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domingo - 24/03/2024 - 08:40h

Um fio de esperança

Por Odemirton Filho  

Foto ilustrativa Viver Sem Drogas

Foto ilustrativa Viver Sem Drogas

Um dia desses, no centro da cidade, encontrei um daqueles inúmeros moradores de rua, ali, no entorno da Catedral de Santa Luzia. Um jovem magro e maltrapilho. Sentado numa calçada, ele fumava uma pedra de crack, de forma despreocupada. Já o vi várias vezes pelas ruas, sempre pedindo alguma coisa para comer.

Ele me pediu uns trocados e disse:

– “Doutor, a pedra só custa R$ 5,00, a inflação não atingiu o mercado negro, nunca roubei ou furtei pra sustentar o meu vício”.

Se é verdade o que ele disse, não sei, mas impressionou-me o seu linguajar. Muito embora, como sabemos, pessoas das mais variadas classes sociais e grau de instrução caiam no vício.

Contudo, qual a história de vida daquele rapaz de apenas 28 anos de idade? Onde está a sua família? Cansou de ajudá-lo a sair do mundo das drogas? Não sabemos o que o levou a entrar nessa vida.

Fiquei a imaginar o número de pessoas, sobretudo jovens, que envereda por esse caminho, muitas vezes, sem volta. Eu tenho um primo, um excelente profissional, conhecido na cidade por fazer a locução de comícios. Ele, segundo dizem, caiu nas drogas e sumiu no mundo, há tempos não temos notícias.

Certa vez, eu procurei uma senhora lá em Areia Branca. Tinha uma intimação para dois netos seus. Ela, com lágrimas nos olhos, disse-me:

– “Meu filho, meus netos não moram mais aqui, tive que colocá-los pra fora de casa, pois eles venderam até as minhas calcinhas pra comprar drogas”.

Lá na comunidade de Logradouro, em Porto do Mangue, uma mãe, toda vez que vou à procura de seu filho para intimá-lo, começa a chorar. Diz que não tem notícia dele. Outra mãe, que teve os dois filhos vítimas de homicídio, quando pedi para que me apresentasse as certidões de óbito para juntar ao processo, chorou copiosamente.

São muitos os casos, muita dor e sofrimento envolvidos, principalmente para os pais.

Que fique bem claro: não estou a defender “bandidos”, pessoas que optaram por esse mundo, fazendo do tráfico de drogas um meio de vida, bem como daqueles que usam as drogas como justificativa para cometerem os mais variados crimes, pois já destruíram a vida de muitas famílias. Esses devem ser punidos na forma da lei.

Falo é nos dependentes químicos, nas pessoas que estão nas “cracolândias” da vida, precisando de um tratamento adequado para se livrar do vício, como aquele jovem rapaz que encontrei pelas ruas do centro da cidade. É uma triste realidade do nosso tempo.

Não há outro destino para eles? Quero crer que ainda existe um fio de esperança, e que possam trilhar outros caminhos.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
domingo - 17/03/2024 - 10:26h

Um Oscar para o rapaz velho

Por Marcos Ferreira

Reprodução do autor da crônica

Reprodução do autor da crônica

Passei alguns dias meditabundo. Pois é, já começo esta conversa assim, com uma palavrinha cheirando a mofo, de pouca empregabilidade, falando difícil como quem desejasse que o leitor enrugue a testa e abandone esta página antes do primeiro parágrafo terminar. Mas não é este meu intuito. Então troquemos o famigerado “meditabundo” por “entristecido”. Pronto, é isso. Andei uns dias com um bocado de fastio para certos “pratos” da cozinha cotidiana de nossa existência.

Agora, porém, o apetite voltou. Inclusive o da escrita. Especialmente depois que li “Uma confissão de amor para me sentir vivo”, do meu colega de xícaras e neuras Carlos Santos. Texto de profunda inspiração que nos inspira de maneira profunda. Ao menos a mim. Isto não é um simples elogio, é merecimento. É a mais sincera opinião deste sapateiro das letras. Digo sapateiro porque é esta a única assinatura em minha carteira de trabalho (CTPS) de que tenho o maior orgulho.

