• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 03/03/2024 - 05:28h

Os cães cariocas

Por François Silvestre

Praça de lazer exclusiva para cães no RJ-RJ, na Praça do Lido,  Copacabana (Foto: PMRJ)

Praça de lazer exclusiva para cães no RJ-RJ, na Praça do Lido, Copacabana (Foto: PMRJ)

A cidade do Rio de Janeiro tem aproximadamente sete milhões de habitantes. E talvez o dobro disso de cães. População canina maior que humana. A cidade é um estuário de miséria humana; com mendigos, assaltantes e dormidores nas calçadas.

Na madrugada ou ao amanhecer, os depósitos de lixo postos nas ruas dos prédios de classe média são revirados por estes dormidores. Quando os carros de coleta chegam, muito desse lixo resta espalhado pela rua.

Aí você talvez pergunte: “e os cães também soltos na rua”? Não. Absolutamente não. Não há cão abandonado no Rio. Pelo menos nesses bairros de classe média. Nenhum. São cães criados e bem criados. Madames que passeiam nas ruas, supermercados, praias, bares, com seu cão de colo. E mais os membros da família. Companheiro, filhos, também levando cães no colo ou pela coleira.

No final da tarde, você vê cuidadores conduzindo dezenas de cães, que serão devolvidos nos apartamentos. No bar onde você estiver, haverá sempre alguém com o seu ou seus cães. E não raro, vira um festival de latidos quando chega outrem também conduzindo mais um ou mais cães.

Porém, entretanto, mas porém, como diria Zé Limeira, você nunca verá um cão abandonado nas ruas do Rio de Janeiro. Esse lugar de abandono é propriedade dos humanos.

Aí vem, na memória, um verso meu antigo escrito num guardanapo de um barzinho no Bairro da Glória: O verso de Gil perdeu encanto,/ As pedras que cercam o Rio/ continuam belas,/ Mas a cidade cercada por elas,/ nem tanto.

François Silvestre é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 25/02/2024 - 11:20h

Nem de longe

Foto do próprio autor da crônica

Foto do próprio autor da crônica

Por Bruno Ernesto

Aquele velho ditado de que nem sempre o que parece, é, nunca esteve tão em voga.

Dia desses, escutei um conhecido dizer que a felicidade é possível nas coisas simples.

Sim, concordo!

O que, de início, parecia uma conversa alinhada, com exemplos de simplicidade, autoconhecimento e satisfação pessoal, se mostrou uma felicidade tóxica e artificial.

Voz mansa e palavras de ordem para a plena felicidade, aos poucos, contrastava com o que fazia na prática.

Essa foi a terceira vez que pudemos conversar pessoalmente, numa roda de conhecidos em comum; e uma coisa que notei, foi que toda conversa iniciava com uma lição de autoestima daquelas que se encontra em livro de autoajuda ou se escuta em palestras motivacionais, e que seu ciclo de amizade era enorme e de gente abastada.

Como de costume, escutei atentamente e falei pouco.

Sempre é bom escutar o interlocutor que tem muito a dizer, especialmente quando o assunto é ele mesmo.

Dizia ela, a dita pessoa, que não sabia como alguém poderia viver num ciclo de aparência e necessidade de agradar aos outros, mas que, ela própria, precisava fazer a mesma coisa.

Estranhei, mas a justificativa que deu em seguida, foi reveladora: era preciso manter o “networking”.

Fiquei curioso e resolvi perguntar que “networking” seria esse, embora já imaginasse.

Não se fez de rogada e disse que eram pessoas da alta sociedade cujo seu trabalho era manter o fio da navalha sempre cego, de modo que os cortes das agruras deles fossem rasos.

Descobri, depois, que as agruras a que ela se referia eram quais restaurantes, academias, viagens luxuosas e o carro novo que precisariam frequentar, realizar e comprar; pouco importando o sacrifício pessoal, o custo financeiro e o moral.

Confesso que compreendi.

Embora tentasse se desvencilhar dos seus pupilos emocionais, transparecia um prazer existencial em fazer parte daquele micromundo de invariável fragilidade pessoal e, muitas vezes e, ao que parece, indissociável prazer de orbitá-lo, muito embora fosse intangível à sua realidade.

Não seria surpreendente que se sentisse parte, ao menos em sua mente.

Lá pelas tantas, disse que, apesar de ter morado num luxuoso hotel por três meses, a vista deslumbrante do mar, a brisa, o excelente buffet do café da manhã e as excelentes conversas com os hóspedes bem afeiçoados, não lhe interessaram naquele momento, por razões que lhe fugiam à sua racionalidade.

De fato, não tive como contrapor o seu argumento de autoridade, muito embora desconhecesse sua real formação acadêmica.

Após os seus repetidos bordões de felicidade tóxica, lembrei de uma pequena casinha que fotografei outro dia na beirada de uma grande falésia.

Sua simplicidade, digo, da casa, contrastava com a beleza que ao fundo apareceria. Muito embora o penhasco ficasse logo ao lado.

Certamente quem já a conhece, sabe que a beleza ao fundo, esconde um grande perigo.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C 25 anos - Institucional - 19-12-2023
domingo - 25/02/2024 - 10:28h

Uma comparação literária

Machado de Assis: autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Foto: Reprodução)

Machado de Assis: autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Foto: Reprodução)

Por Marcelo Alves

Hoje mais do que nunca, com a globalização, a facilidade de comunicação e o maior intercâmbio cultural, a literatura comparada deve ser uma das principais “parceiras” daquele que pretende analisar as realidades da cultura geral e do seu povo. E, quando falo de globalização, refiro-me àquele processo que tende a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, uma complexa rede de comunicações que abarca todo o mundo e, por que não, um padrão de cultura/literatura comum a todos os povos ditos “civilizados”.

Essa melhor utilização da literatura comparada, aliás, pode se dar de várias maneiras e em vários níveis. Podemos realizar macro ou microcomparações. A primeira refere-se ao estudo de duas ou mais “literaturas” (a brasileira e a norte-americana em suas totalidades, por exemplo); a segunda, ao estudo de aspectos, temas, obras ou autores de duas ou mais “literaturas”. Deve-se notar, ainda, que essa comparação pode ser horizontal ou vertical, a depender se o enfoque recai sobre o panorama atual ou se são feitas incursões de caráter histórico nas “literaturas” comparadas.

De fato, na literatura, a comparação tem muito a nos oferecer. De maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, a literatura comparada nos ajuda a identificar os elementos essenciais da literatura de outros países, de outros povos, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa, assim como seus pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Jamais em competição com as tradições internas, mas em parceria com elas, a literatura comparada pode ter uma função de análise e ajudar a se chegar a um julgamento mais equilibrado e crítico de nossa produção intelectual, graças a uma perspectiva mais ampla e multicultural da literatura.

Tomemos aqui, como singelo exemplo para comparação literária, a seguinte relação entre a obra do irlandês Laurence Sterne (1713-1768) e do nosso Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

O mulato carioca Machado de Assis é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. O grande crítico norte-americano Harold Bloom (1930-2019), aliás, tinha Machado de Assis como o maior escritor negro de todos os tempos. Uma de suas obras-primas é o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). E a propósito, em 2020, a prestigiosa revista The New Yorker, em virtude de uma nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, deu à resenha do livro o consagrador título: “Redescobrindo um dos mais espirituosos livros jamais escritos”.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é alegadamente inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) de Sterne. Mesmo que se tenham estórias diversas para cada um dos livros, e mesmo que seus contextos sociais e culturais sejam diversos (uma Europa com duzentos anos de diferença para o nosso Brasil), há, sem dúvida, fortes pontos de contato/inspiração.

A “forma livre de jogar as ideias”, as digressões e o humor (embora um humor mais sarcástico em Machado e um mais ingênuo/sentimental em Sterne) são amplamente reconhecidos. Pode-se até de dizer que Machado “roubou” a ideia ou concepção do romance de Sterne, que, por sua vez, já a teria “furtado”, em parte, do Dom Quixote (1605) de Miguel Cervantes (1547-1616).

Mas não tenham isso como demérito para o nosso maior escritor. Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de fato nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo do Cosme Velho.

As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são mesmo revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?).

Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.

Afinal, e não canso de repetir, já dizia o enorme Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 25/02/2024 - 09:50h

Lá vem a chuva

Área litorânea, região metropolitana, são pontos mais críticos no período (Foto ilustrativa Elisa Elsie)

Foto ilustrativa de Elisa Elsie/Arquivo

Por Odemirton Filho

O velho sertanejo olhava para o céu. Estava no período do inverno, e rogava a Deus que a chuva molhasse o chão esturricado. Todo ano era a mesma peleja, o homem do campo fia-se em Nosso Senhor e nas benções de São José para que o inverno seja chuvoso. A esperança não morre, renova-se ano a ano. Assim é a vida do povo do sertão, calejado pela constante falta d`água.

Com o velho sertanejo não era diferente. Passou a vida trabalhando naquelas terras. Herdou-as do seu pai e, desde pequeno, ajudava-o na roça, aprendendo o ofício que vinha de geração em geração. Daquele chão seco conseguiu tirar o sustento dos cinco filhos.

Hoje, moravam somente ele e a sua mulher, também avançada em anos. Os filhos foram morar numa cidade grande em busca de melhores condições de vida. Entretanto, nunca pensou em sair do seu torrão. Ali nasceu, ali morrerá.

