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domingo - 16/06/2024 - 07:44h

Linhas póstumas

Por Marcos Ferreira

Paulino Duarte Morais, o "Paulo Doido", faleceu no último dia 22 (Foto: redes sociais)

Paulino Duarte Morais, o “Paulo Doido”, faleceu no último dia 08 (Foto: redes sociais)

Tenho para mim que o nosso poeta Aluísio Barros já disse tudo de prosaico e honroso. Refiro-me a uma merecida e bonita homenagem ao senhor Paulino Duarte Morais, que Mossoró conhecia (continuará a conhecer) pela notória alcunha de Paulo Doido. É isso mesmo. Acredito que Aluísio escreveu uma bela página em memória de Paulo. O texto foi publicado, se não me engano, no Facebook.

Paulo, cuja natureza de loucura sempre me pareceu um misto de urbanidade, inocência e pacatez, deixa um vazio irremediável. Pois, em relação a um louco deveras autêntico e benquisto, estamos gravemente desfalcados.

Duvido que exista ou tenha existido outro como ele. Claro que não conheço a história de Mossoró como, por exemplo, Marcos Pinto, Rocha Neto, Bruno Ernesto ou Odemirton Filho. No meu ponto de vista, portanto, nunca tivemos um doido oficial do calibre e estima do já saudoso Paulino Duarte Morais.

Ao contrário de mim, ressalto, Paulo era um doido legítimo. De tão liberto, de tão expansivo em suas doidices inofensivas, nem sei dizer se tomava remédios, se frequentava algum alienista deste mundo louco em que vivemos. Talvez o Dr. Roncalli Guimaraes, profissional do ramo, saiba alguma coisa a esse respeito. Mas acho que não. Paulo não tinha jeito de quem fazia uso de psicotrópicos.

Era livre, estável e feliz com sua loucura andarilha. O Centro de Mossoró, sobretudo, apesar dos esforços do prefeito Alysson Bezerra, que tem caprichado na ornamentação junina, agora está um negócio meio morto.

Por acaso, mexendo ontem em textos mais antigos, descobri que em 2021, precisamente no dia 4 de julho, foi publicada aqui no Blog Carlos Santos uma crônica minha intitulada “O portão”. Nesse ensejo, de relance, faço uma breve referência a Paulo Doido. Foi a primeira e única vez, salvo engano, que escrevi algo sobre o personagem em destaque. Agora, com atraso, vêm estas linhas póstumas.

E agora? O que será de Mossoró e de sua fria sanidade sem a loucura mansa e risonha de Paulo Doido? Não quero nem imaginar.

Marcos Ferreira é escritor

Leia também: Após vários dias intubado “Paulo Doido” morre no Tarcísio Maia.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 16/06/2024 - 05:20h

No tempo de Deus

Por Odemirton Filhocorreria, trânsito, pessoas, faixa de pedestre,

“Para tudo há uma ocasião certa; há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de colher o que se plantou”. (Eclesiastes 3:1-8).

Assim é a vida. Tenho esse versículo bíblico como um dos meus princípios. No tempo certo tudo ocorrerá. Ou não. Para quem espera no Senhor, no tempo de Deus, o que tiver de ser, será. A vida açodada na qual vivemos nos leva para o imediatismo. Queremos para ontem aquilo que somente virá amanhã.

No mundo no qual estamos inseridos, a correria é uma constante. São múltiplas as obrigações para dar conta; o trabalho, o estudo, a família, “o social”, levam-nos a uma vida agitada, repleta de compromissos. Queremos atender a tudo e a todos.

Quando chegarmos ao entardecer da vida as consequências virão. Tomaremos remédios para recuperar uma saúde debilitada pelo estresse e pela correria do dia a dia. Vale a pena? Faça o leitor a sua reflexão.

É claro que devemos lutar pelos nossos objetivos, pela concretização dos nossos sonhos, não devemos ficar acomodados, “com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”, porquanto a vida exige atitudes e batalhas diárias.

Aliás, há uma história interessante, escrita por Liev Tolstói, que passo a narrar para o leitor:  Havia um homem que, no desejo de amealhar uma grande quantidade de terras, caminhou por um longo período, sem parar, pois, a terra que ele percorresse antes do pôr do sol, seria de sua propriedade.

“Ele corria, a camisa e a calça ensopadas de suor grudavam em sua pele, a boca estava seca. Os músculos trabalhavam como o fole de um ferreiro, o coração martelava dentro do peito, e as pernas pareciam se mover como se não lhe pertencessem. O homem foi dominado pelo terror de morrer de tanta tensão”.

O homem, sentindo que não chegaria antes do sol chegar na borda do horizonte, gritou: “há muita terra, mas Deus permitirá que eu viva nela? Eu perdi minha vida, perdi minha vida!  Nunca chegarei…”

E morreu.

Algumas pessoas que ali estavam, pegaram uma pá e cavaram uma sepultura de tamanho suficiente para que o homem coubesse deitado lá dentro, e o enterraram. Um metro e oitenta, da cabeça aos pés, era o que bastava.

Pois é, não adianta correr. Tudo acontecerá no tempo de Deus.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 09/06/2024 - 11:08h

Liberté

Por Bruno Ernesto

“A Liberdade guiando o povo”, de Eugène Delacroix, no Museu do Louvre

“A Liberdade guiando o povo”, de Eugène Delacroix, no Museu do Louvre

Tal qual Ariano Suassuna, não gosto de estrangeirismos. Entretanto, utilizar o lema da revolução francesa convém neste texto, especialmente pelo fato de que ela é um marco para a liberdade individual que, até hoje, podemos desfrutar; embora, claro, a deusa da liberdade não esteja tão cintilante como na famosa tela pintada por Eugène Delacroix, que a retratou em comemoração à Revolução de Julho de 1830, após ser testemunha ocular da revolução que culminou com a queda de Carlos X.

Consta na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, resultado da Revolução Francesa, que a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem.

De forma simples, direta, e em vernáculo claro: a sua liberdade acaba quando encontra o direito do outro.

Entretanto, caro leitor, há outra forma de liberdade que muitas vezes é relevada e, por vezes, terrivelmente combatida por cidadãos de bem, na esperança de que o caminho da paz e da concórdia depende da compreensão ao próximo e do respeito à lei.

Em outras oportunidades, registrei que uma das coisas que mais admiro são o sarcasmo e a ironia. Especialmente em forma de charge e tirinhas, pois nos permite ter um grau de liberdade para fustigar o debate, ou mesmo a reflexão, sobre qualquer tema, sem que desperte ódio visceral em quem não esteja disposto a enfrenta-lo de uma forma tão direta; e se o tem, o autor tem a liberdade de propor a forma inicial de como será debatido ou refletido.

Lembre-se, contudo, que as revoluções, seja ela qual for, historicamente, não podem contar com a compreensão do próximo, e que foi na praça da Concórdia, em Paris, durante a revolução francesa, que foi instalada a guilhotina.

Quem não conhece o adágio popular de que a educação de casa vai à praça? Pois bem. O próximo, a que me refiro, é o opositor; pois até mesmo a contracultura é revolucionária por essência, se não por atos, mas por outras formas.

Aqui no Brasil, temos o famoso lema da Inconfidência Mineira, “Libertas quae sera tamen”, que embora seja erroneamente traduzido como “Liberta que será também” significa em verdade, “Liberdade, ainda que tardia”, e que também traduz o sentimento de que é melhor ter um instante, ainda que final, de liberdade, que morrer sem tê-la.

Ora, no mundo em que vivemos, podemos ver uma série de situações nas quais alguém diz que fulano é sem paciência, pavio curto, incompreensível e agoniado.

De modo contrário, há quem diga que beltrano é calmo demais; passivo demais; nunca foi visto perdendo a paciência.

Quando escuto alguém falando essas coisas, pondero ambas as situações.

Quem nunca perdeu a paciência uma vez na vida não é normal. Ninguém é pacífico e passivo ao extremo, de forma a jamais ter saído da linha, perdido a compostura, ter rodado a baiana, ou blasfemado.

Desculpe-me, não acredito nisso. E nem precisa se dar ao trabalho de me convencer, pois todo mundo tem uma vida pública, particular e uma secreta.

O que pode ocorrer, acredito, é que se dê apenas numa frequência menor que o habitual das pessoas tidas como pavio curto.

Entre uma xícara e outra de café, num descontraído bate-papo, ainda há quem se espante quando digo odeio positividade tóxica, e que vez ou outra é bom viver o caos.

Se numa roda de conversa alguém se lamenta a dizer que não quer dar trabalho para morrer e que morte é um problema para os familiares providenciar o enterro, eu digo que quero morrer no dia mais inconveniente possível, de preferência numa véspera de feriado e na boca da noite.

Aos que se espantam e não compreendem, em arremate, digo mais: não há nada mais libertador de que mandar uma pessoa ir para aquele canto. Nem que seja de maneira elegante e com urbanidade. Se é que pode ser feito de tal forma; embora a vontade seja utilizar linguagem coloquial, para não se dizer outra. Há quem mereça, pode acreditar.

Assim, embora a minha liberdade termine onde o direito do outro começa, como não gosto de estrangeirismos, prefiro o lema de nossa Inconfidência Mineira.

Liberdade, ainda que tardia. Experimente.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 09/06/2024 - 10:54h

Guia turístico

Por Marcos Ferreira

Praça Vigário Antônio Joaquim no Centro de Mossoró (Foto: Marcos Elias de Oliveira Júnior)

Praça Vigário Antônio Joaquim no Centro de Mossoró (Foto: Marcos Elias de Oliveira Júnior)

Seja bem-vindo. Esta é Mossoró, minha cidade. O ‘minha’, claro, é mera força de expressão; mais pertenço que possuo. Bom, eis a remota Mossoró, terra da liberdade, conforme apregoam há quase um século. Município este que, segundo a lenda, expulsou o destemido Lampião e justiçou o também cangaceiro Jararaca quando os fora da lei invadiram esta província lá pelos idos de 1927.

Particularmente, embora os doutores do cangaço torçam o nariz, não me orgulho nem um pingo dessa história de brabeza de Mossoró. No fim das contas, depois de tanta chuva de bala, os bandoleiros dominaram esta comuna na trincheira da cultura. Sim. Hoje ninguém mais fala nos resistentes, mas tão só no bando de salteadores. Olhe ali, por exemplo, o espaço denominado Arte da Terra: dois bonecos gigantes de Lampião e Maria Bonita bem na frente, dando boas-vindas.