Hoje não, os anos 1980 foram embora, as fábricas de calçados de Mossoró quebraram por causa da produção das grandes indústrias em escala planetária, todavia já fui um sapateiro profissional. Comecei com dez anos de idade, e o patrão carimbou minha CTPS quando completei quinze anos. “É o seu presente de aniversário”, disse-me. Daí por diante me ocupei com outras coisas, toda sorte de bicos e subempregos. Fui impostor em um bocado de atividades, até me tornar isto, um sujeito que não conseguiu aprender outra coisa melhor para fazer além de escrever.

“Uma confissão de amor para me sentir vivo”, a meu ver, só tem um defeito: não foi escrita por mim. É daquelas coisas que a gente termina de ler e exclama: “Caramba! Muito bom!” Foi o que eu disse. Tanto que agora estou pegando carona na “confissão”, escrevendo uma crônica sobre outra crônica, como se a página do Carlos Santos precisasse do brilho emprestado das minhas tintas.

Não precisa. “Uma confissão de amor para me sentir vivo” tem luz própria. É uma declaração, um testemunho tocante, uma ode apaixonada, um genuíno louvor. Enxerguei a mim mesmo em vários pontos da mensagem.

Essa entrega, esse compromisso com o mister do ofício da escrita, mexe com os meus botões. Imagino que estamos no mesmo barcos das palavras. Às vezes, pelo capricho dos ventos, seguimos em direção à notícia pura e simples; noutro momento, com ou sem um pouco de arte, ajustamos as velas no rumo das águas onde habitam as criaturas linguísticas com maior e subjetiva grandeza.

Identifiquei-me, enquanto enfeitiçado que sou da necessidade de escrever, com a reverência do rapaz velho à sua longeva profissão de fé, devoção que hoje já está com trinta e nove anos de serviços prestados ao bom jornalismo do Rio Grande do Norte, bem na borda, na beiradinha dos quarenta anos.

Quem quiser que diga que estou puxando o saco. Há sempre quem não goste de ver outrem recebendo um reconhecimento assim, público, e sem economizar os méritos do homenageado. Dirão, pois, que estou puxando o saco. É verdade que já peguei nos bagos de supostas unanimidades da cena literária potiguar, autênticos pavões assinalados, contudo foi só para deixá-los sem as bolas. Mas aposentei o bisturi; hoje não faço mais esse tipo de intervenção cirúrgico-escrotal.

“Uma confissão de amor para me sentir vivo” recebeu um nome belíssimo. Algo que fica muito bem, por exemplo, para intitular um livro de poemas, crônicas, contos ou romance. Ouso dizer, ainda, que o título é coisa de cinema. Peço, então, nesta nossa Hollywood dos invisíveis, um Oscar de melhor roteiro original para o rapaz velho. Enquanto eu concorreria, claro, como ator coadjuvante.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 17/03/2024 - 07:44h

Amigos virtuais, amigos reais

Redes sociais IIPor Odemirton Filho

Vi que nas minhas redes sociais tenho quase cinco mil amigos/seguidores. Cinco mil, vejam só. Fiquei impressionado com a quantidade, pois sou um simples mortal, sem fama e grana. Mais impressionado fiquei com a facilidade de hoje em dia fazermos amigos de forma instantânea, vapt vupt.

Por ter sido professor por quinze anos, creio ser a razão de tantos amigos virtuais. Talvez, se fizer uma triagem desses amigos, não atinja 1% por cento com os quais já sentei à mesa para tomar um café e jogar conversa fora. A maioria destes cinco mil amigos mal me conhece; e eu mal os conheço. Digo, conhecer de vera.

Não é preciso, é certo, uma ruma de tempo para uma amizade se firmar, pois há amizades formadas de chofre. Entretanto, para mim, amigos são aqueles forjados no dia a dia, no compartilhar de sonhos e dificuldades. Amigos, não somente de mesa de bar, mas amigos sempre à disposição para nos ouvir e ajudar. Amigos reais choram e riem ao nosso lado. Ora, nem alguns membros de nossas famílias são garantia de uma verdadeira amizade.