Levavam uma vida simples. A sua mulher preparava o café cedinho, antes do sol raiar; barria o terreiro, depois, ia limpar a casa e preparar o almoço. Ele ajeitava alguma cerca que estava quebrada; alimentava os poucos animais que tinham; limpava a sua pequena roça. Na hora do almoço, normalmente comiam feijão, farinha e, quando tinha, alguma mistura. Tomava umas doses de cachaça para “espaiar o sangue”.

À noite, ao lado de sua velha, assistiam ao noticiário na televisão e escutavam umas cantigas no rádio. Gostavam de ouvir o rei do baião: “Sem chuva na terra descamba janeiro, depois fevereiro e o mesmo verão; apela pra março que é mês preferido do santo querido senhor São José (meu Deus, meu Deus)”; dormiam antes das 21h, religiosamente.

Recebia o dinheirinho do governo, mas o “aposento” mal dava para as despesas. Há anos que escutava a conversa mole dos políticos que a vida vai melhorar. Neste ano de eleições municipais, os candidatos a prefeito e a vereador deverão passar pela sua casa prometendo mundos e fundos, mas gostava de dizer que já tinha plantado “um pé de cá te espero”.

Agora, via as nuvens carregadas, os raios rasgando o céu. Estava capinando a roça e gritou para a sua mulher: lá vem a chuva! Lá vem a chuva!

E sentiu o suor do trabalho, as lágrimas da esperança e os pingos da chuva enviada por Nosso Senhor escorrerem em seu rosto.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - 12 de Abril de 2024 - Arte Nova - Autismo
domingo - 25/02/2024 - 09:12h

Marcas do tempo

Por Marcos Araújo

Ilustração Web

Ilustração Web

O poeta romano Virgílio, autor de “Geórgicas” e “Eneida, costumava dizer aos seus comensais que o tempo fugia de forma irreparável (tempus fugit irreparabile). Como um “devorador das coisas” (tempus edax rerum) emendou depois, com precisão, o poeta Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.). Em suas aulas aos estóicos, o filósofo grego Sêneca repetia excessivamente que “nada é nosso, exceto o tempo.” E sobre a ansiedade humana na busca de um viver perpétuo, complementava: “Perdemos o dia esperando a noite e perdemos a noite esperando amanhecer.

Outro dia, fiquei absorto em envelhecidas sinapses cerebrais ao adentrar na ampulheta da minha existência, depois que o ilustre editor deste Blog restaurou uma publicação sua, de 12 anos atrás, noticiando a inauguração do nosso “novo” escritório.  Reflui no seu texto, para aportar brevemente no passado. À semelhança de Mário Quintana, admito que na minha cabeça “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”

Pensei nas diversas mudanças a que fui submetido. No último decênio, por exemplo, a tecnologia “devorou” muitos dos símbolos dos escritórios de advocacia do meu tempo inicial, a exemplo: i) a máquina datilográfica; ii) o diário oficial publicado em jornal impresso; iii) o processo judicial – e administrativo – físico; iv) os livros em papel; v) o contato com o cliente e o meio de consultar o advogado (que era fundamentalmente presencial, e agora é pelo Instagram e o WhatsApp); vi) os mandados judiciais, que são atualmente cumpridos por mensagens de WhatsApp etc.

O Direito foi mudando.  Antes, a fonte era a lei, depois a Constituição. Agora, somos espectadores da fuga da normatividade, valendo apenas a “decisão-norma” criada pelo Tribunal ou por um Juiz, em isolado. O STF virou legislador extraordinário, e Alexandre de Moraes um intérprete avesso da lógica constitucional.

No meu tempo, crises diplomáticas entre nações se resolviam em reuniões longas a portas fechadas entre os embaixadores. Hoje, são “viralizadas” a partir de publicações – dos embaixadores – em redes sociais. Os Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) todos os dias criam mais e mais portais, canais e oferta de serviços virtuais, uma prodigalidade de promessas descumpridas e serviços absolutamente ineficazes.

Os prejuízos são notados na família, na formação educacional, na educação social. Há um desprezo pelos encontros pessoais e estamos decretando a morte da mágica da afetividade humana.

A VIRTUALIDADE, penso eu, tem sido inimiga da criatividade, do aprofundamento do saber, do pensar instantâneo, da operatividade, da destreza do agir… Pelo menos, as crianças estão mais lerdas, menos ativas. Os profissionais também. Conhecimento temático é de superfície. O saber é apenas “googliano”. Os cursos de finais de semana, por Google Meet, diplomam milhares dos “especialistas” do presente.

Stravinsky (1882-1971), o famoso compositor e maestro russo, perguntado uma vez sobre o seu sucesso, negou bastar a inspiração. Dizia ele que tudo vinha pela persistência do trabalho: “Não se nega a importância da inspiração. Pelo contrário, considero-a uma força motriz, que encontramos em toda atividade humana. Essa força, porém, só desabrocha quando algum esforço a põe em movimento, e esse esforço é o trabalho.”

Meu desafio diário está na resposta de Arnaldo Antunes, dos Titãs: “não vou me adaptar”.  Tenho travado, como Aldyr Blanc, diálogo com o tempo. E sei que ele debocha de mim. O efeito é diverso do que foi musicado. Fico apenas com a parte final: No fundo é uma eterna criança, que não soube amadurecer / Eu posso, e ele não vai poder, me esquecer.”

Marcos Araújo é advogado e professor da Uern

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Categoria(s): Crônica
domingo - 25/02/2024 - 08:02h

Pequeno burguês de esquerda

Foto: I Stock

Foto: I Stock

Por François Silvestre

Certa vez, um comentarista do Blog Carlos Santos, pensando me agredir, chamou-me de ex-comunista. Eu respondi confirmando, para desencanto dele. Disse, na época, que concordava com a afirmação. E que fora de fato comunista, ou pelo menos pensava que o fora.

Digo que pensava porque havia quem não me considerasse como tal. Isso mesmo. Os comunistas tradicionais, da cartilha stalinista, nunca me consideraram comunista. À exceção dos quadros do PCR. Nomes importantes da resistência democrática. Lembro agora Emmanoel Bezerra, Manoel Lisboa, Leonardo Cavalcanti, Dionary Sarmento. Os dois primeiros mortos sob tortura, os outros dois presos e torturados. Mas isso é outra história.

O certo mesmo é que o comunismo sino soviético foi uma tragédia fantasiada de alternativa. Tragédia não apenas pela prática da violência, mas pelo delito histórico de ter ofertado ao capitalismo a bandeira das liberdades fundamentais. Presente indevido a presenteado imerecido. O capitalismo foi e sempre será o regime da exploração humana.

Toda crítica do capitalismo à violência, à opressão, e à miséria é tão somente um estuário de hipocrisia e farisaísmo. Hipócritas e exploradores da condição humana. O sinosovietismo deu ao capitalismo sobrevida e argumentos. Mas não conseguiu lhe dar vergonha.

O comunismo morreu para o capitalismo continuar matando.

Então, isso dito, reafirmo como verídica a crítica dos stalinistas sobre mim. De fato eu sou o que eles disseram que eu era. Apenas um pequeno burguês de esquerda. Ou como disse Ângelo da Costa Neto, filho de seu Luis Lino, sou um esquerdista cervegista. Não consegui até hoje enxergar dignidade humana no capitalismo.

É isso aí.

François Silvestre é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 25/02/2024 - 06:48h

O universo fantástico de Ayala Gurgel

Por Marcos Ferreira

Livro de Ayala Gurgel (Reprodução)

Livro de Ayala Gurgel (Reprodução)

Não sou estudioso da produção livresca potiguar. De modo algum. Nem mesmo do âmbito mossoroense. Ignoro, destarte, que tenhamos entre nós um literato mais sombrio e fiel às surpresas do estilo sobrenatural, com os recursos criativos, as características e peculiaridades de Ayala Gurgel. Sim. Trata-se de um ficcionista engenhoso, fecundo, versátil, autor, principalmente, de títulos nas modalidades conto, novela e romance.

Conquistou posições de destaque em relevantes prêmios literários, além de integrar antologias organizadas e lançadas ao longe de nossa província.

Embora pouco conhecido nos meios intelectuais do RN e de Mossoró, Ayala já escreveu e publicou quase uma dezena de livros através de edições particulares. Unindo criatividade e elementos verídicos, o seu estro adota como pano de fundo a temática e vastidão da caatinga. Transita, invariavelmente, pelo gênero sobre-humano, sempre arraigado na ficção teológica. Nessa esfera, que conhece a fundo, apresenta as suas garras de escritor ácido. É aí que estabelece e desenvolve uma escrita iconoclástica, pródiga em sistemáticas críticas à instituição da Igreja Católica.

Nascido em 1971 no município norte-rio-grandense de Alexandria, Ayala Gurgel reúne vasta formação acadêmica. Tem passagem por importantes universidades brasileiras, informações estas que não gosta de divulgar. Entre outras habilitações, é doutor em Políticas Públicas e Filosofia. Desde 2014 é professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).

Possui experiência no campo da Filosofia, sobretudo em Ética, Bioética, Tanatologia e Saúde Mental. Atualmente desenvolve pesquisas na área de filosofia da linguagem ordinária e teoria da argumentação. 