Isto sem falarmos num Memorial da Resistência que não resistiu à tentação de oferecer mais destaque aos invasores do que aos defensores. Hoje em dia, sendo otimista, talvez apenas uma dúzia de nomes que defenderam este fim de mundo à época do ataque ainda seja lembrada pelos mossoroenses de um modo geral, como o então prefeito Rodolfo Fernandes. Pudera, trata-se do prefeito.

Outra coisa. Jararaca, ferido com um balaço e enterrado ainda vivo no São Sebastião, de acordo com alguns historiadores, foi alçado à condição de santo milagreiro pelo povo desta cidade e adjacências. É o que estou dizendo. O sujeito passou de facínora a santo da noite para o dia. A sua cova no São Sebastião é simplesmente a mais visitada no Dia de Finados. Já o túmulo do herói Rodolfo Fernandes, sepultado no mesmo cemitério, salvo exceções, ninguém sabe onde fica.

Aquele prédio imponente ali era o glorioso Cine Pax, ora transformado em loja de roupas. Foi inaugurado em janeiro de 1943 e funcionou por mais de seis décadas. Fechou de vez as portas no ano de 2008, se não me engano. Assisti a ótimos filmes nesse importante símbolo da vida cultural mossoroense. O ponto alto do fim de semana das pessoas do meu tempo era ver um filme no Pax.

Cuidado com a moto! Melhor subirmos na calçada. Nosso trânsito é um bicho traiçoeiro. Aqui não se pratica direção defensiva, mas predatória. Alguns donos desses carrões, sobretudo, só faltam passar por cima da gente. Parece até que eles têm aversão a pedestres, a ciclistas e motociclistas. Tipos arrogantes, tanto os condutores dos carrões quanto os motoqueiros. A maioria vira para um lado e para o outro sem ligar a seta. Em especial os referidos donos dos carros luxuosos.

Está quente, não? Pois bem, meu amigo. Mossoró, entre outras denominações, é a terra do calor, do siroco em tardes mormacentas como esta e de eventuais madrugadas com uma cruviana gostosa. Durante o inverno, quando há, é uma maravilha, apesar do Centro alagar com facilidade. As noites costumam ser bem aprazíveis, e os bairros periféricos ficam cheios de cadeiras nas calçadas.

Esta é a Praça Vigário Antônio Joaquim. Mas o busto do vigário se encontra escondido naquela pracinha ao lado da Catedral de Santa Luzia. Por incrível que pareça, a enorme estátua que você está vendo no centro da Praça do Vigário não é do vigário. Esse é um monumento em homenagem ao ex-prefeito desta urbe e ex-governador do estado Jerônimo Dix-sept Rosado Maia, que morreu no auge da sua promissora carreira política em um acidente aviatório no ano de 1951.

Como eu disse, ali é a Catedral de Santa Luzia, onde os fiéis curvam os joelhos com peditórios ao Todo-Poderoso. Em geral, apesar da nossa estatística de homicídios ser uma das maiores do planeta, o mossoroense é um povo religioso, com supremacia católica. Aqui predomina a política do olho por olho, dente por dente, contudo as pessoas morrem de medo de ir parar no Inferno. Então, como se buscassem uma espécie de habeas corpus celeste, correm para os pés de Jesus.

Vamos para o outro lado. Que calor, hein?! Mossoró não é para amadores, nem para turistas desavisados. Beba sua aguinha gelada, se ainda estiver gelada. Ali é o Mercado Central, primeiro shopping de Mossoró. Eu e meus irmãos ficávamos animadíssimos quando chegava o domingo e meu pai nos trazia, antes do sol raiar, para fazermos algumas compras no Mercado. Era uma festa!

Tempos idos e vividos. Tenho saudades de muita coisa daquela época, embora o pão fosse tão caro e a liberdade pequena, como no poema do Ferreira Gullar. Hoje, entretanto, o pão voltou a custar muito caro, e a liberdade vive sob constante ameaça, se me faço entender. Mas voltemos ao pujante Mercado de outrora. Fico com a boca cheia d’água só de me lembrar do pastel quentinho, feito naquela horinha, que a gente devorava com um copázio de vitamina de abacate.

Quando não era uma abacatada com pastel, traçávamos uma panelada com molho de pimenta-malagueta. O bucho ficava em tempo de espocar, e o suor porejava na testa. “Caiu na fraqueza”, dizia meu pai caçoando de mim e dos meus irmãos. De outra feita, menino já taludo, trabalhei algumas vezes no entorno do Mercado, pastorando as bicicletas da clientela para descolar uns tostões.

Agora quero lhe mostrar o Teatro Municipal Dix-huit Rosado, suntuosa construção que homenageia outro político da tradicional família Rosado e também ex-prefeito desta província, morto no ano de 1996. Jerônimo Dix-huit Rosado Maia (isso é algo fácil deduzir) é irmão do ex-governador Dix-sept Rosado, cuja impressionante estátua, como o senhor constatou, se encontra no meio da Praça do Vigário. Aí está, portanto, o Teatro Municipal, palco da cultura mossoroense.

Veja aquela casa de drinques do outro lado da rua, na Avenida Rio Branco. Ali, durante uns bons anos, funcionou a Livraria Café & Cultura. Lugar excelente, ponto de encontro da intelectualidade local. Escritores, jornalistas, poetas, historiadores, médicos, advogados, professores, juízes, arquitetos, artistas, enfim, toda uma constelação pensante ocupava as cadeiras e mesas da Café & Cultura.

Era uma livraria como hoje não mais existe neste município, administrada e mantida pela senhora Ticiana Rosado. Nesse endereço, permita-me a autopropaganda, fiz o lançamento da primeira edição do meu livro de poemas A Hora Azul do Silêncio, que contou com público expressivo. Foi no ano de 2006. Atualmente, ouso dizer, no tocante a uma livraria de verdade, com amplo acervo de autores e obras, disponibilizando um bom café para a clientela, estamos órfãos.

Bem, acredito que o senhor está cheio desse papo de letras. Vamos agora a um reduto não menos cultural e emblemático desta aldeia: o Alto do Louvor. Já ouviu falar no Alto do Louvor? Não?! Então, meu caro, apresentá-lo-ei, como diria, cheio de mesóclises, o missivista federal Michel Temer. Trata-se do berço recreativo e sifilítico deste fim de mundo. Mal comparando, vir até aqui e não conhecer o Alto do Louvor é mais ou menos como você ir a Roma e não ver o Papa.

Alto do Louvor é a nossa extinta zona de meretrício. Muitos dos nossos ilustres e respeitáveis homens (não foi o meu caso!) foram iniciados sexualmente nesse antro do amor remunerado. O antes glamouroso Alto do Louvor fechou as portas há muito, porém a lenda das suas casas de tolerância e mulheres de vida nada fácil sobrevive até hoje no imaginário popular como uma ferida benigna.

Beba mais água. O senhor está ofegante.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 09/06/2024 - 10:20h

Entre o som e o silêncio

Por Odemirton Filho

Ilustração Web

Ilustração Web

Há dias eu pensava em escrever uma crônica sobre o silêncio. Faltava-me, porém, inspiração ou talento para tal mister. Entretanto, após ler um artigo sobre o maestro João Carlos Martins, o caminho desanuviou. O artigo em tela falava sobre resiliência, de como o maestro conseguiu superar os limites impostos por uma doença e, com uma mão biônica, continuou a tocar piano. “Entre o som e o silêncio o necessário é a coragem”, disse.

A história do pianista me lembrou, ainda, de um livro que estou lendo, do escritor Rafael Gallo. O livro trata de um pianista virtuoso, o qual sofre um acidente quando estava na iminência de ser reconhecido como um dos maiores intérpretes do compositor húngaro Franz Liszt.

Pois bem. A palavra é prata e o silêncio é ouro, não é isso, meu caro editor? É no silêncio que encontramos o caminho a ser trilhado. Depois de estarmos em íntima reflexão com o nosso eu, talvez encontremos as respostas. Muitos falam demais, e escutam de menos, perdendo-se no vazio de suas palavras. Falar menos, escutar mais, é princípio de sabedoria.

“Existe no silêncio uma tão profunda sabedoria que às vezes ele se transforma na mais perfeita resposta”, disse o poeta Fernando Pessoa. Em certos momentos, ensarilhar armas, não é ato de covardia, ao contrário, é preparar-se para enfrentar batalhas que realmente valem a pena; observem como nas redes sociais existem discussões e comentários agressivos e desnecessários.

No decorrer da vida, o som dos nossos problemas nos impede de seguir adiante. Caímos aqui; tropeçamos acolá. O barulho do mundo nos afasta dos nossos propósitos, e deixamos de compor a letra da música da nossa vida. Nessas horas de balbúrdia, precisamos ficar em silêncio e ouvir a sinfonia da alma, sentindo o coração bater num lento compasso, à espera de respostas.

Não por acaso, diz a sabedoria popular: “a melhor resposta é o silêncio”. Discussões acaloradas nos levam a agir de forma impensada sem o necessário discernimento. Conduzir-se com prudência, medindo palavras e atitudes, sempre é de bom tom, apesar de nem sempre conseguirmos, pois, felizmente, ainda somos humanos. Todavia, é na toada do silêncio que temos as respostas aos nossos questionamentos e, sobretudo, paz de espírito, algo imensurável.

Lembrem-se das Sagradas Escrituras: “Até o insensato passará por sábio se ficar quieto e, se contiver a língua, parecerá que tem discernimento”. (Provérbios 17:28).

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/06/2024 - 09:52h

Rincão, 59.646-585

Por Bruno ErnestoCEP-59646-585-RINCAO

No último dia 26 de maio, após quase cinco anos da última vez que pude segurar a mão do meu pai, passei em frente à Capela de Santa Teresinha no intuito de organizar o aniversário do meu filho Pedro.

Estava fechada, mas, por um instante, parei ao pé da porta central da capela e lembrei daquele dia, o mais triste da minha vida, e, embora já tenha passado de carro inúmeras vezes em ali em frente, desde aquele dia não tinha posto os pés naquela calçada.

Apesar da saudade, a vida segue e ficaram as boas lembranças dele.

Há alguns meses compartilhei o registro da rua a qual foi denominada Rua Professor Francisco Ernesto Sobrinho, em homenagem ao meu pai, cujo registro junto aos Correios havia sido concluído com a designação do CEP.