Como sabemos até os amigos de infância se distanciam. Cada um vai para um lado. A vida, por vezes, encarrega-se de afastá-los. Poucas amizades conseguem vencer o tempo. Contudo, quando conseguem, são amizades sólidas. As relações humanas na modernidade líquida são marcadas pela brevidade e pela fragilidade, substituindo laços duradouros por conexões passageiras, como bem disse Zygmunt Bauman.

Nas postagens das redes sociais, somente observamos fotos de momentos felizes, viagens, festas, entre outras ocasiões agradáveis. Poucos expõem suas angústias, dores da alma, pois, naquele universo virtual, só alguns estão prontos a ajudar. Não tenho nada contra os meus cinco mil amigos virtuais, é claro, estou apenas a dizer da superficialidade dessas relações. São muitos os amigos virtuais, poucos, os reais.

Aliás, li uma postagem nas redes sociais que dizia mais ou menos assim: “um dia você saiu com seus amigos de infância para andar de bicicleta e nem percebeu que foi a última vez”. Dos amigos com os quais andava de bicicleta no patamar da Igreja de São Vicente ainda restaram alguns “gatos pingados”.

Pois é, contam-se nos dedos de uma mão os amigos reais.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
domingo - 10/03/2024 - 10:18h

Sinal fechado

Por Bruno Ernesto

Foto ilustrativa do próprio autor

Foto ilustrativa do próprio autor

No dia 10 de março de 1876, Alexander Graham Bell, o inventor do telefone, efetuou a primeira transmissão elétrica da voz humana, iniciando uma nova era para a humanidade.

Desde então a forma de o homem se comunicar mudou.

A invenção foi tão revolucionária, que você, caro leitor, talvez esteja lendo este texto de um smartphone, outra grande revolução. Hoje, quando falamos em informação, tudo gira em torno dele.

Entretanto, há um brevíssimo momento que é inexplicavelmente mágico. Para mim, considero um micromundo das lembranças: o tempo de um sinal de trânsito fechado.

Você certamente também já teve essa experiência transcendental.

Quem, ao parar no sinal fechado, nunca pensou a respeito de algo?

Quem nunca lembrou de uma situação?
Tudo parece passar mais lentamente durante aquela pausa que, literalmente, somos forçados a fazer.

As lembranças se afloram. Planos esquecidos parecem brotar novamente em nossa mente.
De repente, um cheiro nos faz lembrar de muita coisa.

Dê uma olhada ao redor. Você verá muitas coisas aleatórias acontecendo.

Um vendedor atendendo um cliente na loja da esquina; alguém falando ao telefone da calçada; o motorista ao seu lado se olhando pelo espelho retrovisor; noutro, um casal conversando;

A música Sinal Fechado, de autoria de Paulinho da Viola, e na versão interpretada por Toquinho e Badi Assad (Link YouTube: //youtu.be/cX_AaWmcBmk?si=56Kb9ofj6yOXtg25) ilustra muito bem a correria, afastamento e reencontros que todos nós, alguma vez na vida, já nos deparamos.

Ela fala de um diálogo entre duas pessoas que há muito não se viam e que, por acaso, pararam os carros lado a lado no sinal de trânsito.

Nesse breve instante, toda uma vida de caos é resumida num verdadeiro lamento de quem já não aguenta mais a vida que leva e que aquele reencontro parecia o destino e salvação dos dois:

“Olá, como vai?
Eu vou indo, e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo correndo
Pegar meu lugar no futuro, e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca
De um sono tranquilo, quem sabe?
Quanto tempo, pois é, quanto tempo
Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios
Pô, não tem de quê
Eu também só ando a cem
Quando é que você telefona?
Precisamos nos ver por aí
Pra semana, prometo
Talvez nos vejamos, quem sabe?
Quanto tempo, pois é, quanto tempo
Tanto coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge à lembrança
Por favor, telefone, eu preciso beber
Alguma coisa rapidamente
Pra semana, o sinal
Eu procuro você, vai abrir, vai abrir
Prometo, não esqueço
Por favor não esqueça, não esqueça
Não esqueço, adeus.”

A genialidade de Paulinho da Viola ao mostrar que nossa vida é repleta de casualidades e que uma pausa é necessária.

