatra, Rei Lear, Macbeth, Desdêmona, Rosalinda, entre outros. Shakespeare criou mais de mil personagens, muitos são dotados de uma dimensão interior nunca vista antes nas histórias. Da pena do autor saíram diálogos que discutem temas da filosofia, da teologia, da metafísica. Seus personagens vão do desespero à felicidade, em tramas que falam de amor, loucura, guerra, disputa pelo poder, política e liberdade. Shakespeare criou alguns dos primeiros anti-heróis da literatura, protagonistas que não possuem vocação heroica, têm um quê de malvados, podendo realizar a justiça por motivações egoístas”. E, citando o professor de literatura inglesa da USP John Milton, arremata a autora:

“‘Todos os grandes heróis trágicos dele têm falhas com as quais podemos nos associar, como o ciúme de Otelo, a ambição de Macbeth, a atração pelo poder de Ricardo III, a procrastinação de Hamlet e, na tragédia de Cleópatra, Marco Antônio é um homem poderoso que larga tudo por amor. Todos os personagens têm essas características muito humanas’”.

Talvez por isso tudo seja Shakespeare hoje reconhecido como o inventor do “moderno” e, como quer Harold Bloom (1930-2019), do “humano”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 16/02/2025 - 03:46h

Quando eu crescer

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa Web

Arte ilustrativa Web

Estamos às portas do carnaval, infelizmente. Falo por mim, claro. Há ocasiões em que imagino que não sou deste planeta. Bom. Não é da minha conta o fato de um mundo e meio de indivíduos curtirem o momo. É uma espécie de cartão de visita do Brasil. Eu, entrementes, desprezo essa tradição com todas as minhas forças. Tanto o carnaval oficial quanto os ditos “fora de época”.

Sim, sou avesso a multidões, a fuzarcas, furdunços, frevos, pândegas, etc. Agrada-me, todavia, uma boa roda de amigos, que prefiro com a ausência ou sem excessos alcoólicos. Possuo, tenho meus motivos, um forte desconforto (um trauma, na verdade) quanto à cultura etílica.

Esqueçamos o carnaval e o álcool. Fui bobo ao tocar nesse ponto nevrálgico, pois pretendo discorrer acerca de outras coisas. Aqui estou, nos acréscimos do segundo tempo, com mais um desafio de produzir uma crônica para este meu domingo de bocejos e de preguiça. Bocejo é um negócio contagiante. Ao ver alguém bocejar, dificilmente a gente não boceja. Só de pensar já estou abrindo a boca.

Fixando-me agora no compromisso da escrita, confesso que estou enchendo linguiça, conforme o ditado. Careço extrair dos meus quatrocentos ou quinhentos neurônios uma página minimamente atrativa, digna da atenção do leitor. No mais tenho plena consciência de que escrever sobre o ato de escrever é um legítimo lugar-comum, um tema pisado e repisado, um tipo de artimanha tão desagradável e perniciosa quanto o ogro Donald Trump. Desta vez, observem só, aqui me vejo ocupando, gastando tinta com o lodaçal, o charco político que voltou à Casa Branca.

Num domingo como este cai bem certas amenidades, um bocado de pacatez, uma escrita branda. Nada de mau humor, de ranço ou polêmicas. Isso, em particular o âmbito da política partidária, finda abespinhando alguém. Quando eu crescer, por exemplo, quero que a minha pena adquira determinadas qualidades.

Assim sendo, suponhamos que meu texto possuiria a suavidade e leveza de Odemirton Filho, que é o cronista mais cuca-fresca que vejo no Blog Carlos Santos. É o que estou dizendo. Odemirton escreve macio como algodão. O homem demonstra a fleuma, a mansuetude de um peixinho de aquário. Sou fã dele tanto quanto Natália Maia e Bernadete Lino.

Quem quiser, talvez por mera inveja, que diga que sou puxa-saco. Não me importa. Estou sendo tão somente franco e justo. Assim como devo aplausos à memória prodigiosa de nosso confrade Rocha Neto. Essa benquista figura (eis mais um puxão de orelha) está nos devendo um livro com suas reminiscências faz muito tempo. Não sei por que tanto protela. Falta de estímulo é que não é.

Ambiciono, no bom sentido, o fôlego e a inventividade de Clauder Arcanjo e Ayala Gurgel, dois escritores versáteis e fecundos. E o que dizer do causídico Bruno Ernesto? Ora! O rapaz é ilustrado, carrega no quengo uma rara ciência das coisas de antanho, fortuna histórica, amplo conhecimento relativo ao passado desta nossa capital do embuste. Coisa mesmo das priscas eras. É um cronista-historiador e vice-versa. Não menos me encanta a prosa cristalina e saborosamente erudita do meu xará Marcos Araújo. Como diria o saudoso cronista e filólogo José Nicodemos, sou-lhe macaca de auditório. Favor nenhum. O sujeito faz jus aos seus predicados.

Admiro, também, o verbo de Antonio Alvino da Silva Filho, pensador, filósofo contemporâneo e autor do livro de crônicas intitulado Contrapontos — Reflexões a partir da vida em rebanho, cujo prefácio tive a honra de escrever. Permitam-me alongar a lista de meus escribas diletos, a maior parte articulistas deste blogue. Isto porque não posso esquecer de maneira alguma do senhor delegado da Polícia Civil (homem de armas e de letras) Inácio Rodrigues, cuja escrita ficcional me encantou logo de cara. Esta não é a primeira vez que destaco o talento de Inácio.