Em Brumas & Brenhas, cujo prefácio leva a minha assinatura, mas que poderia lhes expor a avaliação de alguém mais familiarizado com o simbolismo do místico, ouso dizer que o autor de O Segredo da Ordem do Santo Sacrifício se revela em sua melhor forma enquanto criador de mundos e personagens. Inventivo, de pulso firme e se utilizando das tintas de um demiurgo como Stephen King, de quem é confesso admirador, Ayala nos mostra que também sabe contar uma boa história e infundir algum medo em pessoas menos habituadas a leituras dessa natureza.

Não pretendo esmiuçar, traduzir nem oferecer a bem elaborada narrativa de Brumas & Brenhas toda mastigadinha para o respeitável leitor. Não. Isso está fora de minha competência. Ao menos é o que eu presumo. Recomendo ao público, portanto, mergulhar na trama e ver de perto o saboroso e extraordinário conto acerca de indivíduos tão incríveis quanto verossímeis. Em especial a jornada que dois padres jesuítas empreendem pelas brenhas do alto oeste potiguar no ano de 1751.

Gurgel: instigante (Foto: divulgação)

Gurgel: instigante e ácido (Foto: divulgação)

A HISTÓRIA É CONTADA em primeira pessoa por um narrador onisciente e ignoto. Na segunda parte do causo, com uma prosa clara e instigante, é relatado o aparecimento do seguinte fenômeno climático:

“A situação estava feia e não dava sinais de melhora, anjos e santos pareciam não se apiedarem, mas naquele exato dia 06 de abril de 1751, ainda de madrugada, antes do sol raiar, uma névoa úmida começou a subir da areia fina do riacho onde se encontravam as últimas cacimbas com alguma serventia. Não houve relâmpago ou trovão durante a noite toda, nenhum sinal de que cairia uma gota d’água, nada que indicasse mudança do tempo, apenas a bruma que começou a subir da terra, atingindo, em pouco tempo, a copa das árvores ciliares”.

A trama é construída a partir de um documento fictício que supostamente aponta para a origem da cidade natal do romancista, um lugarejo de nome Barriguda. Aí encontramos tipos cativantes, a exemplo do protagonista e contador de histórias Zé Preto, escravo que conseguiu sua alforria por meios que ninguém sabe ao certo.

À volta de Zé Preto, que relata aos jesuítas o mistério da súbita bruma, gravita uma série de catingueiros interessantes como Dona Antônia, Seu Zé de Brejeiro, Dona Amélia, Preá, Baraúna, Filomena, Zefa, Cocota, Mundico, Zefinha e Madalena.

Posso afirmar que, entre todos os trabalhos artísticos de Ayala, Brumas & Brenhas é o meu preferido. Digo mais: estamos perante um homem de letras que realmente sabe escrever, talento este que não é regra em nosso habitat. Então, sem querer me alongar nem chover no molhado, fico por aqui e convido vocês a se embrenharem no universo fantástico de Ayala Gurgel. Afianço que vale a pena.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 25/02/2024 - 04:34h

Um oficial de Justiça (amigo) em minha porta

Batendo à porta, porta,Por Carlos Santos

Mais uma vez tenho um oficial de justiça à minha porta. A batida ao portão, com o punho cerrado e em sequência tonitruante, não me deixa dúvida. Pergunto só para conferir mesmo:

– Quem é?

– Sou eu, Carlos Santos. É Otacílio, oficial de Justiça.

Nem precisava a declaração oficial.

O “toque” de Otacílio é personalíssimo.

Tomo a liberdade, para não atrasá-lo, de sair em trajes quase sumários, com meu físico de pintassilgo resfriado, pernas de talo de coentro à mostra.

Uso apenas uma toalha contornando a cintura, dorso “atlético” à exibição, como um gladiador apolíneo, espécie de deus grego do semi-árido.

Tenho essa naturalidade, em face da frequência com que os oficiais de justiça aportam aqui em meu muquifo, sempre trazendo citações e intimações da patota que está no poder e, que, não é do ramo.

Pelo menos do ramo de governar, que se diga.

Suas manoplas têm outras habilidades.

Bem, mas voltemos ao ponto central desta prosa.

Surpreendi-me. Nem intimação nem citação.

O amigo Otacílio, de manhã ainda cedo, pede desculpas pelo suposto incômodo. Quer apenas uma informação sobre outra pessoa a ser citada judicialmente. Oriento-lhe, ajudo-o. E, lógico, coloco-me sempre à disposição para esse ou outro fim ao meu alcance.

Como jurisdicionado, até cobro tratamento diferenciado, pois me considero o melhor por essas plagas, sem nunca me esconder ou colocar qualquer embaraço ao prosseguimento processual, desde a simples citação.

Dessa vez, na pressa não deu para oferecer pelo menos um copo com água ao Otacílio. Mais não posso. A geladeira parece um chafariz: só tem água.

Fica para uma próxima.

– Volte sempre – intimei ao me despedir.

Carlos Santos é editor e criador do Blog Carlos Santos (Canal BCS) e autor dos livros “Só Rindo – A política do bom humor do palanque aos bastidores” (I e II)

*Texto originalmente publicado no dia 20 de maio de 2011, quando eu era soterrado por dezenas de processos judiciais originários de um mesmo grupo político local.

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domingo - 18/02/2024 - 12:34h

Uma receita ensaística

Por Marcelo Alves

Michel de Montaigne (Reprodução revista Cult)

Michel de Montaigne (Reprodução revista Cult)

Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o exemplo do intelectual moderno. Talvez tenha sido o primeiro da sua estirpe. Como bem define Carlos Eduardo Ortolan (em “Montaigne: um ensaísta refinado”, Cadernos EntreLivros 4 – Panorama da Literatura Francesa, 2007), ele foi um “cavalheiro elegante que, recluso em sua propriedade em Bordeaux e cercado por vasta biblioteca como um herói solitário do pensamento, produziu reflexões sobre os temas mais variados.

Montaigne forneceu o tom para o estudioso erudito, o trabalhador intelectual incansável, às voltas com a leitura e a redação de seus artigos”. Montaigne foi um sábio, no que de mais positivo possa ter essa palavra. Praticante da “epoché” do ceticismo clássico, a suspensão do juízo diante da antinomia de duas formulações igualmente razoáveis e fundamentadas, evitava, entre outras coisas, falar tolices.

E Montaigne foi – ou, melhor, é – o autor de uma obra considerada seminal das letras universais, “Os ensaios” (“Les Essais”, 1580), que tratam de quase tudo e que fundam um novo gênero literário. Como anota o citado Carlos Eduardo Ortolan, “uma breve vista de olhos por suas páginas nos brindará com um cortejo imenso, heterogêneo e vazado, no melhor estilo clássico de uma variedade de temas que faria inveja a qualquer enciclopédia moderna. (…) Esse é um dos encantos da obra: os ensaios podem ser lidos sem compromisso com uma ordem rígida, abertos ao acaso e fruídos em sua sabedoria e elegância, mesmo nos tempos atuais”.

Mas, a partir do exemplo de Montaigne, o que faz alguém ser um bom ensaísta? E, em tempos tão “líquidos”, que pedem textos mais curtos, o que faz um bom cronista/ensaísta? Existe uma receita para um “fino corte ensaístico”?

Certamente, ensaios/crônicas devem ser sistemáticos somente até certo ponto. Os textos, espalhados em jornais e revistas, ou mesmo reunidos em livro, podem possuir um ou mais núcleos temáticos, é verdade. Mas o que realmente importa é que eles sejam o resultado das reflexões mais íntimas do autor, das suas preferências na vida ou mesmo do momento, enfim, do seu estado anímico, quando ele, tinta e papel à mão, ou defronte a uma tela de computador, deixa fluir suas ideias e sua imaginação.

O ensaísta/cronista não deve cair na tentação da rigidez acadêmica, embora não deva abrir totalmente mão dos elementos indispensáveis a uma formulação de ideias fundamentada e crítica. Nesse ponto, basta ser sensato.

Ele deve ser informativo. Conhecer o mundo, as pessoas e as ideias. Mas deve ser também opinativo. Ter posição. Não precisa – aliás, não deve – ser extremista. O ensaísta/cronista deve ter a coragem de ser moderado.

Pode ser irônico, até sarcástico, mas na medida certa. A ironia oferece expressividade a qualquer discurso. E o riso, para desespero dos casmurros de hoje, nos une.

Por derradeiro, o ensaísta/cronista de gênio deve saber interpretar o mundo. Para além de saber das ideias, é necessário compreendê-las. Deve sobretudo descobrir e dizer o ainda não dito a partir daquilo que já foi dito. Mark Twain (1835-1910) certa vez disse algo como: “Não existe uma nova ideia. É impossível. Nós simplesmente pegamos um monte de ideias antigas e, então, as colocamos em um tipo de caleidoscópio mental”. E assegurava o revolucionário Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

E, claro, o ensaísta/cronista deve concluir o seu raciocínio ou, pelo menos, sugerir alternativas coerentes de conclusão para o leitor. Pois essa é a minha receita de “fino corte ensaístico”. Que, confesso, copiei ou roubei, por partes, de muita gente.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 18/02/2024 - 08:52h

Pósdromo carnavalesco

Por Bruno Ernesto

Foto do Blog Jair Sampaio

Foto do Blog Jair Sampaio

Um bom carnaval produz duas coisas: ressaca e boas histórias.