O sinal pode até estar fechado, mas nossa vida não para.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 10/03/2024 - 09:02h

Esconderijo de silêncios

Por François Silvestreolhos negros, mulher, olhos

Januária adormece antes da despedida do sol. É o que se ouve, ou se ouvia, entre suas veredas. O sol vai se esvaindo sem muita vontade, amarelando, desesquentando, como se quisesse ouvir os sussurros que Januária não quer que ele ouça, ou veja pelas frestas da sua luminosidade esmaecida.

As ruelas, de calçamentos irregulares, de buracos nunca tapados, convergem todas para sua praça cor de jegue; isso mesmo, meio cinza, meio bege, onde ergue-se a igreja matriz. Três sinos. O da esquerda, inútil. Pois trincado por um raio, nunca foi recuperado. O da direita, fanho, não se usa. Resta o que divide o olhar da rua com a nave principal do templo.

Toca todo dia, às seis da tarde. Hora do Ângelus. Quando seus moradores acendem as luzes para a visita passageira de Maria. Antigamente, contam, eram faróis de manga incandescente, nas casas dos ricos, ou lamparinas nas casas dos pobres.

Mas Januária é um refúgios de silêncios. Onde eles se aboletam, se espremem, se hospedam. Não existe o silêncio. Em Januária, silêncios há. O único de todos os substantivos que só há no plural. No universo não há o silêncio. Há silêncios em Januária.

Antes do sol deitar-se no aconchego da sua poente cama, como se fosse de Procusto, aquela cama da mitologia, em que o dono da hospedaria esticava as pernas do hóspede quando menores do que a cama, ou as serrava quando maiores. É assim que o sol se deita em Januária. Tentado ouvir algum dos silêncios ali escondidos.

E os há. Na próxima semana contarei o primeiro.

François Silvestre é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 10/03/2024 - 08:34h

A felicidade de um pai

Por Odemirton Filho

Foto ilustrativo do Diário da Mamãe

Foto ilustrativo do Diário da Mamãe

E a menina cresceu. Tornou-se uma linda mulher; decidida, inteligente, firme na busca de seus objetivos. O pai, orgulhoso, lembrava-se quando a pegou nos braços, tão pequenina, frágil. Vinha à memória a filha correndo pela casa e algumas de suas peraltices, como jogar o aparelho de celular dentro do aquário e correr pelo quarteirão de onde ficava a sua casa; a mãe tentando alcançá-la.

Contudo, o tempo voa. Ao voar, traz lembranças para aquecer o coração. É a vida seguindo o seu fluxo. O pai torce para a filha pavimentar o seu caminho com as pedras da humildade, do amor e da honestidade. Roga a Deus que a abençoe. Daqui a algum tempo, quem sabe, virão os netos, e a menina dos lindos cabelos cacheados, hoje adulta, educará os seus filhos.

Com a vitória dos filhos os pais se sentem realizados. Qual o pai ou a mãe que não fica feliz com o voo dos seus filhos? Somente alguns não nutrem esse belo sentimento. O pai tentará deixar como herança valores imateriais, os quais são a verdadeira riqueza de uma pessoa.

Com o tempo, passamos a contemplar a vida de outra forma. A serenidade nos visita, e ficamos cada vez mais conscientes de nossa finitude. Tanta correria pra quê? O que nos espera? Será o fim ou o começo? Perguntas que somente a crença de cada um responderá.

Por isso, a felicidade de um pai ao observar os filhos seguirem o seu caminho, pois sente a sua vida se eternizar, vez que a sua melhor parte, seus filhos, começam a construir a sua própria história de vida.

Sem dúvida, os filhos encontrarão muitas dificuldades, as quais todos enfrentamos. Nem tudo são flores; há os espinhos que machucam a alma. Mas o tempo, caso não cicatrize, pelo menos será um bálsamo para aliviar os arranhões causados pela vida.

E o pai, emocionado, dirá: “vá em frente, filhasiga o seu caminhoSorria, chore, ame, dance, rodopiando pelos salões da vida, feliz. Seja independente, seja você, seja o que quiser.

Enquanto eu estiver por aqui, continuarei ao seu lado em todos os momentos de sua vida, alegres e tristes. E quando estiver no outro lado do caminho, no plano espiritual, continuarei te protegendo, amando-te.