Quando eu crescer, pois, quem sabe meu estro amarre as chuteiras dos beletristas ora citados. Neste universo das palavras, como ninguém é de ferro, almejo até uns vestígios, uns mínimos resquícios de um Graciliano Ramos e de um Machado de Assis. Exatamente nesta ordem. Além de mestres do gênero crônica como Otto Lara Resende e Rubem Braga. Mas, repito, só quando eu crescer.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Abril de 2025 - 04-05-2025
domingo - 09/02/2025 - 10:20h

Depoimento – II

Por Ayala Gurgel

Arte criada com recursos de Inteligência Artificial – AI Meta – BCS

Arte criada com recursos de Inteligência Artificial – AI Meta – BCS

B.O: N° 02-7871/2019

NATUREZA: COMUNICADO DE AÇÃO CRIMINOSA OU SUSPEITA

DATA DA COMUNICAÇÃO: 22 DE NOVEMBRO DE 2019

COMUNICANTE: MARIA DO ROSÁRIO ANDRADE FREITAS

A senhorita Maria do Rosário Andrade Freitas, conhecida pela alcunha de Rose Mary, quarenta e dois anos, solteira, empregada doméstica e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia de polícia acompanhada de advogado, devidamente identificado, e solicitou ser ouvida pelo delegado responsável. A depoente narrou, diante de mim, escrivã de polícia, que trabalhou nos Estados Unidos por dez anos, onze meses e seis dias, sendo os últimos dez anos e cinco dias na mesma residência, que disse pertencer a um capelão do presídio do condado de Riverside, Califórnia, de onde partiu, após a morte dele. Que começou a trabalhar naquela residência um mês depois que seu patrão assumiu o posto de capelão e que ele lidava diretamente com os condenados que estavam no corredor da morte. Que era um homem respeitado, amado pela comunidade, levando uma vida cristã exemplar e participava de eventos de caridade. Deu como testemunho da boa fama dele o fato de que não apenas a igreja de Riverside o convidava para pregações e orientação de retiros, como também as igrejas de condados vizinhos. Não poucas vezes, disse a depoente, o capelão passava a semana fora, administrando retiros espirituais, e que, quando isso acontecia, ela ficava sozinha, na casa que pertenceu a ele, visto que confiava nela. Do ponto de vista físico, era bonito, alto, branco, asseado, com dentes ajeitados e voz calma e grossaboa de ouvir. Acrescentou que não sabe por qual razão um homem daquele porte não tinha se casado, e jurava, pela hóstia consagrada, que não era gay. Ao dizer isso, a depoente fez questão que constasse que ele vivia de forma celibatária e não havia nada que maculasse a honra dele como pastor e guia daquelas almas condenadas por crimes tão horrendos, a ponto de merecerem pena de morte. Que chegou à casa dele por meio de uma agência na qual ela trabalhou nos Estados Unidos e deveria ser um trabalho rotativo, como nas outras residências, mas ele exigiu mudança no contrato e ela ficou fixa, como doméstica. Que o trabalho do capelão junto aos condenados era o de levar conforto espiritual. Que mais de uma vez ele contou a ela sobre detalhes da missão, como fazia com cada um, sobre o que conversavam e como pedia que os condenados escrevessem cartas para Deus, nas quais deveriam confessar os crimes, e outras para as famílias das vítimas, declarando o arrependimento, ou, pelo menos, contando o que elas desejavam saber. Que o capelão lhe contava que as famílias, às vezes, queriam apenas saber onde estava o corpo, se a vítima tinha sofrido, quais foram as últimas palavras ou se o criminoso havia se arrependido do que fez. Que ele ouvia das famílias quais eram seus desejos e repassava aos condenados, com esperança de que lhes escrevessem ou dissessem algo que pudesse levar conforto aos enlutados. Que alguns condenados aceitavam escrever tais cartas, tanto aquelas endereçadas a Deus, confessando os crimes, tudo nos mínimos detalhes, tal como o capelão solicitava, quanto as endereçadas às famílias, de acordo com o que elas pediam. Que isso durou todo o tempo em que ele serviu no presídio. Em seguida, a depoente disse que a razão de estar na delegacia hoje, na presença de seu advogado, é que tem a intenção de devolver a quem de direito as cartas, que estão sob sua custódia desde que deixou a casa do falecido, dias depois da sua morte. Que foi ele mesmo que pediu em segredo para que ela não deixasse que as cartas viessem a público caso algo de ruim lhe acontecesse, e ela apenas cumpriu sua vontade, mas agora, passado o tempo que passou, se arrepende. Que não sabe exatamente como ele morreu, mas ouviu que foi infarto. De acordo com a depoente, ela ficou com as cartas e muitas memórias ruins do que viu naquela casa e não acha mais certo manter o segredo, de modo que decidiu confessar tudo à polícia e não pretende voltar aos Estados Unidos. Que hoje só consegue dormir à base de remédios e já pensou em se matar. Que as cartas endereçadas às famílias nunca foram entregues, embora o capelão tenha repassado uma ou outra informação aos interessados, dizendo tê-la obtido de ouvido. As cartas endereçadas a Deus, que ela chegou a ler algumas, são de perturbar qualquer alma cristã com tanto mal que há nos detalhes descritos. A depoente contou que o capelão ficava com as cartas para deleite próprio. Que lia e relia diversas vezes, enquanto tomava vinho. Que mais de uma vez presenciou ele cheirando o papel e se masturbando enquanto lia as cartas. Que, nessas horas, não era o mesmo homem que estava acostumada a ver como um amado pastor de almas, era outra pessoa, da qual tinha medo e não se atrevia sequer a lhe dirigir a palavra, menos ainda fazer qualquer comentário sobre o que viu. Que foi ele mesmo que chegou junto a ela e explicou o que fazia: aquelas cartas eram a única forma de obter prazer na vida. Era por meio delas que ele se sentia vivo, como se os crimes tivessem sido cometidos por ele, com a diferença de que não era ele que estava no corredor da morte. Que ele acompanhava a vida de cada um daqueles infelizes como se fosse a sua, se imaginando no lugar deles em cada cena do crime, cada gesto, cada sentimento. Tão logo o condenado era executado, procurava outro, para reviver tudo de novo. A depoente também disse que nunca falou com ninguém sobre o assunto com medo de colocar a própria vida em risco. Que ele não dizia nada, mas ela se sentia ameaçada pelo jeito que contava seus segredos. Que até hoje tem medo que ele possa perturbá-la, nos sonhos ou como alma penada. Que vai à missa todos os domingos e ao psiquiatra a cada três meses com a intenção de sair dessa situação e ter uma vida normal. Que ouviu o conselho do advogado e por isso veio entregar tudo o que tem e dizer tudo o que sabe. Era o que tinha a relatar.

Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental

*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar).

Leia também: Depoimento (02/02/2025)

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Categoria(s): Conto/Romance / Crônica
domingo - 09/02/2025 - 09:30h

Os roubos de Shakespeare

Por Marcelo Alves

Arte criada com recursos de Inteligência Artificial - AI Meta - BCS

Arte criada com recursos de Inteligência Artificial – AI Meta – BCS

Estes dias, xeretando a Internet, dei de cara com um verbete da enciclopédia “Britannica”, intitulado “Fontes de Shakespeare”, que interessantemente afirma:

“Com algumas exceções, Shakespeare não inventou os enredos de suas peças. Às vezes, ele usava histórias antigas (Hamlet, Péricles). Às vezes, ele trabalhava a partir de histórias de escritores italianos relativamente recentes, como Giovanni Boccaccio — usando histórias bem conhecidas (Romeu e Julieta, Muito Barulho por Nada) e outras pouco conhecidas (Otelo). Ele usou as ficções em prosa populares de seus contemporâneos em Como Gostais e Conto de Inverno. Ao escrever suas peças históricas, ele se baseou amplamente em tradução de Sir Thomas North de Plutarco, Lives of the Noble Grecians and Romans, para as peças romanas, e nas crônicas de Edward Hall e Holinshed para as peças baseadas na história inglesa. Algumas peças lidam com história bastante remota e lendária (Rei Lear, Cimbelino, Macbeth). Dramaturgos anteriores ocasionalmente usaram o mesmo material (houve, por exemplo, as peças anteriores chamadas The Famous Victories of Henry the Fifth e King Leir). Mas, como muitas peças da época de Shakespeare foram perdidas, é impossível ter certeza da relação entre uma peça anterior perdida e a sobrevivente de Shakespeare: no caso de Hamlet, foi plausivelmente argumentado que uma ‘peça antiga’, conhecida por ter existido, era meramente uma versão inicial da própria peça de Shakespeare”.

Aliás, o fato de William Shakespeare (1564-1616) ter, digamos, as suas “fontes” já era algo sabido e falado à sua época, como atestam documentos contemporâneos referidos no curioso verbete.

Bom, teria então sido o grande Shakespeare um “plagiador”?

O que se sabe, com segurança, acerca da vida de Shakespeare, é muito pouco. Até a sua própria existência, embora isso seja um evidente exagero, é às vezes contestada, com várias teorias conspiratórias sendo sugeridas. Quem sabe algum dia não falaremos sobre elas? Certamente, em Shakespeare, há mais mistérios do que ousa imaginar nossa vã filosofia.

Mas, de logo, afirmo: o Bardo não era um plagiador.

Ao contrário. Ben Jonson (1572-1637), contemporâneo de Shakespeare e durante certo tempo até mais aclamado que ele, considerava Shakespeare um escritor premiado pela natureza com o dom da genialidade. Dizer, sim, que Shakespeare foi um gênio e que ele representa o que de mais sublime há na língua inglesa ou mesmo na natureza humana é afirmar uma verdade hoje quase “científica”.

E, se Shakespeare é considerado um gênio natural, autodidata, isso se deve, em grande medida, à sua capacidade de rapidamente extrair maravilhas das suas fontes, reformulando-as, em tragédias e comédias, quase ao ponto da perfeição. É dito que “Shakespeare provavelmente estava muito ocupado para estudos prolongados. Ele tinha que ler os livros que podia, quando precisava”. Mas há também evidências de que ele, quando necessário, lia acuradamente os clássicos gregos, para fins de elaboração de cada uma de suas peças, assim como as reescrevia e revisava frequentemente.

Na verdade, o escritor de gênio deve ter suas boas fontes. Deve saber das muitas ideias e compreendê-las. Deve interpretar esse seu mundo junto a outros universos e épocas. Deve sobretudo descobrir e dizer o ainda não dito a partir daquilo que já foi dito.

O genial Mark Twain (1835-1910) certa vez disse: “Não existe uma nova ideia. É impossível. Nós simplesmente pegamos um monte de ideias antigas e, então, as colocamos em um tipo de caleidoscópio mental”. E assegurava Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

Pois então Shakespeare era o gênio que tinha o dom de roubar/transformar o que já era muito em muito mais do que muito.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 09/02/2025 - 08:40h

Justo

Por Bruno Ernesto

Chico Anísio e seu personagem Justo Veríssimo (Reprodução do Diário Popular-MG)

Chico Anísio e seu personagem Justo Veríssimo (Reprodução do Diário Popular-MG)

É muito difícil encontrar alguém que não goste de um bom humor.

Particularmente, sendo bom, não dispenso uma boa piada, especialmente as sarcásticas e de humor ácido.

A despeito da inteligência artificial estar no ápice das discussões em todos os seguimentos, em especial na produção intelectual e científica, que são as áreas formadoras da sociedade moderna, o que mais preocupa o cidadão comum é se, num futuro muito próximo, o que Karl Marx denominou de classe trabalhadora, ou seja, aqueles que vendem a sua força de trabalho em troca de uma contraprestação para sobreviver, terão seu emprego ou atividade econômica garantidos quando a inteligência artificial se estabelecer como ferramenta autônoma.

Estamos vivendo uma nova corrida espacial, tal qual se deu na década de 1960, quando os Estados Unidos e a União Soviética, travavam uma guerra tecnológica para enviar o homem ao espaço e estabelecer novas fronteiras.

Muitas tecnologias desenvolvidas durante a corrida espacial hoje são utilizadas pelo cidadão comum sem nem mesmo supor a sua origem, e que trouxeram avanços práticos como, por exemplo, o revestimento teflon, que impede que o ovo grude na panela ao ser preparado no café da manhã, ou o GPS que você usa no carro.