O sonho de todo estrangeiro é curtir o carnaval no Brasil.

O famoso carnaval de Caicó, com seus bloquinhos de rua, não poderia ficar de fora do desejo de um amigo meu italiano que resolveu passar um carnaval em Caicó.

Naquele longínquo carnaval, ele sendo um grande apreciador de boas farras, correu para o Brasil e disparou para Caicó na sexta-feira de carnaval.

Findo o carnaval, na Quarta-Feira de Cinzas aportou em Mossoró com o grupo de amigos que aproveitaram a folia em Caicó.

Quando chegou, eu estava na casa da minha mãe aguardando o almoço e fui recepcioná-lo, pois fazia tempo que não nos víamos.

Quando desceu do carro, me deu um abraço, falou do grande carnaval que aproveitou, da bebedeira e, lá pelas tantas, caqueou os bolsos atrás do telefone celular.

Entrou no carro que veio e revirou tudo atrás desse celular, e nada de achar o bendito celular.

Como um bom italiano, perdeu logo a paciência e passou a disparar toda sorte de xingamento e, gesticulando, disse que furtaram seu celular lá em Caicó.

Naquela situação, saquei meu celular do bolso e perguntei qual era o número do celular dele e tratei de ligar a fim de ver se alguém atenderia à ligação e, assim, talvez conseguisse reaver o aparelho telefônico.

Por sorte, alguém atendeu de imediato. Ele arrebatou meu celular da minha mão e passou a interrogar a pessoa no outro lado da linha.

Enfurecido, ressacado e cansado após 5 dias de farra, numa mistura de português e italiano, passou a dizer que tinha sido furtado, que foi vítima de um rapina e que ia denunciar para a polícia.

Como não sabia o que o outro interlocutor falava, eu só podia ver a reação do meu amigo, cada vez mais enfurecido.

Num certo momento ele disse gritando e gesticulando:

– Maluco? Não sou louco! Você que rapinou meu celular!

– Vou ligar para polícia! Você vai ser preso!

Após uns minutos dessa peleja, o meu amigo olhou indignado para mim e, com o telefone ainda no ouvido disse:

– Bruno, o cara desligou! Perdi o telefone!

A alegria do carnaval dele acabou ali.

Tentei consolá-lo dizendo que daríamos um jeito de arrumar outro telefone para ele usar enquanto estivesse no Brasil.

Lá para as tantas, ele pediu para ligar novamente para o número do celular dele.

Imaginei que ele quisesse negociar com o “rapina” e reaver o celular, e tratei de ligar novamente.

Dessa vez ninguém atendeu. Entretanto, um telefone tocava dentro de uma bolsa que estava na calçada.

Meu amigo, ainda com o meu telefone ao ouvido, se agachou e abriu a dita bolsa; enfiou a mão e sacou o celular dele.

Ele me olhou e pediu para conferir o número do telefone que havia ligado antes e, furioso, disse:

– Bruno, você ligou para o número errado na outra ligação!

– Por isso que o cara estava me chamando de louco!

– Estava chamando ele de ladrão, rapina, e ele não entendia!

Até hoje quando chega a Quarta-Feira de Cinzas lembramos dessa história e damos altas gaitadas.

Carnaval é carnaval.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - 12 de Abril de 2024 - Arte Nova - Autismo
domingo - 18/02/2024 - 06:46h

Inúteis notas de inutilidade pública

Por Marcos Ferreira

Ilustração da Web

Ilustração da Web

Esta semana, precisamente na terça, fui convidado a não participar de uma magnífica antologia com os mais expressivos e baludos contistas, poetas e cronistas de nossa província. Todos eles, devo admitir, mestres de uma poeticidade e ficção bacanas, medalhões da alta-roda destes confins do mundo.

Os romancistas ficaram de fora desse divisor de águas da pujança editorial de Mossoró, claro, porque romance é romance e não aceita compartilhar holofotes com os demais gêneros.

O livro, que pode atingir as quatrocentas páginas, sairá com uma musculosa tiragem de dez mil exemplares e selo da conceituada Pombagira, casa publicadora com sede em Salvador. Os integrantes da antologia vão custear cinquenta por cento da edição. Os outros cinquenta ficam por conta da Pombagira.

Metade da tiragem, assim, entrará na algibeira dos autores. Está programada uma glamourosa noite de autógrafos na imensa área de festas do hotel cinco estrelas Cabaré Palace. A estimativa de público é de mil convidados. O DJ Alouco, aclamado internacionalmente, virá do Rio de Janeiro para animar o megaevento.

O bufê, o cachê do artista carioca, o aluguel do espaço recreativo do Cabaré e metade dos cinquenta por cento das despesas gráficas que rolam para os escribas serão patrocinados pela Construtora Irmãos Pindaíba, pela Secretaria de Cultura e Câmara de Vereadores. A imprensa escrita, televisiva, falada e digital fará uma cobertura maciça.

Após o lançamento da coletânea, a obra ficará disponível para aquisição na livraria do Bodega Shopping, perto do Condomínio Alfavela, e nas plataformas de gigantes do e-commerces como Amazon e Mercado Livre.

No total, entre contistas, poetas e cronistas, a seleta reúne trinta nomes de notória inventividade literária. Quase todos são imortais das academias de letras de Mossoró e do Rio Grande do Norte. Cinco dessas cabeças pensantes, para a glória do nosso mundo das palavras, já conquistaram o prestigioso Prêmio Tartaruga, a mais cobiçada honra da literatura tupiniquim.

A Feira do Livro de Mossoró, desde sempre, é uma vitrine exclusiva e fiel dos nobres bruxos e bruxas do Cosme Novo.

Considero uma tremenda sacanagem o fato de tantos e tão bons escritores do Brasil nunca terem ganho um Nobel. Outra baita injustiça é nenhum literato da terra dos monxorós sequer ser indicado para o galardão da Academia Sueca. Absurdo do absurdo! Bom! Enquanto o Nobel não chega para algum dos meritórios autores mossoroenses, e sem nada de mais importante para fazer, hoje eu resolvi divulgar (na melhor das intenções!) estas inúteis notas de inutilidade pública.

Quem sabe num futuro não muito remoto, quando os algarismos da loteria enfim caírem na minha cuca, eu seja convidado para fazer parte de uma segunda antologia mossoroense dessa magnitude. A menos que não me considerem um escritor.

Mas com Deus, saúde e dinheiro tudo é possível. Deixem estar.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 18/02/2024 - 04:34h

Ficar em casa

Por Carlos Drummond de Andrade

O poeta/contista/cronista em seu apartamento em 1980 (Foto: Rogério Reis)

O poeta/contista/cronista em seu apartamento em 1980 (Foto: Rogério Reis)

Passar quatro dias e quatro noites em casa vendo o carnaval passar; ou não vendo nem isso, mas entregue a uma outra e cifrada folia, que nesta quarta-feira de cinzas abre suas pétalas de cansaço, como se também tivéssemos pulado e berrado nos clubes.

Não ligar televisão, esquecer-se de rádio; deixar os locutores falando sozinhos, na ânsia de encher de discurso uma festa à base de movimento e de canto. Perceber apenas o grito trêmulo, trazido e levado pelo vento, de um samba que marca a realidade lúdica sem nos convidar à integração.

Beneficiar-se com a ausência de jornais, que prova a inexistência provisória do mundo como arquitetura de notícias.

Ter como companheiro o irmão gato Crispim, exemplo de abstenção sem sacrifício, manual de silêncio e sabedoria, aventureiro que experimentou a vertigem da luta livre nos telhados e homologa a invenção da poltrona.

Penetrar no vazio do tempo sem obrigações, como num parque fechado, aproveitando a ausência de guardas, e descobrindo nele tudo que as tabuletas omitem.

Aceitar a solidão; escolhê-la; desfrutá-la. Sorrir dos psiquiatras que falam em alienação do mundo e recomendam a terapêutica de grupo. Estimar a pausa como um valor musical, o intervalo, o hiato. O instante em que a agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som.

Andar de um quarto para outro, sem ser à procura de objetos: achando-os. Descobrir, sem mescalina, as cores que a core esconde; os timbres entrelaçados nos ruídos.

Olhar as paredes, ou melhor: olhar as paredes, em torno dos quadros.

Sentir a casa com um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém.

Habitar realmente a casa, quatro dias: como ilha, fortaleza, continente: infinito no finito.

Reconsiderar os livros; arrumá-los primeiro com método, depois com voluptuosidade, fazendo com que cada prateleira exija o maior tempo possível; verificar que é preciso antes tirar a poeira de um, remover a boba capa de celofane que envolve a encadernação de outro.

Reler dedicatórias; abrir ao acaso os livros de poetas que preferimos e que infelizmente não são os mais modernos nem os mais célebres; copiar meia estrofe por onde corre um arrepio verbal; separar volumes que não nos falam mais nada e que devem tentar seu destino em outras casas.

Sentir chegada a hora dos álbuns de pintura com pouco ou nenhum texto, e dos volumes iconográficos que nos contam Paris ou a vida de Mallarmé.