Eternamente”.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 03/03/2024 - 08:12h

Outra vez sob controle

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa da Web

Foto ilustrativa feita pelo próprio autor da crônica

Precisei antecipar (Natália cuidou disso) meu retorno ao psiquiatra. Eu vinha até me esforçando, mentalizando coisas boas, entretanto não foi o suficiente. Minha cuca havia se complicado, saído do prumo. Pesadelos medonhos, noites maldormidas e dias de cansaço e desmotivação se tornaram rotina. Até Preciosa não brincava comigo como de costume.

A felina pressentiu o meu humor negativo. Fui logo para a clínica. Após uma longa consulta, o médico disse que eu estava em uma crise mista de depressão e bipolaridade. Isto é, na iminência de um novo surto.

Passei semanas borocoxô e uns três meses sem tirar a barba nem cortar o cabelo. Não queria sair de casa. A saudável peleja com a literatura entrou no fastio. Sentia-me nervoso, enraivecido, coração acelerado, sem vontade de falar com ninguém. Mantive o telefone fora de área durante vários dias. Hoje, contudo, estou num momento sereno. No entanto, por orientação médica, sigo fugindo, esquivando-me de qualquer coisa que possa me render inconvenientes, irritação, estresse.

Dr. Dirceu Lopes, como eu esperava, fez uso de sua poderosa bateria de psicofármacos. Voltou com alguns que eu já não tomava há tempos, como a olanzapina e o cloridrato de propranolol. Aumentou, entre outros, a dose do Rivotril, que passou para dois miligramas. Entre as dez e as onze horas, quando finalmente consigo me levantar, estando com o equilíbrio e a coordenação motora comprometidos, tomo um Levoide em jejum. Após o café engulo a losartana e o primeiro Depakote do dia. À noite, depois do jantar, a sobremesa é literalmente substancial e colorida.

Então decidi colocar essas drogas todas num pratinho azul em cima da mesa e fazer uma foto para ilustrar a minha própria crônica. Aí estão todos os comprimidos do período noturno: os grandes e azulados são o Depakote; as bandas longas e amarelas são a quetiapina; o branco com fenda é o famoso Rivotril; o outro branco (sem fenda) é a olanzapina; o amarelo grande com fenda é a lamotrigina. O último é o cloridato de propranolol, que aparece em uma bandinha branca.

Estou, portanto, sob controle. Tranquilo.

Bem! Não tenho o menor pudor de compartilhar com meus leitores essas turbulências psicológicas. O Blog Carlos Santos, se me permite, é o meu divã. Aqui me desnudo, me visto e me inspiro com a escrita dos demais colaboradores deste espaço eclético. Domingo passado, felizmente, tivemos a volta do François Silvestre. Há muito não dava o ar da sua graça. Torço que ele sempre retorne.

Trago à tona estes meus sufocos emocionais como fizeram em suas épocas, por exemplo, indivíduos como o filósofo Friedrich Nietzsche e o escritor Lima Barreto. Este último, assim como eu, também experimentou os dissabores de passar por um hospício. Agora (e de novo) é preciso renovar as forças, ficar o mais longe possível dessa moléstia silenciosa e traiçoeira.

Estou me autoanalisando. Tentarei colocar menos angústias e ocupações infrutíferas no meu juízo. Porque o tratamento medicamentoso não resolve tudo. Preciso exercitar, além da mente, este corpinho pré-histórico. Farei meditação, caminhadas, e continuarei cometendo os meus escritos.

Além disso, vou diminuir drasticamente a atenção que eu dava às redes sociais. E, ao menos por enquanto, só estarei disponível no telefone e no WhatsApp a partir das treze horas. Preciso de um tempinho para sair do nevoeiro dos medicamentos. Aí já terei tomado um banho, feito alguma coisa para comer e bebido um café puro. Ainda assim, por via das dúvidas, peço ao meu exército de quase dez leitores que continue com as orações para o bem-estar e proteção deste cronista.

Marcos Ferreira é escritor

Nota do BCS – Querido Marcos, esse divã é seu, mas também meu, nosso. O “Nosso Blog“, como definiu Naide Rosado, é compartilhado, diverso, necessariamente conflituoso, plural, feito por muitos; dialético. É, também, onde temos o privilégio de seus escritos e da participação ainda de tantos outros colaboradores, incluindo os webleitores e comentaristas.