Claro que ao falarmos de uma tecnologia tão mais complexa e tão mais impactante para economia de um modo geral, pois é possível que impacte sobremaneira o mercado de trabalho, penso que a inteligência artificial, inevitavelmente, terá o mesmo desfecho.

Entretanto, segundo dizem os especialistas, há dois aspectos cuja inteligência artificial encontra óbice: os sentimentos e a criatividade.

Embora possa ser treinada para ter emoções, o que a inteligência artificial faz é, basicamente, pensamento analítico, o que fará com que o conhecimento seja transformando numa commodity como é o café, arroz, soja ou ferro.

Não por onde, o recente lançamento da inteligência artificial chinesa DeepSeek – que tem o código aberto e foi desenvolvida por uma fração do preço da norte-america ChatGPT – causou, num só dia, um prejuízo de um trilhão de dólares nas empresas de tecnologia norte-americanas, dando um recado claro que o futuro da economia global está indiscutivelmente atrelado à inteligência artificial.

Bem, pelo menos nesse primeiro momento quem suportou o prejuízo foram as empresas e não o trabalhador, para a alegria dos marxistas.

A despeito da piada e do humor ácido, lembro muito bem de um episódio em que o brilhante Chico Anysio interpretava o personagem Justo Veríssimo, um deputado sem meias palavras ou subterfúgios quando o assunto era ter vantagem, e que tinha horror aos pobres e trabalhadores.

Na ocasião, durante uma reunião em que se debatiam as novas perspectivas de emprego, o deputado Justo Veríssimo disse que o futuro era dos robôs.

O interlocutor, apreensivo, retrucou dizendo que as pessoas iriam perder os empregos para os robôs e o deputado, de imediato, retrucou dizendo que era melhor ter robô mesmo trabalhando, pois robô não faz greve, não recebe salário, não precisa de descanso, nem namora a filha do patrão.

Nada mais justo.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Blog
domingo - 09/02/2025 - 07:22h

Sino da vitória

Por Odemirton Filho

Paciente agradece a cura, após tocar sino (Foto: Arquivo do Primeira Página)

Paciente agradece a cura, após tocar sino (Foto: Arquivo do Primeira Página)

Na semana passada, assisti a uma reportagem bastante emocionante, que tocam o nosso coração e a nossa alma. Em um hospital para tratamento de câncer em Cuiabá, salvo engano, ao final do tratamento os pacientes batem um sino, comemorando a remissão.

O ato é de um simbolismo sem igual. Comemora-se a vitória, após um longo e doloroso tratamento. Quem já padeceu desse mal ou acompanhou o sofrimento de uma pessoa querida, sabe o quão é importante agradecer e festejar a recuperação.

Muitas são as batalhas da vida, as quais travamos diuturnamente. Enfrentamos lutas de todos os tipos, num embate sem trégua pela nossa sobrevivência. Cada um de nós tem a sua labuta individual, uns mais, outros menos.

E vencer uma batalha, por vezes desigual, é motivo de regozijo. Quantas pessoas não estão a padecer nos leitos de hospitais ou de suas casas? Muitos venceram, muitos perderam. A ciência, infelizmente, ainda não conseguiu descobrir a cura para o câncer. Há, sem dúvida, investimentos de bilhões em pesquisas, mas, até o momento, não se conseguiu a cura para todos os tipos, embora existam tratamentos.

Entendo as famílias que passam por esse momento delicado da vida, pois há mais de vinte anos perdi um sobrinho quando ele ainda era criança. A nossa família sofreu demasiadamente, foi um dor sem igual, até hoje sentimos o gosto amargo da saudade. Ao ver a vitória de pessoas que lutam contra esse mal, fiquei imensamente feliz.

Certa vez, John Donne (1572 – 1631), um dos maiores poetas da língua inglesa, escreveu:

“Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós”.

Aliás, foi inspirado nesse texto, que Ernest Hemingway, escritor norte-americano, escreveu um dos seus mais famosos romances. Que muitas pessoas possam continuar batendo o sino da vitória. Afinal, a vitória de um é a vitória de todos.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Abril de 2025 - 04-05-2025
domingo - 09/02/2025 - 05:52h

Traquinices de Juju

Por Marcos Ferreira

Juju entretida com um de seus brinquedinhos  (Foto do autor da crônica)

Juju entretida com um de seus brinquedinhos (Foto do autor da crônica)

Nasceu no dia 24 de novembro. Há dois meses e quinze dias, portanto. Sabemos precisamente a data porque foi justo no aniversário de Andrea, esposa de meu amigo Marquinhos Rebouças. A mãe de Juju deu à luz nove rebentos, entre os quais adotei essa feroz devoradora de ração. É cheia de inocência, de amor, de pureza, no entanto adora mordiscar os meus calcanhares e os de Natália.

Fui orientado a presenteá-la com alguns brinquedinhos de borracha. Fiz isso, adquiri três brinquedos de cores e formatos diversos e ela gostou bastante, de maneira que os meus tornozelos quase não são lembrados. Juju é uma autêntica vira-lata, característica que me agrada. Já adotei, além de Juju, três gatinhas de rua, pequeninas e sem amparo nenhum, obviamente. Cuidei das felinas, levei-as a veterinários, que ministraram medicamentos e realizaram as castrações quando as bichanas atingiram a idade apropriada. Asseguro que essas companhias só me fazem bem.

Com tantas criaturinhas por aí necessitando de acolhimento, de um lar, de água e comida, não vou a lojas do ramo comprar um gatinho ou um cachorrinho. Não critico de forma alguma quem paga por um pet de raça, com pedigree, como se diz. Pois também receberão amor, cuidados, zelo. Acredito que São Francisco de Assis, o santo protetor dos animais, deve ficar feliz do mesmo jeito.

Juju é tipo uma criança. Tem as suas traquinices, os seus comportamentos que geram um certo caos doméstico. É preciso retirar das suas vistas uma variedade de objetos, a exemplo de tênis e chinelos. Como durmo de rede na sala, onde gosto de assistir a filmes e séries, tinha por hábito pôr uma cadeira perto da rede para colocar o telefone, o controle da tevê e meus óculos. Quando o sono batia, simplesmente desligava a televisão e capotava. Até que uma noite eu me dei mal.