Foi uma proposição do confrade da Academia de Ciência Jurídicas e Sociais de Mossoró (ACJUS), e vereador do município de Mossoró/RN, Professor Francisco Carlos, a quem, novamente e de público, agradeço em nome da minha família pela homenagem.

Após localizar a rua, constatei um fato curioso.

Quem conheceu meu pai, sabia de sua paixão pela Esam/Ufersa.

Lá graduou-se em Engenharia Agronômica no ano de 1972, sendo concluinte da segunda turma da recém-criada ESAM no ano de 1967.

Quando veio estudar em Mossoró/RN, morou num pequeno apartamento improvisado embaixo da caixa d’água que fica na entrada do campus Oeste da Ufersa, lá morando de 1967 a 1972.

Foi professor da Esam/Ufersa de agosto/1976 a janeiro/1996, quando, a contragosto, teve que requerer sua aposentadoria. Ele e muitos professores na época, pois as mudanças econômicas e administrativas pelas quais o país passava naquela acabou por antecipar a carreira de muitos servidores no país.

Não se fez de rogado e, no dia seguinte ao pedido de aposentadoria, foi para Esam como se nada tivesse acontecido.

Minha mãe estranhou, mas, sábia como é, sabia que ele só deixaria de ir à Esam/Ufersa em duas situações: se não tivesse condições físicas de ir (Leia-se, se o trancassem em casa), ou se já não estivesse nesse plano terrestre.

De fato, só deixou de frequentar a Esam/Ufersa em novembro de 2019, um mês e meio antes de falecer, em 13/12/2019.

Por obra do acaso – talvez não – a rua que leva seu nome está localizada no bairro Rincão, que, registre-se, fica ao lado da Esam/Ufersa, de modo que até o significado do nome rincão não foi suficiente para afastá-lo de lá.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 02/06/2024 - 08:18h

A conta está chegando

Por Marcos Ferreira

Foto extraída da Web

Foto extraída da Web

Talvez o colapso absoluto, o apocalipse total, ainda demore um século. Ou, quem sabe, bem menos do que isso. Não sei. O que sei é que a conta está chegando. Os cientistas estão carecas de nos alertar sobre essa questão.

Uma espécie de Zaqueu, antigo cobrador de impostos em Jericó, baterá à nossa porta. E, ao que parece, ele vem a galope. Trata-se de uma dívida que geramos e que não pode ser paga com nenhum cartão de crédito. Quando o sapato realmente apertar, quando chegar a hora da onça beber água, não mais será possível pendurar a despesa num prego, parcelar em prestações a perder de vista.

Este globo azul, nosso lindo planeta Terra, mostra-se de saco cheio, zangado. Já não tolera como antes tantas agressões e desumanidades da destrutiva raça humana. O Homem é essencialmente mau, pernicioso, um corpo estranho, um tumor que a Natureza decerto vai expelir.

Sim, há muita gente boa por aí, pessoas que agem de modo admirável, que respeitam e tentam fazer do nosso habitat um lugar melhor. Esses, infelizmente, são um tiquinho, uma gota de sensatez no oceano das maldades do bicho-homem. Chuvas diluvianas, furacões, fortes ondas de calor, terremotos e temperaturas glaciais surgem mundo afora. É isso. A conta está chegando com juros altíssimos e não temos como pagá-la. Gastamos até o último níquel de paciência da Natureza. Ninguém se engane, não suponham que este planeta será destruído. Não como se imagina.

O que está em avançado processo de extinção é a nossa permanência sobre a face da Terra. O planeta vai cobrar o que devemos, vai se livrar dos tumores que somos nós: a nociva humanidade. O desrespeito à fauna e à flora e a cobiça que nos leva a incontáveis e irreparáveis agressões ao meio ambiente não ficarão impunes. Não. Nada disso receberá indulto. O débito é astronômico e inegociável.

Não sou cientista nem religioso. Todavia tenho olhos com que ver e ouvidos com que ouvir. Os sinais estão às escâncaras. O derretimento dessa “geleira do juízo final”, por exemplo, é uma reação da Natureza entre o sem-número de consequências pelas quais teremos que responder. Aquelas suaves e inócuas palavras do sumo pontífice pedindo um cessar-fogo são um risco n’água. Ninguém (entenda-se Rússia e Israel) dá a mínima. Com as exceções já referidas, o Homem é o pior inquilino que habita a Terra. Sim. O ser humano é uma besta-fera falsamente civilizada. Sob as barbas e olhos das grandes e pequenas nações, o tirano da Rússia prossegue massacrando a Ucrânia. Idosos, mulheres e crianças somam a maior quantidade de mortos.

Em Gaza é ainda pior. Com sangue nos olhos e nas mãos, Benjamin Netanyahu, primeiro-demônio de Israel, também comanda uma guerra covarde contra a Palestina, genocídio que já resultou em milhares de mortos, civis inocentes, sobretudo (repito) mulheres, crianças e idosos. Enquanto isso os terroristas do Hamas, verdadeiros alvos do exército israelense, continuam vivinhos da silva.

O jumento é bom. O Homem é mau. É mais ou menos assim que dizia Luiz Gonzaga em uma de suas músicas de maior sucesso.

A Terra, como sempre, vai renascer do cataclismo. O mesmo não se pode dizer da espécie humana. É possível que não reste ninguém para repovoar este planeta. Nem mesmo os imortais das academias de letras, supostamente imorredouros. A hecatombe aqui abordada não representa uma simples crônica distópica. Não é mera distopia! E não acho que Deus ou Jesus Cristo moverá uma palha sequer para salvar a nossa pele.

O Criador também está de saco cheio. Tal coisa não é de hoje. Segundo as Escrituras, o Todo-Poderoso ficou transtornado e lavou as mãos desde aquele terrível dia em que crucificaram o Nazareno, o filho unigênito do Altíssimo.

As tragédias são brutais. As guerras e a fúria da Natureza têm se revelado piores do que em todas as etapas da era medieval. As superpotências bélicas e econômicas cairão de joelhos, as mãos erguidas para o Céu, pedindo clemência. Mas aí será tarde demais. Como diz o conto bíblico, haverá choro e ranger de dentes. Acho muito improvável que dessa vez surja um Noé com uma arca salvadora.

Se tal arca por acaso aparecer, creio que será (merecidamente) para resgatar um bocado de bichos ditos irracionais. Esses não têm culpa alguma no cartório planetário. E eu, que nem sei rezar, apenas aguardo nosso fim.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 02/06/2024 - 07:24h

Sempre é tempo

Por Odemirton FilhoDois caminhos, já teve, passado e presente, escolha, passado e presente, terra arrasada

Li um texto que dizia assim: “é na velhice que os fantasmas do arrependimento e da culpa costumam aparecer com mais frequência. Quando se chega a um tempo no qual o que ainda falta viver é muito menos do que o que já se viveu, o passado, as memórias e as escolhas que não foram feitas invadem o presente e exigem uma injusta prestação de contas para a qual dificilmente nos preparamos”.

Realmente, o passar do tempo nos faz refletir sobre o que vivemos. E fizemos. Não, não se trata de remoer o passado, pois este deve ficar devidamente guardado lá atras; é preciso virar a página do livro da vida, como se diz. No entanto, tenho certeza que a maioria de nós faz essa reflexão. Às vezes, nos perguntamos: e se tivesse enveredado por outros caminhos, a vida teria sido diferente? Fiz a escolha certa naquela ocasião? Enfim, são inúmeros os questionamentos, poucas as respostas.

Decerto, muitos devem carregar no peito uma ou outra culpa pelo que fez. Por vezes, uma atitude irrefletida nos leva para o abismo do arrependimento. Fazemos mea-culpa. Se dá para remendar o malfeito, ótimo, senão, resta-nos carregar pelo resto da vida o peso da culpabilidade. Para o Direito Penal, a culpabilidade é o juízo que se faz sobre a reprovabilidade da conduta do agente. Somos ao mesmo tempo, no tribunal de nossa consciência, o juiz, o promotor, o advogado e o réu.

Entretanto, não podemos conduzir a nossa vida carregando o peso de arrependimentos. A vida impõe escolhas, temos que decidir. Talvez, acertemos, talvez, erremos. Não importa. Faz parte da jornada. Porém, não dá para conviver com essa angústia. É preciso viver, pois o passado está morto, e o futuro é incerto. O que temos é o presente, porquanto a vida é um instante, dizem por aí.

Muitos acreditam na “lei do retorno”, uma vez que pagaremos os erros cometidos por aqui, não na outra vida, para quem acredita, claro. Colhemos hoje o que plantamos ontem. Semeamos amor ou ódio? Fomos bons filhos? Fomos bons pais? Cultivamos amizades? Fizemos o bem?

Quem sabe, não devemos esperar chegar ao crepúsculo de nossa existência para fazermos uma reflexão sobre o que estamos a fazer, mesmo porque não sabemos quando será o ocaso da vida. Creio que sempre é tempo para revermos valores, principalmente, atitudes.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 26/05/2024 - 20:30h

Hercílio Pinheiro, o gênio esquecido

Por Honório de Medeiros

Hercílio: pura arte

“Um dom dado por Deus”. Assim Seu Chico Honório começou a me falar de sua amizade com o grande cantador de viola e repentista Hercílio Pinheiro, de quem foi amigo pessoal, nascido em Luis Gomes, Rio Grande do Norte, no Sítio Arapuá, no dia 13 de novembro de 1918, e morto tão prematuramente em 9 de abril de 1958, aos quarenta anos de idade.

Hercílio, desde pequenino, versejava batendo em uma lata “desafiando” sua irmã. Cedo aprendeu as técnicas de sua arte através de Inocêncio Gato, com quem fez sua primeira cantoria. E cedo, também, veio morar em Mossoró, onde exerceu a atividade de locutor da Rádio Tapuyo até se entregar totalmente à viola.

Seu Chico recorda suas primeiras cantorias – com Antônio de Lelé, na casa de Zé Honório, em São João do Sabugi; com Justo Amorim, na casa de Cabo Palmeira, patrocinada por Zuza Patrício; com Chico Monteiro na fazenda de Sinhozinho Crisóstomo, a cinco léguas de Alexandria, todas tiradas a cavalo, no novenário de Santo Izidro.

Eu o deixo divagar mergulhado nas lembranças de quase setenta anos atrás. Ele, entretanto, não demorada a repetir: “Hercílio foi um dom de Deus.”

“Hospedei Hercílio e Dimas Batista em Mossoró. Hercílio era um homem correto, digno, honesto. Transpirava honestidade. Morreu dezessete dias antes de você nascer. Foi o melhor cantador de viola do Brasil em sua época. Respeitava todos seus companheiros, mas, os superava em muito.”

