Por Clarissa Paiva
Já me perguntaram isto muitas vezes. Certamente posso dizer que é um alívio. Não me refiro à localização geográfica, mas aos contextos. Aqui não há contagem do Observatório da Violência Letal Intencional do RN (OBVIO) – a coisa que eu mais detestava anunciar por toda dor que representa. Não há sequer registro de assalto. Aqui não há chacina, perseguição… Não há medo (não desse gênero).
No paraíso trabalhamos de rasteirinha, sem botox nem pranchinha – e de shorts; mas, sim: nossa como tem trabalho! Imagine o peso de manter tudo bem, tudo lindo, como o paraíso deve ser. Pronto. Já sabe que é meio impossível com a nossa presença humana, né?
Infelizmente, ou felizmente, hoje não é preciso merecer o paraíso. Basta ter dinheiro suficiente. Aí é que “o bicho pega”. Há portas que o dinheiro não abre; e se arromba, não consegue recompor. Dinheiro não altera o ritmo da vida natural nem ressuscita passarinhos que, em todo o planeta, só existem aqui (coisas de paraísos).
Dinheiro não reconstrói recifes de corais cirurgicamente esculpidos pelos dentinhos de budiões coloridos, nem poderia pagar o cachê dos mais de 100 golfinhos rotadores vistos diariamente por aqui.
Estamos em Fernando de Noronha, um arquipélago com 21 ilhas, ilhotas e rochedos num espaço a perder de vista em pleno Oceano Atlântico, com 26 km² de extensão. A principal ilha ocupa cerca de 91% desse território ultramarino. Daqui, o ponto mais próximo no continente brasileiro é Natal, a 360 km.
Voltando ao trabalho no paraíso, dinheiro também não paga. Com um custo de vida a peso de euro, o salário comum ao continente se evapora a cada refeição. Mas, coube a mim somar na comunicação por eles e elas: praias, ilhas e ilhotas , flora e fauna do único arquipélago oceânico brasileiro a ter funcionamento de cidade (com mais de 5 mil habitantes!).
Hoje, na Comunicação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio Noronha) – órgão federal responsável pelas Unidades de Conservação que cobrem toda a Ilha, eu me sinto profundamente grata. Sem esse trabalho, eu talvez demorasse a entender a importância dessa autarquia que muitos imaginam ser não-governamental.
Sem Noronha não teria conhecido nomes incríveis da conservação e das artes. Isso jamais teria acontecido!
Por aqui, dizem que a Ilha escolhe quem fica. Sou merecedora disso, e sei desde o primeiro minuto. Posso até dizer que nós sabemos: eu e os que ficaram e ficam. Só esses sabem o preço. Nada em minha vida profissional poderia se igualar à responsabilidade que adquiro hoje – o que é desgastante para mim que sofro de ansiedade fulminante. Às vezes é como estar em Lost, às vezes é como estar no céu sem ter morrido.
Não sei se até aqui consegui expressar algo parecido com o que eu vivo em função do trabalho na ilha mais sonhada do Brasil; nem sei se ficou entendido o desapego que é morar em alojamentos compartilhando ainda que não queira a sua vida pessoal com dezenas de outros.
Ainda falta o básico, a começar pela internet razoável e um computador compatível – o que temos que compensar de forma pessoal. Mas, ah! Como isso é mínimo… Faria tudo igual, mil vezes, sem hesitar (aquele tão falado propósito, sabe?)
Não sei quanto tempo ficarei aqui, mas sei que eu e essa Ilha cheia de gente extraordinária seremos sempre boas amigas, daquelas que nem alzheimer faz esquecer.
Reconheço, Carlos Santos: não dá mesmo para responder tecnicamente à pergunta inicial que você me fez, cobrando-me em texto para seus webleitores e webleitoras, uma resposta. Espero, ao menos, ter deixado cada um com vontade de preservar os paraísos que encontrar por aí.
Eles custam bem caro, num valor que não conseguiríamos estimar.
E melhor: podem estar mais perto do que imaginamos.
Clarissa Paiva é jornalista desde 2004, servidora terceirizada do ICMBio em Fernando de Noronha e redatora do podcast “Fala, Noronha”