Acordei por volta das oito da manhã. Ao procurar as sandálias, tinham sumido. O mesmo aconteceu com os óculos e o celular. Fiquei logo aflito, sobretudo, pelo desaparecimento dos óculos novinhos, substituídos no mês passado. Juju despertara mais cedo, claro. Encontrei o celular junto da porta da frente, separado da capinha de proteção. Senti uma dor na alma quando vi os óculos diante da geladeira. Os vidros ficaram em contato direto com o piso grosso, ainda sem cerâmica. Não teve escapatória. As duas lentes estão repletas de arranhões profundos. Um prejuízo! Os chinelos, estes completamente intactos, ela carregara para debaixo da escrivaninha.

O celular também ficou um pouquinho arranhado. Apesar disso tudo, Juju continua dormindo dentro de casa, em uma caminha fofa, quadrada, com bordas altas e acolchoadas. Algumas vezes, entretanto, ela adormece sob minha rede. Além disso, inocente que é, uma hora ou outra a danada faz as suas “necessidades” em qualquer lugar da casa. Ao menos o cocô é durinho e fácil de limpar.

Quanto à urina, restrita à sala e a cozinha, já que agora mantenho o quarto e o banheiro com as portas fechadas, eu resolvo com água sanitária e um limpador perfumado. Escrevo esta crônica com os arranhões das lentes atrapalhando o serviço. No mais aprendi a lição. Não marco mais bobeira. Juju não perdoa. Quando meu orçamento permitir, trocarei novamente os vidros dos óculos.

Sendo ainda uma filhota, nutro a expectativa de que adquira bons modos no tocante às referidas peraltices e aos inconvenientes fisiológicos. Descobrirá o quintal como lugar adequado para suas dejeções e micções. Porque nosso bem querer se mostra mais firme e forte à medida que Juju vai crescendo.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/02/2025 - 09:26h

Depoimento

Por Ayala Gurgel

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

B.O: N° 01-7871/2019

NATUREZA: INQUÉRITO INVESTIGATIVO

DATA DA COMUNICAÇÃO: 15 DE NOVEMBRO DE 2019

COMUNICANTE: PAULO FERREIRA DE SOUZA

O senhor Paulo Ferreira de Souza, trinta e cinco anos, comerciante, técnico em contabilidade, viúvo e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia, em data e hora previamente agendadas, em companhia do seu advogado, tendo sido ambos identificados na forma da lei, e narrou perante mim, escrivã de polícia, que se encontra profundamente abalado com o ocorrido e sob efeito medicamentoso, de modo a apresentar pedido prévio de desculpas por explosões emocionais. O advogado do depoente pediu a palavra e destacou que, não fosse de extrema urgência o depoimento do seu cliente no presente momento, preferia voltar outro dia, quando este se encontrasse menos abalado, o que não foi aconselhado pelo delegado encarregado, para o próprio sucesso da investigação. Sobre o fato ocorrido, o depoente declarou ter conhecimento do medo que a vítima, sua esposa há cinco anos, tinha de cobra, afirmando não conhecer outra pessoa com tanto medo, razão pela qual sempre evitou brincadeiras envolvendo essa espécie peçonhenta. Que no dia do ocorrido havia três pessoas dentro do carro, de propriedade do casal e sob seu comando – o depoente, a esposa e uma prima dela, de nome Rosanir Ferreira Alencar – e que se encontravam na estrada carroçável que dá acesso à granja da família da esposa quando a senhora Rosanir passou o seu celular à vítima, com o vídeo de um gato mexendo num cesto de vime, algo que o depoente descreveu como “fofo” e passou cópia a esta delegacia. O vídeo, de acordo com o depoente, deve ter sido feito por alguém que ele não sabe afirmar quem, e se encontra disponível em vários sites, sendo amplamente compartilhado nas redes sociais, de onde provavelmente a senhora Rosanir o recebeu. Que o referido vídeo é feito de tal forma a prender a atenção do espectador, que se empolga com a brincadeira do gato com o cesto, ao som de música infantil, mas termina com uma cobra saindo do cesto e dando o bote em direção à câmera, ao som de um grito de filme de terror. Que o vídeo é uma pegadinha de mau gosto e até mesmo as pessoas que não têm medo de cobra costumam se assustar. Que não sabia do que se tratava quando a senhora Rosanir passou o celular à esposa, sua atenção estava focada na estrada, visto que havia chovido na noite anterior e o terreno se encontrava escorregadio. Que, se soubesse, nunca teria permitido. Que, no momento em que a esposa tomou o susto, jogou fora o celular, que caiu em algum lugar dentro do carro, e se agarrou a ele, puxando o volante e fazendo-o perder o controle, de modo que o carro veio a sair da estrada e capotar. Que tudo foi muito rápido, não teve como reagir e não viu nada. Que não sabe em que momento a vítima foi arremessada do carro ou quanto tempo durou a capotagem, apenas que foi muito rápido e quando se deu conta, estava de cabeça para baixo, preso pelo cinto, e viu ao longe o corpo da esposa, jogado no chão, próximo a uma moita de capim. [O depoimento, a pedido do advogado do depoente, precisou ser interrompido por alguns minutos para que o seu cliente pudesse ser assistido, uma vez que começou a apresentar dificuldades para respirar e crise de choro. Recomposto, o depoente continuou, perante mim, a narrativa da sua versão dos fatos]. Disse que a cena que viu e se encontra registrada na sua memória o apavora todos os dias. Que não consegue tirar da cabeça a imagem da esposa jogada no chão, suja de lama, com a cabeça inclinada em sua direção, a boca aberta e os olhos esbugalhados, como se gritasse por socorro ou de dor. Que, ao deitar todas as noites, costuma vê-la, ao seu lado, com a mesma expressão facial daquele dia. Que se não fosse a medicação que vem tomando regularmente, não conseguiria dormir ou ter algum momento de paz. Que pede a Deus todos os dias que apague tudo isso, que seja só um pesadelo e que se acorde, para descobrir que nada daquilo aconteceu. Disse que esse tipo de vídeo não deveria existir, que deveria ser proibido por lei fazer esse tipo de coisa, que o vídeo foi o responsável por tudo isso. Mesmo sem ser perguntado, confessou guardar rancor da senhora Rosanir, bem como de quem faz e compartilha esse tipo de vídeo. Não soube informar se, no momento do acidente, a vítima estava ou não com o cinto de segurança. Por fim, o depoente disse que não sabia e se mostrou bastante surpreso ao tomar conhecimento de que a causa da morte da vítima tinha sido não em virtude do acidente, com o pescoço quebrado, como ele supunha, mas de uma picada de cobra. Era o que tinha a relatar.

Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental

*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar).

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Categoria(s): Conto/Romance / Crônica
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domingo - 02/02/2025 - 08:38h

Odoyá!

Por Bruno Ernesto

Estátua de Iemanjá da Praia do Forte, Natal/RN (Foto: Jorge Andrade, 14/11/2010)

Estátua de Iemanjá da Praia do Forte, Natal/RN (Foto: Jorge Andrade, 14/11/2010)

No dia 2 de fevereiro comemoramos o dia de Iemanjá, a rainha do mar, e, talvez, o orixá do candomblé que mais contribui para o sincretismo religioso no Brasil.

No catolicismo, é Nossa Senhora dos Navegantes ou Nossa Senhora da Conceição. Na língua Iorubá significa mãe dos peixes. Protege os pescadores, favorece o amor e representa o amor materno.

A primeira vez que pus os olhos numa estátua de Iemanjá foi na companhia dos meus pais em Natal.

Quando criança, nas férias, meus pais me levavam para tomar banho de mar na praia do meio em Natal, nas proximidades da estátua de Iemanjá, e como gostava de pescar, já naquela época, levava minha vara de bambu com linha e anzol para pescar no recife da praia do meio.

Lembro que, ao passar por ela, rumando para as proximidades do forte dos Reis Magos, ficava curioso com aquela estátua gigantesca de uma mulher com cabelos longos, pretos, vestido azul com detalhes brancos nos punhos e na gola, uma tiara com uma grande estrela prateada, de braços abertos e de mãos espalmadas, na iminência de falar algo, e olhar penetrante.

Para mim, naquele tempo, não significava algo além de uma grande estátua. Entretanto, não sei por qual motivo, tinha uma admiração e até certo respeito por ela. Talvez achasse que era uma santa. Algumas vezes havia flores aos seus pés.

Passava a manhã inteira na praia tomando banho, brincando com meus irmãos, além de, é claro, pescar, e, vez ou outra, olhava Iemanjá de longe. Aquele vestido azul dela sempre se misturava com o azul do mar ou com o azul do céu.

Anos depois, foi que me dei conta de que já praticava o sincretismo religioso sem nem saber o que era. Apenas sentia, como muitas pessoas hoje também o fazem com Iemanjá ao jogar flores e oferendas em seu dia.

Talvez, quem sabe, até tenha sido salvo por ela de um afogamento naquela mesma praia quando, ao final de mais uma pescaria, descendo do recife junto com minha irmã, já com a maré cheia, caímos no num canal de retorno chamado Poço do Dentão.

Por mais que nadássemos, não conseguíamos sair da água. Já perdendo o fôlego, eu e minha irmã, fomos agarrados pelas mãos por um homem, que para nós, surgiu do nada e nos tirou do mar para alívio dos meus pais. E, depois, muita bronca de minha mãe. Meu pai, como sempre, estava calmo. Hoje penso que só aparentava estar calmo.

Apesar do episódio, voltamos inúmeras vezes à praia do meio e naquele mesmo local e eu continuei a admirar Iemanjá.

Uma coisa é certa: naquele dia, minha mãe foi a verdadeira Iemanjá, pois percebi, depois, que foi ela quem alertou e buscou socorro para nós. Ela foi nossa Iemanjá, protegendo aquele pequeno pescador e representado o verdadeiro amor materno.

Hoje até brinco com aquele episódio, dizendo que Iemanjá não me levou pois refugou a oferenda. Ainda bem! Odoyá!

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/02/2025 - 07:28h

Das vantagens de ser bobo

Por Clarice Lispector

Arte ilustrativa da página doce limão

Arte ilustrativa da página doce limão

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.

O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.

Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.

O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.

O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.

Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros.

Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?”

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.

Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.

Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.

Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.

Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.

É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Clarice Lispector (1920-1977) – foi escritora e jornalista

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domingo - 02/02/2025 - 05:38h

O crítico

Por Marcelo Alves

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Karl Popper (1902-1994) é provavelmente o maior vulto da filosofia da ciência e um dos grandes nomes da filosofia dita liberal. Nascido em Viena, à época uma das capitais do Império Austro-Húngaro, sua família era culta e politizada. Sofreu deveras com a debacle do seu país na Primeira Grande Guerra. Na Universidade de Viena, envolveu-se com o marxismo e o Partido Comunista austríaco. Decepcionado com a morte de jovens companheiros, refutou e rompeu com essa ideologia. Fez-se professor.

Doutorou-se em filosofia em 1928. Com o nazismo, em 1937, deixou a Áustria rumo à Nova Zelândia. Passada a Segunda Grande Guerra, em 1946, foi viver no Reino Unido, para ensinar na London School of Economics. Como filósofo da ciência, sua obra mais importante talvez seja “A lógica da pesquisa científica” (1934), em que expõe o seu “princípio da falseabilidade”. E junto a Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman, entre outros, Popper foi um dos grandes defensores do liberalismo clássico.