“A grande teima, naqueles anos, era qual dos dois cantadores era o melhor: Hercílio ou Dimas.”

“Houve um desafio célebre, na década de cinqüenta, entre os dois, um desafio real, não esses de hoje, onde tudo é combinado, que começou de tarde, varou a noite e ganhou a madrugada e somente parou por que o juiz da cidade – Taboleiro do Norte, Ceará – deu por encerrada a peleja, dando-a como empatada.”

“Hercílio era irmão de João Pinheiro e seu sócio no bar “Irmãos Pinheiro” aqui em Mossoró. Esse bar é tradicional ponto de encontro de comerciantes, políticos, advogados, ainda hoje, mas a maioria de seus familiares mora em Taboleiro do Norte, no Ceará. Hercílio tinha entre um metro e setenta e um a um metro e setenta e seis. Era muito magro. Branco, calvo, cabelos finos, usava óculos com grau muito forte porque era quase cego em conseqüência de uma miopia. Fumava cigarro de palha ou de fumo cortado.”

“Eu o conheci quando era chefe de trem na linha Mossoró-Sousa. Como era seu admirador, terminei fazendo amizade com ele por conta das viagens que ele fazia para ir cantar. Na verdade devo a Hercílio minha vinda para a Igreja Católica. Um dia, quando já estávamos perto de Mossoró, ele me perguntou: Chico, você já fez sua Páscoa? Respondi-lhe que nunca tinha me crismado nem feito Páscoa”.

“Ele me ofereceu os livros que eu tinha que estudar e me disse que ia me levar a Frei Luis. Esse Frei Luis era um terror. No dia seguinte fui me confessar com Frei Luis, a mando de Hercílio, e lhe disse que nunca tinha me confessado. Levei um grande carão e ganhei uma penitência de sete padres-nossos de joelho. Até que não foi muito pesada. A segunda confissão foi com Frei Damião. Hercílio foi quem encaminhou. Novo carão e novas penitências.”

“Quando Hercílio vinha a Mossoró eu já sabia: de manhã, lá pelas dez horas, nós nos encontrávamos e a outros amigos na Praça do Pax, para conversar sobre cantoria, repente, cantadores, viola.”

“Hercílio era muito admirado, entre outras qualidades, por ter o que os entendidos chamam de “pulmão limpo”, ou seja, sem pigarro, um canto claro e bonito.”

“Uma vez, não me contive: Hercílio, quem é o cantador que você teme em uma disputa? Não temo ninguém, respondeu. Aliás, continuou, não disputo com ninguém, só comigo mesmo. Mas eu sempre me fiz respeitado na minha profissão. Agora respeito e sou respeitado por Dimas Batista.”

“Assim é o gênio”, conclui Seu Chico. “Estudou à luz de lamparina, mas seu dom, esse não tem como aprender. Hercílio nasceu com ele.”

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

*Texto originalmente publicado nesta página no dia 29 de julho de 2012, há quase 12 anos.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 26/05/2024 - 09:44h

A passagem secreta

Por Marcelo Alves

Daunt Books em Londres (Foto: Secret London)

Daunt Books em Londres (Foto: Secret London)

A Daunt Books, na região londrina de Marylebone, é uma belíssima livraria. Como comércio de livros, em princípio especializado em literatura de viagem, foi fundada em 1990, por James Daunt, um banqueiro também craque no ramo livresco, que depois foi trabalhar para as gigantes redes Waterstones (do Reino Unido) e Barnes & Noble (dos EUA). A Daunt Books virou uma pequena rede de livrarias, menos de dez no total, das quais eu estou lembrado de conhecer apenas a matriz em Marylebone, por sinal um bairro chique e muito aprazível da capital do Reino Unido. Acho que tenho uma das belas sacolas da rede – chamadas de tote bags –, das quais eles são, justificadamente, muito orgulhosos.

De toda sorte, fui poucas vezes à Daunt Books quando do meu período de estudos em Londres. Não era tão perto dos locais onde morei e, quase sempre, nas minhas vizinhanças, havia opções, digamos, mais convenientes. Mas, desta feita, hospedado por cinco noites no The Cumberland Hotel, nas abas de Marylebone, decidi alegremente me aventurar por esse comércio de livros. A mãe de João tinha ido fazer as compras de estilo na Oxford Street.

Eu fiquei com o nosso pequeno. Então, passearia com ele na Marylebone High Street, rua agradabilíssima por sinal, cheia de lojas, restaurantes e gente, levaria ele na livraria e, quem sabe, dando tempo, ainda chegaríamos à estação de trens de Paddington, para ver o famoso urso – sua estátua, na verdade – chamado… Paddington.

O passeio pela Marylebone High Street foi divertidíssimo. Era uma manhã de sol – o que é sempre algo a se comemorar no abril londrino. Ia empurrando o carrinho de João. Ele com suas perguntas, que eu tentava – e ainda tento – responder da melhor forma possível. Olhamos muitas vitrines. Entramos em um par de lojas. Tomei um café. Dei o lanche de João. E chegamos à livraria.

A Daunt Books de Marylebone, que ocupa o prédio de uma antiga livraria da era eduardiana, é mesmo muito bonita. Embora mais simples, o seu interior lembra a famosa Livraria Lello do Porto. O trabalho em madeira escura nas estantes, nas balaustradas do andar superior, nos corrimãos e na escada que dá para o subsolo é realmente digno de nota. Belíssimo. A enorme janela/vitral no fundo da loja é encantadora. O teto envidraçado ilumina a nossa estada.

Outrora especializada em livros de viagem, é hoje uma livraria bastante generalista. Seu acervo é bom. Muito melhor do que o da Lello, por sinal. E bem sistematizado. A livraria parece viver cheia. Tinha bastante gente no dia em que estivemos lá. Mas não eram “turistas”, tirando fotos para todos os lados, como no caso do comércio do Porto. Pareciam “locais” e realmente amantes de livros.

Pelo que me recordo, nada comprei. Mas algo deveras inusitado aconteceu. Uma lição, posso dizer. João insistiu em descer a bela escada de madeira, que dava para o andar mais baixo da livraria, onde ele afirmava haver uma passagem secreta. Tirei João do carrinho, que deixei atrapalhando o trânsito no andar térreo, e, carregando o requerente nos braços, nos aventuramos pelo subsolo, onde havia muitos livros, entre eles os de criança. Subimos depois de um tempo.

Cheguei a colocar João de volta no carrinho. Mas ele pediu de novo para descer as escadas, com o mesmo argumento de que havia a tal passagem secreta. Desci já com um misto de cansado e encafifado. Demoramos mais um tempo e, para desgosto de João, subimos. Esse desce e sobe se repetiu mais uma vez. Foi aí que eu percebi haver deixado o carrinho de João verdadeiramente impedindo o trânsito dos leitores.

Em especial, pedi desculpas a uma mulher que, curvada sobre o carrinho, tentava consultar a prateleira dos livros de filosofia. Envergonhado, colocando a responsabilidade no pequeno, disse: “É a imaginação dele. Insiste que descendo as escadas tem uma passagem secreta”. Ao que ela respondeu: “Mas tem ele razão. Lá está cheio de livros”.

Ainda hoje me pergunto o que João encontrou na sua passagem secreta…

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 26/05/2024 - 08:25h

O resplendor

Por Bruno Ernesto

Santa Rita de Cássia em Nova Cruz-RN (Foto: Canindé Soares)

Santa Rita de Cássia em Nova Cruz-RN (Foto: Canindé Soares)

Maior que a fé, só o desejo do título de maior estátua de santa católica do mundo, que foi alimentado em Santa Cruz do Inharé durante os anos de construção da estátua de Santa Rita de Cássia.

Nesse período, precisei me deslocar de Natal para as cidades de Currais Novos e Caicó muitas vezes, em razão de compromissos profissionais, o que me permitiu observar a sua construção desde o início.

Da BR-226, a cada passagem por Santa Cruz, olhava para o Monte Carmelo, e pude observar a evolução da obra, que na maioria do tempo estava envolta por andaimes, permitindo observar apenas sua silhueta enquanto ganhava os céus pelas mãos de Alexandre Azedo, que é filho do escultor que ergueu a famosa imagem de Padre Cícero, no Juazeiro do Norte/CE, juntamente com sua habilidosa equipe.

Na região não se falava de outra coisa a não ser do orgulho e empenho do prefeito da cidade, que ia muito além da fé naquele monumento, uma santa que teria quarenta e dois metros de altura e estaria postada sobre um pedestal de seis metros de altura, o que lhe garantiria uma altura total de quarenta e oito metros e o título de maior estátua de um santo católico do mundo.

Ano após ano, a construção avançava sob a expectativa de que logo seria laureada com o glorioso título, sempre, porém, com a possibilidade de perdê-lo antes da conclusão ou, quem sabe, pouco tempo após, o que seria terrível e feriria de morte o orgulho dos fiéis e das autoridades locais envolvidas no projeto. Afinal, há gente de fé católica no mundo inteiro disposta a arrebatar tal título e, nem sempre, a fé é o mais importante nessas situações. Dizem.

Isso, segundo contam, era um pesadelo para todos da cidade e, decerto, muito mais para o prefeito, pois aquela obra seria um marco histórico para a cidade e seu nome certamente seria eternizado nos anais da cidade, talvez, digno de registro pelo Sumo Pontífice em plena Praça São Pedro, no Vaticano, na audiência semanal que ocorre toda quarta-feira, ou registrado por ele, tal qual os registros existentes nos monumentos históricos de Roma, desde a colina do Vaticano, até o Foro Romano, onde podemos ver inúmeras placas esculpidas no famoso mármore de Carrara, alusivas àqueles monumentos, como a que está no Anfiteatro Flávio, o famoso Coliseu, com os seguintes dizeres: “Amphitheatrum Flavium, triumphis spectaculisq insigne diis gentium ímpio cultu dicatum martyrum criuore ab impura superstitione expiatum ne fortitudinis eorum excideret memoria monumentum a Clemente X P M an jub MDCLXXV, parietinis dealbatis depictum, temporum injuria deletum. Benedictus XIV Pont M. Marmoreum reddi curavit, na jub MDCCL, Pont M.”