Viajar em fotografias; sentir-se imagem flutuando entre imagens; a terra domesticada em figura, tornada familiar sem perda de sua essência enigmática. Reconhecer que muitos livros comprados a duras penas, pedidos ao estrangeiro ou longamente minerados nos sebos, não têm mais do que essa oportunidade de comunicação durante o ano; deixar que fiquem a sós conosco e nos confiem seu segredo.

Admitir a fome, sem exigência de horário, e matá-la com o que houver à mão; renunciar à ideia de almoço e jantar, em reverência ao sagrado direito que assiste a todos, inclusive e principalmente às cozinheiras, de brincarem o seu carnaval, achar mais gosto nessa comida, porque não é a regulamentar nem é seguida de nada: todas as obrigações estão suspensas, e só valem as que soubermos traçar a nós mesmos.

Descortinar na preguiça um espaço incomensurável, onde cabe tudo; mas não enchê-lo demais, devassá-lo à maneira de um explorador que não quer ser muito rico e sente tanto prazer em descobrir como em procurar.

Assim vosso cronista passou o carnaval: sem fugir, sem brincar, divertido em seu canto umbroso.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) foi poeta, farmacêutico, contista e cronista brasileiro

*Texto originalmente publicado em 3 de março de 1960 no jornal Correio da Manhã do RJ.

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Categoria(s): Crônica
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terça-feira - 13/02/2024 - 16:34h
No sertão

Todos se pintam de alegria

BR-405 à tarde de 8 de fevereiro, Oeste do RN (Foto: BCS)

BR-405 à tarde de sexta-feira (9 de fevereiro de 2024), Oeste do RN (Foto: BCS)

Carlos Santos

Na boleia, caroneiro, testemunho o sertão no seu momento mais sublime.

A chuva abre caminho na BR-405, em pleno Oeste do RN. Pede passagem. Seja bem-vinda, porque resolvi ir no seu rastro.

Vou-me embora para a paz das horas que não têm fim, em busca da conversa despreocupada na calçada e daquelas crianças que vivem estórias da Terra do Nunca.

O Carnaval por lá não tem pierrô nem colombina. A gente não vai atrás do trio-elétrico.

Mas, todos se pintam de alegria.

Eu, também.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 11/02/2024 - 10:22h

Direito, séries e seriados – papel e tela

Por Marcelo Alves

Ilustração Web

Ilustração Web

Sou um efusivo defensor das superpotencialidades das séries e dos seriados de TV para fins de estudo sério do direito. Voluntariamente confesso.

Todavia, devo reconhecer o fato de que o direito se desenvolveu ao longo de sua história, fundamentalmente, na forma escrita. A prática do direito e o compartilhamento do saber jurídico se deram, não podemos negar a história, essencialmente com “a tinta posta no papel”. Se o direito é uma ciência, se é uma arte, se é um gênero literário, ela ou ele se fez (e ainda se faz), sem dúvida, majoritariamente através da escrita.

Mas tem de ser necessariamente assim? Ou tem de ser somente assim? Como indaga Julio Cabrera (em “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, Editora Rocco, 2006): “Existe alguma ligação interna e necessária entre a escrita e a problematização filosófica [no nosso caso, jurídica] do mundo? Por que as imagens não introduziriam problematizações filosóficas [ou jurídicas], tão contundentes, ou mais ainda, do que as veiculadas pela escrita?”.

Não enxergo qualquer coisa na essência do direito que o “condene” a se manifestar tão somente pelo meio da escrita como conhecemos, muito menos apenas através de enfadonhos códigos ou tratados. Pelo contrário.

Já disse, entre outras coisas, que: (i) as séries e os seriados jurídicos testemunham a visão sobre o mundo do direito existente em determinada sociedade em certa época, e esse testemunho é bem mais acessível ao cidadão, para fins de reconstrução da imagem que se tem do direito e de seus atores, do que os áridos estudos achados em livros de caráter estritamente científico; (ii) eles podem ser um bom instrumento para que os estudantes e os profissionais no mundo real repensem e reconstruam com aprimoramento os seus papéis e as suas imagens na sociedade; (iii) esses legal dramas de regra resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados, sendo frequentemente, a partir da dramaticidade casuística, excelentes aulas de direito; e (iv) a produção televisiva, ao mesmo tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular, também influencia a construção desse direito, subversivamente antecipando muito das modernas teorias e tendências do direito, tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc.

Aqui adiciono: a TV até possui uma linguagem mais adequada que a linguagem da escrita, sobretudo da nossa escrita técnico-jurídica, para expressar nuances, intuições e elementos afetivos que também permeiam – e assim deve ser – o direito. Como explica Julio Cabrera, diferentemente da letra fria da lei e dos manuais de direito, os conceitos-imagem do cinema (e da TV, ajunto), por meio da “experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc.”. E assim eles têm um valor cognitivo e persuasivo não só pela informação objetiva que transmite, mas também – e muito – pelo seu componente emocional.

Com certeza não estou só nessa empreitada transdisciplinar. No final do ano passado, eu mesmo prefaciei um maravilhoso livro, “O Direito e as séries – temporada 2”, organizado por Adelmar Azevedo Régis e Nicole Leite Morais, que serve como perfeito libelo para que os profissionais do direito incluam as séries e seriados, incluindo as obras de ficção, em suas formações e atividades jurídicas, na academia e na vida profissional cotidiana.

Veja sequência de crônicas sobre esse tema

Leia também: Direito, séries e seriados – uma introdução

Leia também: Direito, séries e seriados – uma paixão

Leia também: Direito, séries e seriados – vale a pena?

Leia também: Direito, séries e seriados – a emoção

Leia também: Direito, séries e seriados – os recursos.

Parafraseando palavras de André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (em “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, texto constate do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, Livraria do Advogado Editora, 2008), a ficção, o cinema e a TV abrem o “universo de análise do fenômeno jurídico, na medida em que este deixa de ser descritivo, conforme exige o positivismo, e torna-se narrativo e prescritivo”, demonstrando “que o direito é um sistema cultural, do qual participam a imaginação e a criatividade literária [e cinematográfica/televisiva], como componentes da racionalidade jurídica”.

E assim grito, em prol da unidade dessas duas culturas, o direito e a arte, viva!

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C 25 anos - Institucional - 19-12-2023
domingo - 11/02/2024 - 09:30h

Misofonia

Por Bruno Ernesto

Foto ilustrativa do próprio autor da crônica

Foto ilustrativa do próprio autor da crônica

Desde criança me interessei por colecionar todo tipo de coisa que você possa imaginar: selos postais, moedas, cédulas, cartão telefônico, álbuns de figurinhas, revistas em quadrinhos, embalagens de cigarros, lata de cerveja etc. Em relação a esses dois últimos, registre-se, não fiz uso. Pelo menos não naquele tempo.

Por volta dos meus 12 anos de idade, comecei a cultivar outro hábito: guardar recortes de jornal.O que ia achando interessante, ou guardava a folha inteira do jornal, ou passava a tesoura e guardava o que me interessava. Alguns colava na porta do meu guarda-roupa.

Após tantos anos, restaram apenas um imagem de Noel Rosa, Luiz Gonzaga, o Nogueirão e um recorte sobre fobias.

Por sinal, minha mãe ainda conserva meu velho guarda-roupa num dos quartos da casa dela, apesar de destoar de todos os outros móveis feitos sob medida.

Numa das portas, ainda está bem conservado um recorte de jornal que colei, lá pelos meus dezesseis anos de idade, onde consta mais de sessenta fobias dispostas em quatro colunas. Tem de fobia pra tudo. Sabia que um dia me serviria.

Recentemente, por volta das 14h de uma quarta-feira, eu e minha namorada fomos almoçar num restaurante aqui em Mossoró. Um bristô bem aconchegante e reservado na Nova Betânia, e que não é tão movimentado nesse horário, de modo que poderia ficar aguardando enquanto ela ia ao salão fazer as unhas e aproveitar o restaurante vazio, com um ar-condicionado geladíssimo para aplacar esse calor infernal do verão e, assim, fazer render esse tempo de espera.

Aproveitei para continuar lendo uma tese de doutoramento sobre sátira na literatura brasileira contemporânea que achei bastante interessante e havia guardado – sim, agora coleciono textos digitais -, aproveitando o gancho que escrevi sobre sátira no texto anterior (Concórdia //blogcarlossantos.com.br/concordia/ ).

Após uns vinte minutos de leitura, entrou um casal; ele aparentando ter por volta de 25 anos de idade e ela, 20.

Pelo adiantado da hora, só tinha a minha mesa ocupada, e o único som que podia escutar, além da música estilo lounge ambiente, era o do tilintar da louça sendo lavada na cozinha do restaurante, mas algo suportável.

Ocuparam uma mesa ao lado da minha. Para o meu azar.

Pediram dois croissants. Para beber, o rapaz pediu um refrigerante; ela um suco.

Conversavam a meio tom, trocando sorrisos e olhares de soslaio enquanto comiam. Ela aparentava estar bem encabulada. Tensa.

Você deve estar pensando, caro leitor, o porquê de eu estar tão curioso, observando o jovem casal. Decerto.

Entretanto, o motivo era outro mais obscuro, e tive a prudência de proceder com olhares rápidos e discretos.

O que me chamou a atenção, na verdade, foi o mastigado do rapaz, que me desconcertou a leitura a ponto de não conseguir mais prosseguir.

Era um mastigado mole, intercalado com diálogos com a boca cheia de croissant e coca cola; chupados esquisitos, uns assobios: um tipo de simbilado bem esquisito.