É de Popper uma das mais conhecidas e belas assertivas sobre a democracia, a liberdade e a tolerância. Basicamente, em seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos” (1945), no que ficou conhecido como o paradoxo da tolerância, ele defendeu que, em ultima ratio, a intolerância não deve ser tolerada, uma vez que, se a tolerância permitir que a intolerância triunfe numa sociedade que não consegue se defender contra o ataque dos intolerantes, a própria tolerância seria destruída. Uma filosofia intolerante – que pregue, por exemplo, a incitação ao assassinato de governantes, o racismo, a eugenia ou a ruptura com o Estado Democrático de Direito – deve ser considerada ilegal e combatida até criminalmente. Reflitamos…

Mas é de outra sacada política e especialmente de outro livro de Popper, a sua “Autobiografia intelectual” (em publicação das Editoras Cultrix e da Universidade de São Paulo, 1977, que ando lendo), que gostaria de falar. Uma autobiografia que focaliza sobretudo as ideias do autor. “Um estudo pessoal da evolução das ideias popperianas e do ambiente intelectual onde se desenvolveram”, um ambiente onde “desfilam vultos como Carnap, Einstein, Godel, Polanyi, Russel, Schrödinger, Tarski, Wittgenstein, Woodger e outros de igual eminência”, com os quais Popper muito debateu, aprendeu e inspirou.

Na sua “Autobiografia”, Popper anota que foi criado em ambiente indiscutivelmente livresco: “Meu pai (…) tinha uma grande biblioteca e havia em casa livros por toda parte. (…) Assim, os livros fizeram parte de minha vida muito antes que eu pudesse lê-los”. E, para o grande filósofo da ciência: “Aprender a ler e, em menor grau, a escrever são, naturalmente, os acontecimentos mais significativos no desenvolvimento intelectual de uma pessoa”.

Como que antecipando a lição da menina filósofa Mafalda, para quem “viver sem ler é perigoso; te obriga a crer no que te dizem” – embora ele atribua isso não só à leitura, já que outros fatores, em especial a Primeira Grande Guerra, os anos de conflito e suas consequências, também entrariam na conta –, o fato é que Popper, desde jovem, tornou-se “um crítico das opiniões correntes, especialmente das políticas”. Agradeçamos…

Na Europa de então, havia a utopia do comunismo/marxismo, “um credo que promete a concretização de um mundo melhor. Diz-se basear-se em conhecimento: conhecimento das leis do desenvolvimento histórico”. Mas a própria história, ao submeter o marxismo à prova, anota Popper, refutou-o como pseudociência. Doutra banda, “por aquela época, poucas pessoas sabiam o que a guerra significava. Corria por todo o país um ensurdecedor brado de patriotismo, pelo qual até mesmo alguns membros do nosso grupo, anteriormente alheio às provocações de guerra, foram envolvidos”. E não muitos anos depois veio o degenerado cabo Hitler.

O problema estava – como de resto quase sempre está – nos extremos. O anticomunismo da época de Popper – assim como o atual anticomunismo tupiniquim, de baixíssimo nível e com complexo de vira-lata – se mostrava bem parecido, nas suas práticas e simbologias, com os movimentos autoritários que Popper denunciou como fascistas. E estes, sabemos, eram ontem – e são hoje – piores do que tudo!

Parodiando o criticado Marx, é de se indagar: a história agora se repete como tragédia ou como farsa? Leiamos e pensemos. Sejamos críticos…

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 02/02/2025 - 03:30h

Quando fevereiro chegar

Por Odemirton Filho

Ilustração

Ilustração

Um dia desses um amigo me disse: “rapaz, quando você escreve sobre Tibau das antigas, me dá uma vontade danada de chorar”. Eu respondi que um dos meus objetivos era escrever sobre coisas que nos faziam bem, como lembranças, saudades e sentimentos.

Aliás, lembro-me dos ensinamentos do saudoso Inácio Augusto de Almeida que me dizia: “escreva com sentimentos, tente passar emoção ao leitor”. No mesmo pensar, o dileto editor deste Blog gosta de ressaltar que a leitura aos domingos deve ser leve.

E é o que tento fazer quando resgato do baú da memória lembranças de Mossoró e Tibau. Não com melancolia, mas com o propósito de fazer com que o leitor navegue por tempos idos.

Noutro dia, num supermercado, outro amigo me falou: “gosto de ler suas crônicas, pois remetem aos bons tempos”. E me contou histórias de tempos passados, as quais algumas também vivenciei; qualquer domingo desses, eu compartilho com o leitor.

Confesso que fiquei feliz, uma vez que já bastam os problemas cotidianos, as notícias sobre corrupção, o radicalismo político-partidário e a toxicidade das redes sociais. É claro que precisamos enfrentar a vida com pragmatismo, vivendo o presente, não do passado, nem no futuro. Contudo, aqui ou acolá, uma pitada de boas lembranças faz um bem danado.

Como sabemos, “todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação”. Assim, continuemos nessa jornada de encontros e despedidas, afinal, não sabemos quando será o último adeus.

Certa vez, o cronista Fernando Sabino escreveu sobre o tempo pretérito. Segundo ele, um tempo em que as areias das praias eram mais claras. Em que as letras impressas eram maiores. Em que as ladeiras eram mais suaves. Em que as distâncias eram mais curtas. Em que os dias eram mais longos. Em que o amor era mais puro. Em que a mocidade era eterna”.

É a mais cristalina verdade. Quando estamos na flor da idade, a vida parece ser eterna, apesar do entardecer dos nossos dias chegar tão depressa.

E fevereiro chegou.

Vamos à luta, já que “saudade já não mata a gente”. Nessa breve caminhada pela vida, “a gente ri, a gente chora…

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 26/01/2025 - 07:28h

O intelectual

Por Marcelo Alves

Bertrand Russell (Foto da Getty Images)

Bertrand Russell (Foto da Getty Images)

Ainda durante o verão estou lendo “As ideias de Bertrand Russell” (Editoras Cultrix e da Universidade de São Paulo, 1974), livro de autoria do também filósofo A. J. Ayer (1910-1989).