Essa expectativa acompanhou a todos durante toda a construção, até que, já bem próximo de finalizar a obra e, enfim, ser inaugurada, chegou a notícia mais temida por todos: em Aparecida/SP, seria erguida uma estátua colossal de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, e que teria 50 metros de altura, o que retiraria o tão sonhado título de maior estátua de santo católico do mundo da cidade de Santa Cruz, pois, mesmo o Monte Carmelo tendo trezentos metros de altura, os quarenta e oito metros de Santa Rita de Cássia seriam superados em dois metros.

Dois metros separariam a glória do ocaso e não haveria comemoração como as do Arco de Constantino, em Roma.

O sonho de tantos anos parecia se esvair por entre os dedos de todos.

Foi um balde de agua fria nos sonhos dos fiéis e a comoção foi generalizada, imperando na cidade o clima de tragédia.

Alguém, num típico arroubo do fervor cristão, quase que de antigamente, bradou que a velha lenda do inharé havia despertado, para a desgraça de todos.

A respeito dessa lenda, consta nos registros históricos da cidade de Santa Cruz que onde hoje é a cidade, havia abundância de inharé, uma árvore que, mesmo tida como sagrada, também poderia ocasionar malefícios, como secas, epidemias e toda sorte de mazela, toda vez que alguém lhe quebrasse um de seus galhos.

Diz-se que um missionário católico, ao saber de tal fato, dirigiu-se ao local e, em desafio, cortou alguns galhos de um inharé e com eles ergueu uma cruz na localidade e, como um milagre, pôs fim aos malefícios no povoado. Daí o nome Santa Cruz do Inharé.

Não tardou para que a notícia da construção de Nossa Senhora Parecida chegasse aos ouvidos do prefeito, que era muito querido na cidade e muito prático nas resoluções dos problemas que lhe eram apresentados.

Dizem que ele perguntou qual a era a diferença de altura entre as duas estátuas.

Alguém sussurrou, decerto com receio da reação do prefeito: dois metros!

Ao ouvir, o prefeito se espraiou na cadeira do seu gabinete e, em profundo silêncio, permaneceu imóvel e com olhar distante por alguns minutos.

O silêncio era ensurdecedor dentro do gabinete. Todos os presentes se entreolhavam num desespero crescente.

Dizem que após uns minutos, o prefeito se levantou da cadeira e foi em direção da janela do seu gabinete, de onde tinha uma visão privilegiada da estátua de Santa Rita de Cássia que estava erguida lá no Monte Carmelo, lá permaneceu outro tanto de tempo em silêncio, estático; apenas fitando Santa Rita de Cássia.

De repente, voltou-se para os presentes em seu gabinete e disse: – A data da inauguração está mantida.

Todos saíram sem entender muito, e os preparativos para a inauguração continuaram normalmente até a inauguração da estátua de Santa Rita de Cássia, no dia 26 de junho de 2010.

Para a surpresa de todos, um resplendor medindo oito metros de altura foi fixado na cabeça da estátua, como uma espécie de coroa, que, ao final, fez com que a altura dela passasse de quarenta e oito para cinquenta e seis metros, superando em seis metros a altura da estátua de Nossa Senhora Aparecida, e que só foi inaugurada em outubro de 2023, garantindo o título de maior estátua de santo católica do mundo até a presente data para Santa Rida de Cássia, ao que se tem notícia.

Ao que parece, o prefeito teve a solução mais prática possível para garantir o título, e ainda garantiu uma maior santidade e divindade à estátua de Santa Rita de Cássia com a instalação do resplendor, que abençoa a cidade de Santa Cruz lá do Monte Carmelo, e enche de orgulho os fiéis, de modo que, de fato, nada mais justo que se esculpa em mármore de Carrara tal façanha, pois solucionou um gigantesco quiproquó. Literalmente.

Ora, pelo visto, os papados dos Papas Bento, por obra do acaso, trouxeram sorte para a estátua, pois a maioria das placas que estão afixadas nos monumentos históricos de Roma, a Cidade Eterna, foram colocadas por ordem do Sumo Pontífice reinante da época, que era Bento XIV (1740-1758); sendo que, ao tempo da inauguração da estátua de Santa Rita de Cássia, no ano de 2010, estávamos sob o Papado de Bento XVI (2005-2013).

Talvez, a lenda do inharé tenha se repetido, merecendo uma placa, quem sabe, esculpida em latim, tal qual as de Roma.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 26/05/2024 - 03:42h

Meu velhobook

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa da Web

Foto ilustrativa da Web

Hoje, usando apenas o dedo indicador da mão direita, posto que não tenho a destreza que tantos apresentam no tocante a mensagens por escrito neste aplicativo, resolvi escrever esta crônica no WhatsApp. Adianto, porém, que é um atrevimento que não pretendo repetir. Meus óculos já não contribuem para esse tipo de ousadia.

A deficiência ocular é para perto quanto para longe. Esta, então, é a primeira e última vez, embora eu deva admitir que estou até desasnando, como se diz.

O motivo disso é que meu velhobook está passando uns dias na casa de recuperação Tec-Micro, situada na Avenida Alberto Maranhão, 2377. Precisa de um urgente e delicado reparo. Embora com uma aparência um tanto jovial, ele entrou na terceira idade. Tem muitos anos de serviços prestados, de entrosamento com este escriba. Parceria que, até o momento, rendeu-me três romances, um livro de contos (afora alguns esparsos) e três reuniões de poemas.

Dois dos romances, a exemplo dos contos e poemas (cujos títulos convém não divulgar agora), são inéditos. Há também uma porção de crônicas e o premiado e republicado A Hora Azul do Silêncio, vencedor dos “Prêmios Literários Cidade de Manaus” na categoria melhor livro de poesia.

A ideia de trocar meu aparelho por outro novinho, mais avançado, desagrada-me. Pois nosso vínculo vai além da tecnologia. Bem parecido com o sentimento que alguns autores tiveram quando da mudança das velhas máquinas de datilografar para produzir seus escritos num computador. Isso se deu, por exemplo, com o recém-falecido José Nicodemos (veja AQUI), verdadeiro estilista da língua portuguesa, sobretudo da crônica.

Nicodemos nos deixou no dia 18 de maio. Ele tinha oitenta e seis anos e, a exemplo de Dorian Jorge Freire, um dos melhores textos do nosso país.

Pensei num mundéu de coisas para escrever, entretanto preciso me contentar com o que foi dito. Aliás, escrito. Cogitei dedicar uma página inteira a essa tragédia brutal que assola o Rio Grande do Sul, mas sem esquecer dos incontáveis desabrigados e desvalidos desta Mossoró (salvo exceções!) desalmada.

Essa utilíssima ferramenta chamada WhatsApp, no ritmo que estamos, vai quebrar o meu galho, me salvar da lacuna durante a ausência do meu velhobook. A repetição do carinhoso neologismo velhobook, que pode representar uma típica redundância, é um tratamento de mero afeto. Percebo, com a minha cabeça ora cheia de metalinguagem, que até esses equipamentos têm seu lado estimável. É mais ou menos o que existe entre mim e minha máquina de escrever, de contar histórias.

Bom. Acho que devo parar por aqui. Puxar mais conversa, engordar esta prosa do velhobook escrevendo neste aplicativo me parece um risco. De repente, não mais do que de repente, como no verso do poeta Vinicius de Moraes, pode acontecer uma trapalhada da minha parte e tudo isso se perder. Torço que o meu Editor consiga pinçar esta crônica digressiva, copiá-la do WhatsApp de algum jeito.

Depois, quando o velhobook retornar dos seus dias de conserto, trocaremos umas ideias e aí talvez eu traga à tona uma crônica mais robusta, que lhes ofereça um volume maior de texto. Todavia isso é por demais relativo; algo discutível. Um grande número de páginas ou livros bastante volumosos não significam sucesso literário. Se fosse assim todo dicionarista ganharia um Nobel de Literatura.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 19/05/2024 - 11:50h

A ruela dos livros

Por Marcelo Alves

Cecil Court em Londres (Foto: Web)

Cecil Court em Londres (Foto: Web)

Andei prometendo – e promessa deve ser cumprida – escrever aqui sobre a Cecil Court, ruela de pedestres londrina que é completamente tomada de pequeninas lojas de antiguidades e colecionáveis, livrarias e sebos especializados em primeiras edições, raridades, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, numismática, teologia, magia e por aí vai. Essa “ruela cultural”, no miolo turístico da capital do Reino Unido, liga a Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, na direção de Covent Garden. Facílimo de achá-la.

Com uma história que retroage ao século XVII, a Cecil Court sempre esteve de alguma forma relacionada às artes. Dizem que o pequeno Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), quando em Londres por volta de 1764-1765, morou lá. Quer mais? Já a primeira livraria parece ter se estabelecido por ali antes da chegada desse morador ilustre, ainda no comecinho do século XVIII, com proprietários de origem francesa.

É claro que a Cecil Court teve suas idas e vindas do ponto de vista arquitetônico. Foi quase reconstruída no tempo de Robert Gascoyne-Cecil (1830-1903), o 3º Marquês de Salisbury e primeiro-ministro do Reino Unido por três vezes (1185-1886, 1886-1892 e 1895-1902). Uma reforma para melhor, como era de praxe à época, com a remoção dos edifícios antigos, substituídos por prédios e lojas melhor construídas, sanitariamente adequadas e de proporções mais atraentes.

Se essa reforma urbanística deu a forma “definitiva” à Cecil Court, depois dela a ligação dessa ruela com as artes não parou de crescer. Já na virada do século XIX para o XX, a Cecil Court esteve fortemente relacionada ao nascimento da indústria cinematográfica britânica. Fornecedores de equipamentos técnicos, produtores e distribuidores estabeleceram-se em seus prédios. Esses “cineastas” pioneiros, alguns dos principais nomes de então, eram os seus “locais”. A ruela era o “coração dessa recém-nascida indústria”, dizem os historiadores.

Foi também por essa época que editoras e livrarias começaram a chegar em grande número à Cecil Court, ainda dividindo espaço com o povo do cinema. Esse boom se deu antes da 1ª Guerra Mundial, certamente. Eram sobretudo comércios de livros especializados, como ainda hoje o são. E foram só crescendo. Ocupando os dois lados da ruela, embora nem todas as lojas sejam livrarias tecnicamente falando. Temos também comércios de outras “curiosidades” ligadas ao que ainda chamamos de cultura.