Alguém já me disse que sofro de misofonia. Penso que deva considerar procurar uma fonoaudióloga ou uma neurologista.

Agora, pondere. Quem nunca se irritou com mastigado de boca mole, chupado de canudo, bicada em café e sopa quente feito aspirador de pó; gente mastigando gelo ou comida crocante em um ambiente não adequado, como sala de aula, biblioteca, e até mesmo, no ambiente trabalho?

E mais! E aquelas pessoas falando com a boca cheia, roçando o talher nos dentes para arrancar a comida dele e o famigerado palitar dos dentes?

Calma! Você, por acaso, já reparou na quantidade de gente que arrasta os pés no supermercado? À vezes observo para ver se estão tentando tirar algo preso na sola do calçado.

Ledo engano meu: é a mania irritante da pessoa que parece estar sendo arrastada a força pelos corredores do supermercado em direção à guilhotina. Antes fosse. Justificaria, e até me compadeceria com o seu final.

Enquanto isso, no restaurante, a situação só se agravava. Pensei em abordar o rapaz e perguntar se ele estava bem, no intuito de interromper aquela sinfonia em dó sustenido maior.

Porém, abortei a ideia, pois, certamente, estragaria o encontro amoroso. Poderia ferir de morte o galanteio.

Não vendo uma solução compatível com a urbanidade, me fiz de covarde e bati em retirada decorosamente.

Antes o calor que fazia fora do restaurante, a permanecer naquela tortura ou estragar o encontro amoroso.

Ponderei a situação e pensei no futuro de uma família. A minha, claro! Poderia sair dali direto para o xilindró.

Minha namorada quando me viu sentar num banco em frente ao salão, no calor, já mudou a fisionomia. Sabendo como sou calorento, decerto já imaginou que algo de grave ocorrera para eu não estar no restaurante.

Perguntou, via mensagem de texto, se eu estava bem. Apenas disse que estava com dor de cabeça. Desconversei. Vi de longe que ela não acreditou.

Não sei se, de fato, sofro de misofonia ou mesmo de fonofobia. Agora, toda vez que abro o velho guarda-roupa e ponho os olhos no recorte de jornal, mais me identifico.

Lembrei o fato de que na tradição japonesa, tomar sopa sem sugar fazendo um barulho terrível é sinal de má educação e que não gostou da sopa. Entretanto, o rapaz não tinha feições nipônicas.

Talvez o ditado de que o costume de casa vai à praçaesteja em pleno vigor no caso do tipo de cena que vi no restaurante.

Entretanto, penso que não seria o caso. Sei da tarefa que os pais têm de combater isso. E me incluo nessa peleja.

Apesar de tudo, a conclusão que tive foi a de que aquela garota teve, em verdade, muita sorte, pois o rapaz poderia ter pedido uma refeição acompanhada com farofa; e, a considerar a empolgação da conversa, teria sido um desastre. Apesar de que há quem até assobie chupando cana, numa harmonia impressionante.

A bem da verdade é que, misofônico ou não, é melhor manter a calma e sair de perto numa situação dessa.

Perder a calma fará com que apenas você saia prejudicado. Ainda que a tentação seja grande e possa valer a pena em certos momentos.

Melhor não arriscar.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 11/02/2024 - 06:46h

Viva a quarta-feira de cinzas!

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Antes de começar a escrever estas linhas, sentindo-me sem saco e sem tesão para mexer com literatura, pensei em pedir socorro aos escritores Bruno Ernesto e Odemirton Filho. Quem sabe algum deles tivesse sobrando, num escaninho do computador, uma crônica que eu pudesse assinar como minha. Só por hoje.

Depois, já livre deste meu fastio, eu retribuiria a gentileza com um texto inédito que eles também pudessem assinar como deles. Vizinhos (cronistas) são para essas coisas.

Porém me lembrei de que Bruno Ernesto e Odemirton têm uma impressão digital muito peculiar e já bastante conhecida pelos leitores deste blogue do Carlos Santos. Decerto o embuste seria facilmente notado. O mesmo poderia acontecer a qualquer um deles assinando uma crônica minha, cuja impressão digital não expõe uma vírgula sequer da leveza literária do Odemirton Filho nem dos bem narrados resgates históricos do Bruno Ernesto.

Essa literal troca de papéis ficaria menos crível do que uma cédula de cento e cinquenta reais. O jeito, então, é admitir que não tem jeito e me virar. O tempo está correndo e tenho prazo curto para realizar o serviço.

Isto porque o meu Editor, por motivo de viagem à Cidade Maravilhosa, quando marcará presença na Marquês de Sapucaí, pediu-me para adiantar a página que costumo produzir (no mais das vezes) apenas no início das tardes de sábado. Assim, com ou sem saco, com tesão ou sem tesão, retorno ao batente.

Hoje, entretanto, eu estava mais interessado em curtir um bom e bocejante ócio. Nada de leituras ou escrevinhar. Só ouvir um blues baixinho, preparar uma xícara daquele café de altíssima qualidade com que Elias Epaminondas me presenteou, deixar a casa à meia-luz, aproveitar o silêncio que (ao menos neste momento) os vizinhos me oferecem, travar o cadeado no portão e desligar o telefone.

Mais tarde, cerca de nove da noite, assistir a um filmezinho da Netflix com Preciosa ressonando sobre meu peito. A gatinha é um grude! Deus me livre de notícia de carnaval! Seja pela televisão ou internet. Gosto mesmo é da quarta-feira de cinzas. E de ouvir falar da ressaca etílica e financeira dos foliões.

Mas que Deus, o Todo-Poderoso, socorra os bolsos desses pierrôs e colombinas contritos.

E viva a quarta-feira de cinzas! Aleluia!

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 11/02/2024 - 04:32h

Inspiração para uma crônica

Por Odemirton Filho

Ilustração da Enciclopédia Humanidades

Ilustração da Enciclopédia Humanidades

Dia desses encontrei o doutor Roncalli Guimarães, colaborador do Nosso Blog, num restaurante à beira-mar, pelas bandas da praia de Pernambuquinho, na cidade de Grossos. Estávamos em mesas próximas, com o “marzão” à nossa frente, e, lá para as tantas, Roncalli me falou:

– “Uma paisagem dessa merece uma crônica, hein?”

Concordei e, desde então, fiquei matutando. Para escrever uma crônica basta olhar as coisas simples do cotidiano que, muitas vezes, não percebemos. Reunir-se com os amigos ou com a família, tomar um café, “tomar umas”, viajar, ir ao sítio, à praia; relembrar fatos do passado, ficar sozinho em casa, curtindo a nossa companhia, tudo é inspiração para uma crônica.

Toda vez que escrevemos mostramos um pouco de nossa alma, nossas poucas virtudes e inúmeros defeitos. Entregamos ao leitor um pouco do que carregamos na vida; dividimos ideias, momentos, alegrias, tristezas, lembranças, saudades.

Creio ser na simplicidade da vida que encontramos o que realmente tem valor. É tão prazeroso ficar ao lado de quem amamos; curtir a infância de nossos filhos, dos netos; vê-los crescer pessoal e profissionalmente; abraçar um filho que vem nos visitar; a felicidade de ter os nossos pais ainda vivos e, dentro das limitações naturais da idade, com saúde, tudo isso não tem preço.

Segundo o Dicionário online de Português, a crônica é um gênero literário que consiste na apreciação e narração pessoal dos fatos da vida cotidiana; cronologia, narrativa, prosa. Embora muitos a considerem um gênero menor, não vejo assim. De acordo com a professora Beatriz Resende, “as crônicas devem ser envolventes, sedutoras, comoventes, provocantes e divertidas”.

Além disso, recomenda-se usar um vocabulário simples. Observar os detalhes que muitas vezes passam despercebidos, deve ser a marca da crônica. O leitor deve encontrar familiaridade ao ler o texto, refletindo, muitas vezes, o que também viveu e sentiu, acompanhado uma narrativa leve, que faça bem a sua alma, suavizando o corre-corre do cotidiano. Todavia, cada cronista tem o seu estilo, o que devemos respeitar.

Pois é, meu caro Roncalli, a sua pergunta inspirou-me. Devemos ter cuidado para não deixar passar sem perceber as coisas simples da vida que são, na verdade, extraordinárias.

Valeu pela dica.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
domingo - 04/02/2024 - 15:48h

Lembranças de um pretérito imperfeito

Ilustração Psicoonline

Ilustração Psicoonline

Por Odemirton Filho

De vez em quando, ao encontrar um dos vários leitores deste Blog, tenho uma grata surpresa. Alguns me dizem que leem minhas crônicas, e gostam de lembrar fatos do passado que, aqui ou acolá, trago a este espaço. Segundo me dizem, revivem um pouco a infância e juventude.

Como sabemos, o ato de escrever não é fácil. Contudo, para não faltar ao nosso compromisso dominical com os leitores, buscamos no fundo da alma algo que faça despertar bons sentimentos e lembranças, quiçá algumas saudades.

Ora, até o nosso querido escritor Marcos Ferreira, vez ou outra, diz que enfrenta uma peleja medonha para escrever, imagine. Só que Marcos, mesmo quando afirma estar sem inspiração, consegue escrever de modo genial. De minha parte, entretanto, procuro resgatar aquilo que vivi, pois, além de lembrar bons momentos, sei que muitos dos fatos coincidem com o que foi vivenciado por alguns leitores.