Conheci Bertrand Russell (1872-1970), o 3º Conde Russell, aristocrata, matemático, lógico, filósofo, historiador, professor, popularizador da ciência/filosofia, escritor Prêmio Nobel de Literatura, liberal múltiplas vezes casado, ativista, pacifista e muitas coisas mais, quando, há muitos anos, encantado, li sua “História da filosofia ocidental” (1945) e sua “História do pensamento ocidental” (1959). Revisitei esses livros algumas vezes na vida. Eles consagram o dito: “Um livro que não merece ser relido não merece ser lido”.

Tenho Russell como um perfeito exemplo do que Horácio Gonzalez (1944-2021), em “O que são intelectuais” (Editora Brasiliense, 1981), chama de “intelectual cosmopolita”, uma vez que ele concebia “a vida cultural como uma forma de comunicação acima das particularidades nacionais, regionais e locais”. Acreditando que o objetivo da prática intelectual é o aperfeiçoamento tanto do patrimônio cultural como social da humanidade, ele era também um “intelectual iluminista”, já que buscava trasladar, para todos os cantos do mundo, uma “cultura” que achava a melhor. Era deveras engajado. E, por fim, embora sofrendo a crítica dos puristas, para nosso deleite ele soube fazer ciência/filosofia e escrever deliciosamente para os leigos.

Muitas vezes perseguido, impedido de lecionar, proibido de viajar e preso, tudo em razão das suas ideias, Russell passou por alguns perrengues na vida. Em boa medida, a “História da filosofia ocidental” foi o que os ingleses chamam de “turning point” na sua vida, já que, financeiramente um sucesso, livrou o autor, daí em diante, de problemas com dinheiro. E foi sobretudo na virada dos anos 1940 para os 1950 que as atividades de Russel ganharam vulto.

Foi merecedor de “favores oficiais”, como a Ordem do Mérito e a eleição para várias sociedades britânicas. Em 1950, veio o Prêmio Nobel de Literatura. As publicações não pararam. Junto com Albert Einstein (1879-1955) e outros grandes cientistas, militou em favor da cooperação pacífica e do desarmamento nuclear.

Como anota Ayer, Russell “correspondia-se com chefes de Estado e interveio tanto na crise cubana de 1962 como no incidente sino-indiano, provocado por questão de fronteiras. Defendeu a causa dos judeus na Rússia, dos árabes em Israel e dos prisioneiros políticos na Alemanha Oriental e na Grécia”. Criou até um “Tribunal Internacional de Crimes de Guerra”, do que qual Jean Paul Sartre (1905-1980) foi o integrante mais badalado. E por aí vai.

Como lembra o “biógrafo intelectual” Ayer, Russel “é figura singular entre os filósofos de nosso século, por haver combinado o estudo de problemas especializados não apenas com o interesse pelas ciências naturais e sociais, mas também com a dedicação a questões de educação, tanto primária como superior, e, ainda, com ativa participação em política. A celebridade internacional, de que gozou no fim da vida, teve, sem dúvida, por principal motivo, sua atividade política e a ação de pregador de ideias morais e sociais; contudo, o lugar que venha ocupar na história, ele o deverá a sua obra filosófica e, especialmente, à que produziu na juventude e nos primeiros anos de maturidade. (…). Em verdade, com a possível exceção de seu discípulo Ludwig Wittgenstein, não há filósofo de nosso tempo que tanto tenha inovado, não somente no que respeita ao tratamento de particulares problemas filosóficos, mas ainda no que concerne à colocação global da matéria”.

De toda sorte, impossibilitado de “entender” os seus “Principia Mathematica” – que,  publicados de 1910 a 1913 em coautoria com Alfred North Whitehead (1861-1947), muito provavelmente são sua obra-prima –, homenageio aqui as “Histórias” da filosofia e do pensamento de Bertrand Russell. Confesso que elas são em grande medida responsáveis pela minha paixão pela história das ciências e das artes e, em especial, do direito.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 26/01/2025 - 05:30h

Entre céu e mar

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa da Meta AI do BCS

Arte ilustrativa da Meta AI do BCS

Amyr Klink é um navegador brasileiro e escritor. Foi pioneiro na travessia, a remo, do Atlântico Sul, em 1984. No livro que narra a sua saga (Cem dias entre céu e mar), Amyr mostrou-se resiliente para alcançar os seus objetivos. Enfrentando mares revoltos, sozinho dia e noite, com a companhia de baleias e tubarões, ele soube vencer os desafios.

“Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para se chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. É preciso, antes de mais nada, querer”.

Querer. Talvez, seja a palavra-chave. O desejo de vencer um obstáculo, a força motriz que nos faz alçar voos. Muitas vezes, ficamos amuados, desiludidos com os problemas da vida. E são muitos. Quem não pensou em “chutar o balde”? Às vezes, parece que nada dá certo.

Entretanto, é preciso paciência. Persistência. Querer. Conheço muitas pessoas que reclamam da vida. Porém, nada fazem para sair do lugar que se encontram. Não há vitória sem luta, como dizem por aí.

Vou dar um exemplo: tive muitos alunos e alunas que sonhavam em ser aprovados em um concurso público. Contudo, quando não conseguiam ser aprovados na segunda ou terceira tentativa, desistiam. Faltou o querer. Concurso se faz até ser aprovado, não importa quantas vezes, se realmente é isso que se quer. Essa persistência serve para tudo que se almeja na vida.

E mais: quantos empreendedores não fracassaram? Aqui em nossa cidade, empresários já foram à bancarrota, mas conseguiram se reerguer. Somos forjados na labuta diária, no sol a pino que aquece nossa cabeça e alma.

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”; “o brasileiro não desiste nunca”. Mais do que frases de efeito, são verdades. O brasileiro enfrenta uma luta renhida para sobreviver, sobretudo num país marcado pela desigualdade social e corrupção.

E assim, solitário no meio do oceano, por vezes sentindo um frio de rachar, Amyr Klink pensava no percurso a ser vencido; nas inúmeras remadas para concluir o trajeto. Todavia, continuou descortinando o horizonte à sua frente.

“O horizonte, linha perfeita e segura, fronteira do destino que se renova eternamente e que abriga nossos objetivos, passou a ser meu ponto de apoio e companheiro de viagem”.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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