De toda sorte, para esta crônica, o mais importante é ressaltar a sensação que tive ao voltar à Cecil Court na minha recente viagem em família: ela está quase como eu a deixei. Plena de comércios de livros e assemelhados. Eis uma lista deles extraída da página da Internet criada para a querida ruela dos livros (www.cecilcourt.co.uk): Alice Through The Looking Glass, Art Deco Gallery London, Bryars & Bryars, Coin Heritage, Colin Narbeth & Son Ltd, Daniel Bexfield Antiques, Darnley Fine Art, Goldsboro Books, London Medal Company, Marchpane, Mark Sullivan Antiques & Decoratives, November Books, Panter & Hall, Serhat Ahmet, Stephen Wheeler Medals, Storey’s Ltd, Sworders Fine Art Auctioneers, Tenderbooks, Tindley And Everett, Travis & Emery Music Bookshop e Watkins Books. Pelos nomes, embora em inglês, já dá para saber do que cuidam. Claro, não dá para visitar todos em uma só agradável tarde londrina.

Flanei em Cecil Court com a minha família, como fazia outrora sozinho, de mãos dadas apenas com a saudade de casa. Tiramos fotos. Xeretei algumas vitrines e lojas. O pequeno João a pé, à frente, animado deveras. E, aqui, para finalizar, apenas repito as palavras do grande Graham Greene (1904-1991): “Obrigado, Deus! Cecil Court continua Cecil Court…”

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 19/05/2024 - 11:20h

Meia-lua inteira

Por Bruno Ernesto

Foto de autoria de Gustavo Emiliano

Foto de autoria de Gustavo Emiliano

Há instantes que, aparentemente, são insignificantes. Porém, inexplicavelmente, ficam gravados em nossa memória e nos acompanham pelo resto da vida.

Uns vêm em formato de déjà-vu, outros reaparecem do fundo de nossa memória ao sentirmos um determinado cheiro, sabor, chegar num lugar ou escutar uma música.

É o que chamam de memórias afetivas, algo bem distinto da nostalgia.

Há também aquela sensação esquisita de que não temos bem certeza se sonhamos o mesmo sonho outras vezes.

Eu mesmo já cheguei a anotar um determinado sonho que parece se repetir há anos, para ter certeza que sonhei a mesma coisa. Se bem que faz alguns meses que esse déjà-vu dos sonhos não me ocorre.

Um desses momentos que guardo na memória, foi uma pescaria numa espécie de lagoa formada nas proximidades do rio Mossoró, onde havia uma pequena ponte no meio daquela mata onde passavam os trilhos da ferrovia que ligava Mossoró a Souza, na Paraíba.

Essa lagoa não tinha ligação direta com o rio, mas estava na várzea entre o grande Alto de São Manoel e o Alto da Conceição e era repleta de peixes, e que, após, não sei como, eu e alguns amigos termos descoberto sua existência, fomos lá pescar num final de semana bem cedo, num comboio de bicicletas BMX.

Para não perder a viagem, também levamos as nossas baladeiras e os bornais de pano repletos de pedras. Passarinhos, calangos e qualquer ser vivente que entrasse em nossa mira, viraria caça.

Por volta das sete horas da manhã, nos reunimos na casa do meu amigo Lawrence Davi, que era uma espécie de ponto de encontro dos meus amigos, e após a turma toda se fazer presente, tomamos bastante água e fomos organizando a saída para aquela que seria mais uma aventura de um grupo de uns cinco ou seis crianças que sumiam no meio do mundo com as bicicletas, para o desespero de nossos pais.

No momento que saímos da casa, tocava a música “Meia-lua inteira,” de autoria de Antônio Freitas e Carlinhos Brown, e interpretada por Caetano Veloso.

Naquele instante, olhei para meus amigos em suas bicicletas, numa conversa descontraída; uns sorrindo, outros empinando a bicicleta, e tudo parecia estar em câmera lenta para eu poder gravar para sempre na memória aquele instante, o que de fato ocorreu.

Não demoramos para chegar à lagoa e de cima da ponte, pescamos a manhã inteira até a moleira não aguentar mais o sol, e no momento de irmos embora, resolvemos tomar um bom banho nessa lagoa e, claro, passamos a pular da ponte.

Jamais voltamos lá. Fomos apenas aquela vez.

Tempos depois, já adulto, me atentei para o significado daquela música e me surpreendi.

O título da música remete a um movimento da capoeira e ela se refere à identidade cultural e à liberdade do capoeirista desaparecendo na mata, sempre em movimento, e que não se deixa ser contido, tal qual fazíamos quando saíamos em nossas aventuras naquela época, o que é muito difícil de ser feito pelas as crianças de hoje.

Infelizmente, a realidade é outra.

Entretanto, basta escutar essa música que lembro daquele dia e dos meus amigos de aventura, como se acabasse de ter ido lá com eles. Foi surreal.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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  • Repet
domingo - 19/05/2024 - 09:28h

Copidesques e revisores

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Espero que ninguém se ofenda, contudo acho que o trabalho mais ingrato, senão inútil para quem o realiza, é o de copidesque e revisor de textos. O ofício desses lapidadores do nosso idioma é totalmente obscuro. Pois nesse triunvirato entre escritor, copidesque e revisor, quem sempre leva os louros por uma coisa bem escrita (livre de pleonasmos, ecos, redundâncias, erros de ortografia, de concordância verbal e nominal, além da sintaxe por vezes caótica) é o suposto literato.

Precisa-se fazer a seguinte distinção: nem todo revisor é copidesque, porém todo copidesque é revisor. No geral, sem que isso seja considerado um detalhe negativo, o revisor se encarrega da importante missão de localizar e consertar falhas puramente gramaticais e tropeços de digitação. Já o outro faz tudo isso e pode transformar uma página ou livro muito ruim em algo apresentável do ponto de vista redacional. Quanto ao aspecto artístico, aí vai depender de cada autor. Do contrário, ultrapassando essa linha de atuação, descambaria para a alçada do escritor fantasma.

Tudo bem que há aqueles indivíduos fora de série, narradores excepcionais, homens e mulheres com “redação própria”, como no caso de Otto Lara Resende, mas isso não é uma regra. Porque ninguém, por melhor que seja, pode ignorar a prudência e abrir mão de olhos treinados, mais atentos e descansados.

Diante do que oferecem, e considerando a remuneração desses profissionais, pode-se dizer que o reconhecimento é pífio. Na medicina, na advocacia, na arquitetura e na engenharia, por exemplo, é certeza que as pessoas logo perguntem quem foi (ou é) o médico responsável, o advogado, o arquiteto ou engenheiro.

Já em relação a um determinado romance, um livro de contos, de crônicas ou de poemas, ninguém quer saber quem foi o sujeito (oculto) que cuidou do copidesque e da revisão. Sei que as palavras copidesque e revisor aqui empregadas pipocam como um tipo de redundância, todavia não é possível falar acerca dessa questão sem repeti-las.

Segundo Luis Fernando Verissimo, que também foi revisor de jornal: “Os revisores só não dominaram o mundo porque ainda não se deram conta do poder que têm”. A meu ver, enfim, esses operários das letras são muito pouco reconhecidos. Não sei o que seria dos literatos sem os copidesques e revisores.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 19/05/2024 - 04:30h

Fazendo comércio pelo avesso

O comércio que resiste, a seu modo, à modernidade on-line (Foto do autor da crônica)

O comércio que resiste, a seu modo, à modernidade on-line (Foto do autor da crônica)

Por Paulo Procópio

A resistência respira. Ninguém tá sozinho na luta. Nessa pisada a “Venda” de Júnior ou a “Venda de Leivinha”, que são a mesma pessoa, atravessa décadas sem perder a tradição no bairro Doze Anos, em Mossoró. A Venda, de modo inusitado, também é conhecida por Cantinho Bar pelos frequentadores mais antigos, numa referência (ou reverência) ao antigo comércio da família Freitas, que existiu no local há dez mil anos atrás.

Leivinha não aceita pix nem cartão de crédito, e pronto. O aviso tá fixado na entrada pra todo mundo ver. Entrar na venda também é privilégio de poucos. Os estranhos são atendidos do lado de fora, através das grades, por uma portinhola. Esse sistema foi introduzido por prevenção, depois de um assalto.

A Venda só aceita pagamento em espécie. Dinheiro vivo. A única exceção é anotar algumas compras daqueles fregueses cativos do bairro numa caderneta. Esses pagam na quinzena ou no final do mês. Desse jeito ele vai mantendo a velha tradição dos bodegueiros, que herdou do pai. Como um Dom Quixote, enfrenta os moinhos do capitalismo triturador dos costumes locais. Tá nem ai para as praticidades do mundo moderno. Bom mesmo é o papel bordado.

E lá se vende de tudo. Material de limpeza, higiene pessoal, alimentação, refrigerantes, água mineral, cerveja, cachaça, vinho, velas, chocolates, balas, drops, queijos, embutidos e carne de jabá. Tem lápis, borracha, lapiseira, régua, caneta, cola, cadernos e cadernetas. Alfinetes, agulhas, linhas, friso, cortador de unhas, tesouras e lixas. Cigarro, fumo, papel de seda, isqueiro, rádio portátil, pilhas, headphones, carregadores de celular, e o que mais você possa imaginar.

E messe mundo avesso, pelo avesso a Venda funciona. O horário é anticonvencional. Abre das 11h às 14h, quando fecha para uma sesta esticada, e reabre das 18h à meia-noite, com uma clientela cativa.

É assim de domingo a domingo, com algumas exceções, naqueles finais de semana que ele resolve armar a rede na praia de Redondas, depois da divisa, no bom Ceará. Nesses dias a senha para a freguesia é a ausência da placa em tripé com a legenda: Venda, na calçada da Rua Frei Miguelinho, bairro 12 Anos, no Mossoró Grande que eu gosto demais.

Paulo Procópio é jornalista e advogado

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terça-feira - 14/05/2024 - 09:26h
Aprendizado

Ouvir é uma arte em tempos de intensidade política

Ilustração em Arquivo

Ilustração em Arquivo

Ouvir é uma arte. Mas, a gente só encontra escola para nos ensinar a falar.

Estranho, não!?

Em tempos de intensidade política, de extremos e extremismos, quase ninguém ouve.

Escutar, então…

Fala que eu o ouço.

Estou aberto a escutá-lo.

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Categoria(s): Crônica / Política
domingo - 12/05/2024 - 09:22h

O canto do acauã

Acauã (Foto do Agro 2.0)

Acauã (Foto do Agro 2.0)

Por Bruno Ernesto

Um dos costumes de todo menino nordestino era criar pássaros, especialmente golinha, canário-da-terra, rolinha, galo-de-campina, azulão, graúna, concriz etc. Costume que de uns anos para cá praticamente acabou. E não era para menos.