Por vezes, nas conversas com os meus pais, procuro saber sobre o passado. E vejo que seus olhos brilham ao lembrar das festas do Clube Ipiranga e da ACDP; quando falam sobre o Cine Jandaia, o Cine Cid, o Caiçara, o Cine Pax; dos carnavais de tempos passados. Meu pai lembrou do Pavilhão Vitória e da lanchonete de seu Fenelon, na qual se servia a famosa “bananada”; do restaurante Umuarama e da sorveteria Oásis. Falou-me que, quando criança, brincava no horto florestal e tomava banho no rio Mossoró, à época, não poluído.

Entre os momentos dos quais me lembro, vem à memória o forró chique na ACDP, as festas da AABB, o Clube Realce, o Ferrão, o Burburinho, as vaquejadas nas cidades circunvizinhas, a pizzaria de Patrício português, a sorveteira do Juarez, os vesperais no Cine Pax, os comícios no largo do Jumbo e da Cobal. Além das brincadeiras com os meus primos na casa de nossos avós; das brincadeiras com os amigos no patamar da igreja de São Vicente e do veraneio na praia de Tibau, onde vivi doces dias da minha infância e juventude.

Por outro lado, não devemos ficar remoendo o que passou; “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Das lembranças de um pretérito imperfeito que todos vivemos, talvez, seja de bom tom extrair lições para não cometermos os mesmos erros. O edificante, creio eu, é carregar no peito boas lembranças e algumas saudades para aquecer o coração.

Para mim, lembrar fatos do passado é ver a fotografia da nossa vida, feita de ângulos diversos, certos ou errados. Sendo assim, transcrevo algumas palavras de um texto rabiscado por mim e publicado neste Blog, em 2018:

O passado sempre visita o presente na vã tentativa de reviver. Esqueçamos o pretérito imperfeito. Resgatemos, do passado, somente os melhores momentos.

Agradeço, de coração, aos leitores que embarcam comigo nessas viagens aos tempos de outrora.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 04/02/2024 - 07:28h

Sinal de fumaça

Screenshot_2024-02-04-08-31-24-056_com.google.android.gm-editPor Marcos Ferreira

Querido amigo João Bezerra de Castro, saudações.

Desejo que esteja em paz e gozando de plena saúde.

Dou a mão à palmatória. Sei que estou em falta com você e com os nossos amigos e leitores, com os quais você gentilmente compartilha minhas crônicas domingueiras. Lamento pelo silêncio e falta de, ao menos, um sinal de fumaça. É muita coisa por aqui me roubando tempo e o pouco juízo que me resta.

O psiquiatra mexeu outra vez nos meus remédios; o neurologista decretou a volta do Rivotril. Passo a manhã quase toda fora de combate, hibernando, chapado. Não assumo compromissos nesse período. Exceto por força de um exame de sangue (naturalmente em jejum) ou por consulta médica que não consigo agendar para o horário da tarde. Existem ainda, afora a minha torturada escrita, os afazeres domésticos. Pois é. Parodiando o marketing daquela ex-primeira-dama da República, também sou recatado e do lar. Falta-me só a beleza física, mas isso é problema do espelho.

Tenho esse vínculo com o reputado blogue do Carlos Santos aos domingos, algo que valorizo bastante e que Natália não aceita desculpas de que estou sem a verve necessária, contudo eu lhe digo que atualmente o meu maior ardor nas letras é aquela literatura de ficção mais complicada: romances e contos.

Como não disponho de meios para bancar meus “best-sellers” confinados no notebook (pagar o serviço do diagramador e do capista, mandar imprimir essas produções em uma gráfica bacana), resta-me o peneirão de prestigiosos concursos literários do País para obras inéditas. Sim, amigo, eles existem. Mesmo em municípios muito menores que Mossoró e Natal. Então, além de publicar o livro vencedor, os certames nacionais costumam oferecer um bom prêmio em dinheiro ao literato.

Sabemos que ninguém, em raríssimos casos, assegura o pão de cada dia apenas escrevendo livros. Isso não quer dizer, todavia, que devemos silenciar, meter o rabo entre as pernas, e não cobrar dos governantes, dos gestores, ações que fomentem e promovam a produção e o engrandecimento da arte da palavra.

Neste RN de políticos (salvo exceções!) arrivistas e avarentos, donos de um vernáculo obtuso e uma lábia poderosa, não existem concursos literários. E quando aparece algum é oferecendo nonadas, mixaria, troféus e medalhas ordinários, pedaços de cartolina com uma suposta distinção de honra ao mérito. Vergonha! Mesquinhez! O escritor precisa ser recompensado na alma e também na carteira.

É isso, amigo João. A literatura, como outros ramos de arte, resistirá sob paus e pedras. Porque seguiremos escrevendo e escrever é preciso. O resto que se dane futebol clube. Eis agora um sinal de fumaça para você e nossos amigos Bernadete Lino, Francisco Nolasco, Evandro Agnoletto, Marcos Campos, Vânia Granja, Gilberto Monteiro, Raimundo Gilmar, Israel Carvalho, João Bosco Costa, Nivaldo Caravina, Julimar Mendonça e Fernando Costa Filho. Desculpe se me esqueci de alguém. Porque minha memória tem a durabilidade de um Sonrisal num copo d’água.

Fico por aqui. Já são quase cinco horas desta tarde de sábado e nem comecei a escrever a crônica de amanhã. O pior é que estou sem assunto. Acho que vou falar sobre a coqueluche do Big Brother. Melhor não tocar nesse vespeiro. Deus me livre! A lavagem cerebral foi muito bem-feita e é irreversível.

Depois eu mando outras fumacinhas.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 28/01/2024 - 09:04h

Direito, séries e seriados – a emoção

Por Marcelo Alves

Fotomontagem/Arquivo

Fotomontagem/Arquivo

Como descobri por meio de Julio Cabrera e de sua obra “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes” (Editora Rocco, 2006), há aspectos bastante sutis que militam em prol das séries e dos seriados de TV como meios adequados para o tratamento do direito. Uma assertiva constante do citado livro é a de que, para se apropriar de um problema filosófico – e, no nosso caso, de um problema jurídico –, “não é suficiente entendê-lo: também é preciso vivê-lo, senti-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais de sustentação são afetadas radicalmente”.

De fato, há frequentemente um componente “experiencial”, relacionado às nossas histórias de vida, que nos torna mais ou menos sensíveis e engajados a uma questão jurídica. Em não sendo possível viver todas as experiências, o cinema/TV, com a sua dramaticidade, que nos faz “viver” a questão contada, pode nos ajudar no desenvolvimento dessa sensibilidade, nos fazendo apaixonar por uma tese ou por toda uma temática jurídica. Nas séries e seriados jurídicos somos mais do que espectadores da história/estória. Quase participamos da trama. Sentimos medo, raiva e alegria. E há os dilemas éticos e morais. O que faríamos no lugar da personagem X?

É verdade que a temática jurídica ajuda bastante. Como tenho seguidamente dito, as questões judiciais geralmente envolvem dinheiro, violência, sexo, pessoas ilustres, o que, sabemos, é algo que sempre atiça a nossa curiosidade e nos faz, muitas vezes, tomar o partido de X ou Y. O crime em si, do mais banal ao mais grave, normalmente chama a nossa atenção. A perversidade do crime praticado é suficiente para, sem o acréscimo de qualquer recurso dramático, emprestar emoção a uma série ou seriado. A personalidade do criminoso, assim como a sua conduta antes e depois do crime, é também motivo de interesse.

Temos ainda a própria teatralidade dos operadores do direito – policiais, juízes, jurados, promotores e advogados: a atmosfera de uma corte de justiça em pleno funcionamento é tensa e ao mesmo tempo encantadora. De fato, a mise en scène do processo penal, em alguns casos, assemelha-se a uma tragédia grega. Já a busca pela justiça, que é uma busca pela verdade, sempre envolve angustia. E até a execução da pena, na trágica realidade carcerária existente mundo afora, é marcadamente perversa para invariavelmente nos tocar fundo.

Ademais, atualmente há uma certa tendência de os seriados jurídicos contarem suas estórias com um toque de humanismo. Um grande sofrimento ou injustiça prévia pode até explicar/justificar o comportamento do seu anti-herói. E, claro, abordam, mesmo que lateralmente, questões atualíssimas, como igualdade e justiça social, gênero, classe, raça e por aí vai.

Mas, para além disso, a verdade é que o cinema e a TV possuem linguagens mais adequadas que a linguagem da escrita, sobretudo a nossa enfadonha escrita técnico-jurídica, para expressar as nuances, intuições e elementos afetivos que permeiam – e assim deve ser – o direito.

Como explica Julio Cabrera, diferentemente da letra fria da lei e dos manuais de direito, os conceitos-imagem do cinema (e da TV), por meio da “experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc.”

Ilustração da página Direito ao cinema

Ilustração da página Direito ao cinema

Veja sequência de crônicas sobre esse tema

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Leia tambémDireito, séries e seriados – uma paixão

Leia tambémDireito, séries e seriados – vale a pena?