Os motivos são inúmeros, como consciência ecológica, mudança de hábito em razão do crescimento urbano, desaparecimento dos animais, desinteresse das últimas gerações e, em especial, por ser crime ambiental.

Era uma prática terrível com os pássaros, e que Luiz Gonzaga eternizou a maldade do homem ao registrar que furavam os olhos da graúna para que ela “cantasse melhor”. Eu mesmo pude ver, quando criança, um exemplar de uma graúna cujos olhos foram furados pelo dono que se glorificava por ter um pássaro com canto tão belo. Só tempos depois compreendi aquele terrível hábito dos apreciadores das graúnas.

Aliás, a primeira vez que fui vítima da criminalidade foi quando furtaram o lindo canário-da-terra que, se não me fale a memória, ganhei do meu pai por volta dos oito anos de idade.

Naquele tempo, costumava deixar o portão da casa aberto enquanto ia brincar nas casas dos meus amigos pela vizinhança. Como não tinha noção do que era criminalidade naquela época, não imaginava que alguém pudesse furtar meu canário-da-terra.

Enfim, numas dessas minhas saídas, quando retornei para casa, a gaiola do meu canário, que ficava na área externa da casa, já não mais estava lá.

Não lembro se chorei; mas lembro que, desse dia em diante, isso não saiu da minha cabeça e, vez ou outra quando chego vou visitar minha mãe, lembro desse episódio.

De todos os passarinhos que criei na minha infância, o que me marcou mais foi um concriz.

Ganhei de um amigo do meu pai que, se registre, não gostou nem um pouco, pois ele detestava que aprisionassem os pássaros – embora tenha me presenteado com o canário-da-terra anos antes-, e apesar dos apelos do meu pai, criei com bastante esmero – ração, frutas, legumes, hortaliças, alguns insetos, o cano pendurado para ele dormir – até o coitado morrer de velho.

Pelas minhas contas, deve ter vivido doze anos. Era valente e tinha um canto belíssimo. Não, não tinha os olhos furados.

O que me impressionava, com o passar dos anos, era que ele cantava cada vez mais forte e lançava um olhar penetrante sobre mim quando eu chegava para colocar sua comida, trocar sua água e areia que ele adorava ingerir depois do banho que dava nele diariamente, apesar dos protestos dele.

Digo protestos pois ele cantava a plenos pulmões enquanto eu jogava água nele, que também mergulhava na tigelinha d´água e continuava enquanto estava comendo sua ração e as frutas.

No ano 2000, quando comprei meu primeiro celular, gravei o canto dele e coloquei como toque de chamada do meu telefone celular. Todos na faculdade riam quando meu telefone tocava.

Apesar de tudo, criei o meu concriz com bastante dedicação, cuidado e amor até o seu passamento.

Tantos anos após a sua morte, nesses últimos dias, assistindo a vários documentários sobre o cangaço, enquanto me recupero de um procedimento cirúrgico, me lembrei de um encontro que tive no ano de 2013 com o renomado escritor sobre o cangaço, Renato Luís Bandeira, na antiga sede do Sêbado, que naquele tempo funcionava na casa de seu proprietário na Av. Antônio Vieira de Sá, o outrora cirurgião-dentista Dr.Marcos Pereira, que hoje é largamente conhecido como Marcos do Sêbado, uma grande figura humana, sebista da melhor estirpe e de uma receptividade incrível.

Conversamos por um longo tempo sobre cangaço; adquiri alguns livros de autoria de Renato Luís, além do que, convenci-o a me vender do único exemplar que ele portava do livro “O canto da Acauã”, de autoria de Marilourdes Ferraz, filha do famoso Coronel Manoel Flor comandante de umas das volantes mais ferrenhas que perseguiu Lampião, que, aliás, é uma obra bastante difícil de adquirir.

A quem se interessar, dita obra tem um viés bem diferente do qual se costuma retratar as temidas volantes, pois, segundo a autora, houve uma verdadeira inversão de valores em relação ao papel das volantes, uma vez que ao longo do tempo, as mesmas foram transformadas em perseguidoras implacáveis dos cangaceiros, sem, no entanto, considerar que o fenômeno do cangaço já perdera a aura de movimento social e passou ao puro banditismo.

Em relação ao título da obra, penso que se trata de uma alusão à crença de que o canto do pequeno gavião da caatinga traz mau agouro e é um prenúncio da morte. Os sertanejos de mais idade levam a sério essa superstição.

Há quem chame a Acauã de Deus-quer-um, gavião-coveiro e cobreiro, sendo esta última denominação em razão de sua alimentação ser quase exclusivamente a base de cobras, inclusive as venenosas, e que, apesar de não ser imune ao veneno delas, é um ávido devorador de cascavéis e jararacas, de modo que o título do livro é bem sugestivo.

Com isso, após uma maratona de documentários sobre o cangaço e passar a vista novamente na literatura, me ocorreu de concluir que, apesar de naquele tempo eu cuidar do meu concriz, decerto quando ele escutava minha voz, para ele, deveria soar como o canto de uma Acauã, trazendo mau agouro, pois toda aquela agitação que eu via como uma satisfação dele que parecia cantar lindamente, em verdade, deveria ser muita raiva e desespero por estar ali confinado.

Que bom que os tempos mudaram, pois nenhum ser comemora a vida estando engaiolado ou canta melhor por ter os olhos furados.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 12/05/2024 - 08:38h

A velha rua

A Rua das Livrarias, Charing Cross Road, em Londres (Foto do Blog Mih Pocket)

A Rua das Livrarias, Charing Cross Road, em Londres (Foto do Blog Mih Pocket)

Por Marcelo Alves

Charing Cross Road é tradicionalmente conhecida como a “rua das livrarias” de Londres, sobretudo em razão dos seus muitos comércios de livros usados ou mesmo raros (e aí talvez esteja a diferença entre os sebos e os antiquários de livros). De tão famosa, entre outras coisas, deu título a um livro, “84 Charing Cross Road”, de 1970, da escritora Helene Hanff (1916-1997), que foi bater no cinema em 1987, com craques como Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench nos papéis principais. Livro e filme contam sobretudo uma estória de amor aos livros. Recomendo-os.

Quando cheguei a Londres para o meu doutorado, em 2008, ainda encontrei Charing Cross Road fornida de muitas livrarias e sebos. No meu primeiro ano por lá, morava bem pertinho, na Great Queen Street, em Covent Garden. Achava os comércios de livros de Charing Cross o máximo. E terminava quase todos os meus dias/noites zanzando por lá.

Havia lojas gigantes como a Blackwell’s, onde, por encomenda do saudoso Dr. Ernani Rosado, comprava coleções de filmes em DVDs (ainda assistíamos a filmes assim), de craques como Alfred Hitchcock (1899-1980), com títulos ainda do seu “período inglês”, ou David Lean (1908-1991), outro gênio do cinema britânico. Com a recomendação do Dr. Ernani, adquiria coisitas para mim também.

Havia também comércios bem especializados, como a adorável Murder One Bookshop, especializada, como o nome mesmo dá a entender, em estórias detetivescas e policiais. Eu adoro esse gênero de literatura, confesso. E havia, claro, os muitos sebos, que xeretava, pulando de porta em porta, descendo e subindo escadas, atrás dos títulos mais escondidos.

Ainda me recordo com saudade do meu achado, nos sebos daquela rua, de uma edição de bolso de “Ten Little Niggers” (também publicado em inglês, para evitar o título politicamente incorreto, como “Ten Little Indians”, “The Nursery Rhyme Murders” e “And Then There Were None”), da minha Agatha Christie (1890-1976). O título “Ten Little Niggers” foi praticamente banido em livrarias e até em sebos. Comprei o danado, antigo mas conservado, em um dos comércios dali (já não lembro qual), por 3 libras esterlinas. Na Internet, achei uma edição igual por 730 libras. Guardo o meu exemplar com muito carinho.

Todavia, foi ainda nos meus anos em Londres, numa dessas infelizes coincidências, que fui observando, talvez em razão do crescimento do mercado dos livros digitais, talvez simplesmente porque as coisas inexoravelmente mudam, a decadência do comércio de livros de Charing Cross Road. Alguns comércios foram fechando as portas, como a Murder One Bookshop e, um pouco depois, até mesmo a grande loja da Blackwell’s.

Tendo estado agora novamente em Londres pelo período da Páscoa, achei as coisas ainda mais tristes. A decadência dos comércios de livros físicos parece que atingiu Charing Cross Road em cheio. Outras livrarias e sebos se foram; as que ficaram, como tenho dito, só pelejam. No dia em que estive por lá, empurrando o carrinho de meu pequeno João (uma trabalheira dos diabos), vi que a fachada do quarteirão onde ficam os sebos sobreviventes estava toda em reforma. Eram tapumes por todas as lojas.

Usei para mim mesmo a desculpa de estar ali com João, de ser muito difícil transitar com ele por escadas e estantes e fugi de Charing Cross. Não quis sequer ir à enorme livraria Foyles de Charing Cross, que, fundada em 1903, autoproclama possuir a maior quantidade de diferentes livros em estoque da Europa (coisa de 200 mil títulos, afirma, mas não sei dizer se é vero ou não). Espero que a reforma venha salvar ou, ao menos, dar sobrevida aos queridos sebos.

Na verdade, desanimado com a velha rua das livrarias, preferi ir caminhar em Cecil Court, ruela de pedestres que liga Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, na direção de Covent Garden.

Lindinha, pitoresca, parecendo ter parado no tempo, ela continua tomada de pequeninas lojas, livrarias e sebos especializados em livros antigos, primeiras edições, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, numismática, teologia, magia e por aí vai. Sobre essa ruela mágica falaremos qualquer dia desses.

Prometo.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 12/05/2024 - 07:22h

A vida é pra quem sabe viver

Ilustração Web

Ilustração Web

Por Odemirton Filho

Todos os dias, religiosamente, recebo por meio do Aplicativo WhatsApp mensagem do amigo Rocha Neto. São mensagens carregadas de esperança na vida e fé em Deus, inspiradas pelos melhores dos sentimentos, vindas do coração. Sem dúvida, quem as recebe, fica com a alma aquecida e renovada.

Diariamente, também, num grupo criado exclusivamente para oração, uma colega do trabalho envia áudios adorando e agradecendo a Deus pelo dom da vida, além de hinos de louvor. Um grupo de “zap” no qual somente ela, administradora, pode enviar mensagens.

Eis uma das vantagens do mundo tecnológico no qual vivemos: interagir com diversas pessoas, de forma rápida, ao mesmo tempo. Mas como encaramos a vida? Se, por um lado, há pessoas positivas, por outro, sempre existem pessoas negativas, com uma energia ruim.

Nem tudo na vida são flores, é certo. Porém, é preciso oxigenar o espírito com pensamentos positivos, dando-nos força para vencer os inúmeros obstáculos. Sempre reclamar de tudo, e de todos, não faz bem. Aliás, ao escrever, procuro transmitir aos leitores uma mensagem positiva, que resgatem do fundo do peito as lembranças, as saudades e os bons sentimentos.

Sua vida tá difícil? Agora, pense na tragédia do Rio Grande do Sul. Pensou? Pois é, percebeu como existem pessoas em situação pior? Por isso, devemos agradecer, sempre.

Guardar algum bem material para ser usado num momento singular pode não ser a melhor escolha. Não sabemos se chegará esse momento. Hoje ou amanhã tudo pode acabar. Uma canção interpretada pelo sambista Diogo Nogueira diz assim:

’A vida é pra quem sabe viver, procure aprender a arte pra quando apanhar não se abater; ganhar e perder faz parte…”

Se hoje perdemos, amanhã, ganharemos. Se hoje choramos, amanhã, sorriremos. Aqui ou acolá levamos umas rasteiras da vida, é verdade. Contudo, não podemos desistir.

Tristezas e preocupações? Sim, é claro que tenho. Entretanto, “Deus é maior! Maior é Deus, e quem tá com Ele nunca está só”.

Ah, e tenho alegrias. Muitas.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 12/05/2024 - 05:44h

De onde brotam os meus escritos

Foto do próprio autor da crônica

Foto do próprio autor da crônica

Por Marcos Ferreira

Certas vezes, já noite alta, acontece de avistarmos em algumas ruas e estradas aquele ser humano (homem ou mulher, idoso ou idosa) sozinho e a pé em direção a lugar nenhum. Isso mesmo! Pois não têm para onde ir ou retornar. Simplesmente vagam por aí durante horas a fio sem amparo, sem um teto.

São os leprosos sociais. Uma gigantesca parcela de indivíduos tapa o nariz e passa ao largo ao se deparar com os pobres-diabos. Há quem ache que miséria é transmissível pelo ar e, sobretudo, pelo contato físico. Já fui um leproso social, no entanto encontrei cidadãos que me trataram com dignidade. Vivi tempos difíceis, como muitos, mas tive a felicidade de ser acolhido por anjos sem asas.

Nem todos querem saber desses desprotegidos que a Bíblia Sagrada afiança que são nossos irmãos. Porque (na cabeça de certos fatalistas) tais desgraçados estão colhendo somente o que plantaram. E assim lavam as mãos, imitam Pôncio Pilatos e vão às suas igrejas na cara dura dizer a Deus e a Jesus Cristo que são dignos de todas as bênçãos, bem-aventurança e prosperidade. É de sacripantas dessa natureza que brotam os meus escritos. Querem salvação sem fazer caridade.

Olho à minha volta e constato o quanto sou privilegiado. A saúde às vezes falha um pouco, todavia estou no lucro. Penso logo naqueles que não têm nada, que estão na sarjeta. É daí, entre outras coisas, que brotam os meus escritos. Adquiri essa mania, essa teimosia que faz com que eu me importe com a vida alheia. A vida de gente dessa espécie, gente desvalida, abandonada por Deus e pelo Diabo, invisíveis em meio a uma sociedade (salvo exceções) materialista e discricionária.

Agora todo “mundo” está sensibilizado com a tragédia no Rio Grande do Sul. Uma lástima! É comovente. Difícil segurar as comportas dos nossos olhos. Ao menos as comportas dos meus. Mas não vi (não vejo) comoção dos brasileiros e governos quando a seca no Nordeste castiga e humilha os nossos microscópicos agricultores, a gente pobre do sertão nordestino, o sertanejo que, desde sempre, é largado à própria sorte, ao deus-dará. Daí também brotam os meus escritos.

Essa barbárie na Palestina e na Ucrânia é uma vergonha ecumênica, uma pústula planetária. Vi em uma rede social uma frase atribuída a William Shakespeare que diz o seguinte: “O Inferno está vazio, todos os demônios estão aqui!”. Concordo. Enquanto inocentes são massacrados na Palestina e na Ucrânia, o sumo pontífice (a exemplo de todos os outros em suas épocas) segue rezando, contudo os demônios não dão a mínima para as orações do porta-voz do Altíssimo.

Fulano escreve, anuncia-se como solidário, mas na hora de baixar o vidro do carro e estender a mão ele vira a cara para o outro lado, o semáforo fica verdinho e o falso cristão segue viagem no bem-bom do ar-condicionado do seu veículo confortável. Outros são mais afetados, pegam um microfone e deitam falação, vendem-se por defensores e representantes dos miseráveis. Tudo lorota!

Dessas e outras coisas, volto a dizer, brotam os meus escritos. Aquele sem-número de gatinhos e cães abandonados em Mossoró são criaturas do Criador e merecem o mínimo de nossa sensibilidade e ajuda. Mas os políticos (os da direita quanto os da esquerda) se passam por cegos ou fingem não saber de nada. Desprezam a problemática dos animais de rua e o vínculo disso com as zoonoses.

Há cerca de um mês, ao comentar uma crônica minha, o senhor Pedro Nunes, meu vizinho, perguntou-me de onde é que tiro tanto assunto para escrever. Respondi que essa é a parte menos difícil, pois os meus escritos brotam de um manancial chamado vida em sociedade. Ou seja, algo que não tem fim.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/05/2024 - 12:38h

A mudança do cenário

Por Marcelo Alves

Vista panorâmica de Londres (Foto: Web)

Vista panorâmica de Londres (Foto: Web)

Pela época da Páscoa, estive em Londres com a minha família. A ideia era levar o pequeno João para conhecer a cidade onde o pai, há mais de uma década, havia morado e estudado quando do seu doutorado. Foi cansativo, é verdade, mas valeu a pena. A alma de João – a “imaginação” talvez seja a palavra justa – não é pequena.

É verdade que eu já havia estado em Londres outras vezes desde que terminei o doutorado. Mas, desta vez, achei as coisas bem diferentes. Vi muitos moradores de rua, algo de chamar mesmo a atenção. E achei tudo muito caro. Caríssimo, posso dizer, para nós brasileiros, com uma libra valendo quase sete reais. Amigos que moram por lá nos disseram que a inflação dos últimos anos foi terrível. Para se ter uma ideia, achamos Paris, para onde fomos em seguida, até “barata”. E já desistimos dos planos de estudar inglês, ano vindouro, na capital do Reino Unido.

Mas minha epifania sobre a mudança no “cenário” londrino veio mesmo quando vi um cartaz anunciando a peça “Long Day’s Journey into Night” (“Longa jornada noite adentro”, entre nós), obra-prima do americano Eugene O’Neill (1888-1953). Para quem não sabe, “Long Day’s Journey into Night” foi escrita em 1941. Mas, autobiográfica, O’Neill deixou instruções para que só fosse publicada 25 anos após a sua morte e, mesmo assim, nunca fosse levada aos palcos.

Suas instruções, ainda bem, não foram seguidas à risca. A peça teve a sua première em Estocolmo, Suécia, em fevereiro de 1956 (e em sueco, curiosamente). No mesmo ano, estreou na Broadway. Deu a O’Neill o prêmio Pulitzer de 1957.

Lembro-me bem que, morando então em Londres, fui assistir a “Long Day’s Journey into Night” no Apollo Theatre, em Shaftesbury Avenue, bem pertinho de Piccadilly Circus. A opinião dos críticos ingleses era unânime: David Suchet e Laurie Mettcalf davam um show na refinada produção da obra de O’Neill. Some a isso o fato de que eu era fã de David Suchet – na verdade, sou –, pela sua interpretação de Hercule Poirot, no seriado “Agatha Christie’s Poirot” da rede de televisão ITV.

Mas, desta vez, a peça, com Brian Cox interpretando a personagem principal James Tyrone, estava em Cartaz no Wyndham’s Theatre, localizado em Charing Cross Road, rua famosa por outrora abrigar as inúmeras livrarias especializadas e de segunda mão da metrópole londrina.

NÃO SEI SE FOI A MUDANÇA dos teatros e dos atores principais (embora tanto David Suchet como Brian Cox sejam craques do métier), não sei se foi a lembrança do tom genialmente desesperançoso de “Long Day’s Journey into Night” – um jogo de culpas, mas, sobretudo, de dissimulações; esconde-se a tuberculose; esconde-se a dependência à morfina; brinca-se com a bebida, apesar do alcoolismo na família; uma das últimas cenas, em que o pai conta ao filho enfermo, ambos dominados pela “emoção” do álcool, as desventuras de sua infância miserável e sua ascensão na vida, é mais que tocante; e a peça prende a nossa atenção até a cena final, quando a família termina reunida em torno da mãe, que, tomada pela morfina, parece um fantasma –, mas, não mais do que de repente, vi que até a Charing Cross Road que eu conheci, nos meus primeiros anos de Londres, ainda como a “rua das livrarias”, havia também mudado de cenário.

Uma mudança, sob o meu ponto de vista de amante dos livros, para muito pior. Muitas livrarias já se foram; as que ficaram, pelejam. Uma decadência que parece atingir os comércios de livros físicos por todo o mundo, mas que, sob o impacto da recordação do desenlace de “Long Day’s Journey into Night”, senti de uma maneira muito intensa, como se defronte à velhice e à doença de um ente querido, cuja dor e, sobretudo, o destino, nem mesmo a morfina resolve.

É verdade que alguns comércios de livros de Charing Cross Road, três ou quatro, ainda resistem. E é verdade que a famosa Cecil Court, rua de pedestres ligando de Charing Cross à St. Martin’s Lane, em direção à Covent Garden, ainda está ativa, com suas pequenas livrarias independentes, muitas especializadas em livros colecionáveis, primeiras ou raras edições, mapas e gravuras antigas, artigos de numismática e por aí vai. Talvez sejam até mais antiquários do que livrarias.

Ainda vale a pena passear por lá xeretando as vitrines. Nossa alma, quanto aos livros, nunca deve ser pequena.

Mas esse é o cenário para uma próxima – e espero não tão saudosa – crônica.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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