A produção cinematográfica/televisiva tem um potencial cognitivo e persuasivo não só pela informação objetiva que transmite, mas também – e muito – pelo seu componente emocional. É o que Cabrera chama de abordagem “logopática”, lógica e pática ao mesmo tempo.

Boa parte disso – falo da dramaticidade que nos envolve e da emoção que nos toca no cinema e também perante a tela pequena – está relacionada aos recursos técnicos pertinentes a tais artes visuais, como a pluriperspectiva, a capacidade de manipular tempos e espaços, o corte cinematográfico, os chamados efeitos especiais etc., que superpontencializam, para o espectador, os dados sensoriais da vida real.

E sobre esses recursos técnicos, devidamente ilustrados com a querida série “Cold Case” (2003-2009), falaremos na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London (KLC) e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANRL)

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domingo - 28/01/2024 - 08:24h

Concórdia

Por Bruno Ernesto

Igreja de São Pedro, Zurique/Suíça (Foto: Bruno Ernesto)

Igreja de São Pedro, Zurique/Suíça (Foto: Bruno Ernesto)

Não é de hoje que há determinados temas que devem ser abordados de forma cautelosa, tais como futebol, política e religião.

Como é natural, cada pessoa tem suas preferências, convicções e posicionamentos ideológicos. Algo que beira a cosmovisão, ou seja, a forma que determinado indivíduo enxerga o mundo.

Essa tríade tem um potencial enorme para desencadear sentimentos antagônicos, beirando o radicalismo e, em certas ocasiões, o extremismo.

Sou um profundo admirador de quem respeita a opinião do outro, embora discordando do ponto de vista de seu interlocutor, afinal, todos nós temos o direito de acreditar em algo e ninguém tem o direito de impor ideias, opiniões e crenças a ninguém. E quando impõe, a história tem inúmeros registros de verdadeiras revoluções mundo afora.

Decerto que as questões relacionadas à convicção e práticas religiosas sempre enfrentaram e continuam enfrentando, um grande desafio.

Atualmente, é corrente o debate e constatação de que as designações religiosas vêm, cada vez mais, perdendo espaço em meio a debandada de fieis e o surgimento de uma geração pouco afeita às práticas religiosas, embora não se julguem ateus.

Há quem procure abordar temas espinhosos, do ponto de vista artístico e literário, de modo a lançar uma análise ou mostrá-lo sob uma outra perspectiva, diferente daquela que é comum de observarmos.

Veja, por exemplo, que a sátira é o estilo literário mais utilizado para fazer esse tipo de abordagem, que nada mais é, ao final, que uma maneira de se fazer uma crítica aos costumes sociais em forma de ironia e sarcasmo, beirando por vezes a comédia, mas que, no fundo, aborda um tema espinhoso e delicado.

Esse estilo remonta à Grécia antiga, e com as redes sociais, explodiu na forma de memes e pequenos vídeos e que, certamente, você já deve ter repassado para alguém conhecido. Nem que tenha sido na forma de uma figurinha de WhatsApp.

No Brasil, um clássico desse estilo é o Auto da Compadecida, de autoria do paraibano Ariano Suassuna, que, apesar de ter sido um homem bastante religioso, não deixou de lançar mão desse estilo literário, quando condicionou o recebimento da herança da cadela ao seu enterro com exéquias em latim.

Na década de 1960, surgiu o grupo de comediantes inglês chamado Monty Python, que produziu uma série de vídeos e filmes, abordando temas sensíveis, como filosofia e religão, dentre os quais, o filme “A Vida de Brian” (1979), uma sátira bastante ácida sobre o cristianismo, na qual o jovem Brian, nascido no mesmo local e período de Jesus Cristo, foi confundido com o verdadeiro messias, e que na época de seu lançamento gerou grande repercussão e reações dos cristãos.

Para quem se interessar e quiser assistir ao filme, o mesmo está disponível na íntegra no YouTube na versão dublada do estúdio Maga, que pode ser acessado por este link: //www.youtube.com/watch?v=Cv3qr1yD0Ao&t=76s  .

A intolerância religiosa que se espalha nas redes sociais hoje, e que antes parecia bem distante de nós e de pessoas do nosso convívio, em verdade, apenas deixou de ser velada, passando a ser tangível, de certa forma, o que tem causando bastante espanto, independentemente da religião que se professe, ou mesmo naqueles que sequer são adeptos a alguma prática religiosa ou mesmo num ateu.

Um episódio que gerou bastante repercussão em Mossoró, ocorreu no ano de 1886, três anos após o Ministro evangelista norte-americano, Dr. De Lacy Wandlaw, primeiro missionário protestante celebrar um culto na cidade, ter retornado à Mossoró.

Após a primeira celebração protestante em Mossoró, no ano de 1883, com o casamento de Ricardo Vieira do Couto com Maria Tereza Davina de Jesus, em 1885, efetivou-se instalação da congregação religiosa da igreja presbiteriana na cidade, sob o comando de João Mendes, que passou a ser hostilizado pelos locais, chegando, inclusive, a ponto de o telhado da casa do ministro evangelista, por diversas vezes, ter sido apedrejado por radicais, fanáticos, desocupados e até por ateus.

O ponto máximo da intolerância, se deu em 1886, como acima dito, quando o evangelista norte-americano, Dr. De Lacy Wandlaw, tendo retornado à cidade de Mossoró para assumir a igreja presbiteriana local, também passou a ser hostilizado, tal qual seu antecessor.

Diante da situação, formou-se um grupo que, em resposta às hostilidades, aguardaram mais um ataque ao telhado da casa de Dr. De Lacy, para revidá-lo.

Entretanto, ao invés de pedras, revidaram com disparos de armas de fogo, e mesmo que o embate daquele dia não tenha deixado ninguém de corpo ferido, a confusão pôs fim às hostilidades crescentes, reinando, até hoje, a concórdia em Mossoró, ficando esse infeliz episódio apenas nos registros históricos.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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domingo - 28/01/2024 - 07:46h

O café-soçaite no Beco das Frutas

Por Marcos Ferreira

Ilustração Web

Ilustração Web

Outra vez, falhando em uma disciplina que almejo, deixei esta moita pornográfica, indecente, ficar deste tamanho. Aqui estou (carrancudo) parecendo com o rosto de um porco-espinho. Invejo, até certo ponto, aqueles indivíduos de carinha andrógina, sem barba nenhuma. Às vezes, quando muito, exibem uns fios ralos, finíssimos, quase imperceptíveis. Admiro os sujeitos que, diariamente, como cumprissem uma promessa inquebrável, enfrentam o espelho, fazem um pouco de espuma, dão de garra da navalha e raspam a cara de novo, eliminando vestígios dos pelos.

Os meus heróis da resistência (a pouca telha que me resta) também carecem de uma poda cuidadosa, cirúrgica. Preciso ir ao Beco das Frutas, entregar-me aos cuidados do senhor Fernandes, e readquirir as feições de um ser humano. O salão é de primeira. Aí está o poeta Aluísio Barros que não me deixa mentir. Há mais ou menos dois meses me deparei com Aluísio no referido espaço. O poeta, agradável e gentil como sempre, avaliou o meu jeitão pé-na-cova, falou que estava sem pressa e me convenceu a ficar com a vez dele. Isto é, fui inserido no atendimento preferencial.

Recordo bem que era uma tarde de segunda-feira. Guardo essa lembrança porque foi justamente quando (embora eu não saiba dizer qual santo baixou em mim) resolvi fazer uma caminhada. Então, me fiando nos meus cambitos, coloquei uma roupinha apropriada, calcei o meu único e malhado par de tênis, deixei o Conjunto Walfredo Gurgel e desci a Presidente Dutra na contramão. Cheio de gás!

O meu plano era mesmo aproveitar a viagem e cuidar das fuças. Então prossegui avenida abaixo. Dessa forma, compensando o meu frágil condicionamento físico, utilizei-me da ladeira. Porque descendo todo santo é puxa-saco. Ao fim e ao cabo, sem querer contar vantagem, mas contando, cheguei ao meu destino. Consciente, no entanto, de que o retorno seria através de um telefonema para o número 192: o velho e bom Samu. Como raras vezes acontece, o salão estava quase que vazio.

Depois do cabelo cortado e da barba feita, animei-me, recobrei as forças e fui parar na TecMicro, loja e oficina de informática dos amigos Nilson e Marquinhos Rebouças, situada na Alberto Maranhão, defronte do ginásio de esportes. Riram bastante da minha aventura e ousadia, mas arrumei uma carona com eles.

O senhor Fernandes, ao lado da sua equipe de mulheres, todas reconhecidas profissionais da beleza, oferece tudo o que um salão de responsa deve oferecer. O corte de cabelo (ao menos o masculino) custa dez reais. A barba, vinte. Não é, portanto, algo para quem quer; é para quem pode. Ignoro os preços dos demais serviços. O que sei é que a alta-roda mossoroense só pisa naquele beco a fim de melhorar o visual. Ali, em meio ao cheiro das frutas e ao ruído do comércio, encontramos destacadas figuras do âmbito político, empresarial, literário e religioso desta cidade.

É no Beco das Frutas, de segunda a sábado, onde muita gente cuida da aparência e da autoestima. Só não revelo o nome do estabelecimento para não abespinhar marqueteiros, publicitários, relações-públicas e colunistas sociais, dignos arautos da honra, solidez e glória do café-soçaite destes confins do mundo.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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