Faz-lhe bem? Que bom! A nós, então…

No caso deste editor, a página nasceu como terapêutica às próprias neuras e segue sendo útil nesse fim.

Tamo junto.

Cuide-se.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 03/03/2024 - 07:40h

Sagrado pão

Por Bruno Ernesto

Foto ilustrativa do autor da crônica

Foto ilustrativa do autor da crônica

Se hoje a culinária ganhou um ar sofisticadíssimo, transformando algo simples em revolução gastronômica, há certas coisas cujo segredo reside na simplicidade.

Há uma infinidade de novidades gastronômicas que proporcionam experiências espetaculares para quem tem curiosidade e gosta de comer sem medo ou culpa. Muito embora haja, por vezes, um descompasso entre o que se oferece e o valor que é cobrado.

Comer bem, não significa gastar muito.

Há quem pense que apenas descrever os ingredientes ou o modo de preparo com nomes bonitos e pomposos, possa transformar o que toca em ouro. Não é bem assim.

Não que não se reconheça que a culinária é uma arte e que os insumos estejam pela hora da morte, e que a composição do preço também leva em consideração inúmeros fatores.

Mas, convenhamos, há um certo exagero no valor cobrado.

Se há um alimento que pode ser classificado como universal, ele é o pão.

Praticamente todas as culturas têm o pão como alimento elementar.

Sua receita é simples e milenar; inclusive, é o elemento de maior representatividade simbólica para o cristianismo.

Produzidos nas simples padarias de bairro ou em padarias sofisticadas, dos mais humildes até os mais abastados, não há quem resista ou dispense, em sã consciência, um pão quentinho.

Tenho saudade do tempo que uma moeda de um Real comprava um saco de pão e podia comer dezenas e dezenas de pães sem medo de pôr a saúde em risco.

Se bem que sempre digo que não quero morrer sadio. De fato, não quero.

Mas também fico contente em poder provar as novidades que agora podemos encontrar no comércio local.

Hoje, diante de tanta novidade dos panifícios, os pães estão cada vez mais saborosos, e aqueles mais simples são os mais saborosos; e são apenas chamados de pão. Sem firulas.

Apenas farinha, fermento, água e sal.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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domingo - 03/03/2024 - 05:28h

Os cães cariocas

Por François Silvestre

Praça de lazer exclusiva para cães no RJ-RJ, na Praça do Lido,  Copacabana (Foto: PMRJ)

Praça de lazer exclusiva para cães no RJ-RJ, na Praça do Lido, Copacabana (Foto: PMRJ)

A cidade do Rio de Janeiro tem aproximadamente sete milhões de habitantes. E talvez o dobro disso de cães. População canina maior que humana. A cidade é um estuário de miséria humana; com mendigos, assaltantes e dormidores nas calçadas.

Na madrugada ou ao amanhecer, os depósitos de lixo postos nas ruas dos prédios de classe média são revirados por estes dormidores. Quando os carros de coleta chegam, muito desse lixo resta espalhado pela rua.

Aí você talvez pergunte: “e os cães também soltos na rua”? Não. Absolutamente não. Não há cão abandonado no Rio. Pelo menos nesses bairros de classe média. Nenhum. São cães criados e bem criados. Madames que passeiam nas ruas, supermercados, praias, bares, com seu cão de colo. E mais os membros da família. Companheiro, filhos, também levando cães no colo ou pela coleira.

No final da tarde, você vê cuidadores conduzindo dezenas de cães, que serão devolvidos nos apartamentos. No bar onde você estiver, haverá sempre alguém com o seu ou seus cães. E não raro, vira um festival de latidos quando chega outrem também conduzindo mais um ou mais cães.

Porém, entretanto, mas porém, como diria Zé Limeira, você nunca verá um cão abandonado nas ruas do Rio de Janeiro. Esse lugar de abandono é propriedade dos humanos.

Aí vem, na memória, um verso meu antigo escrito num guardanapo de um barzinho no Bairro da Glória: O verso de Gil perdeu encanto,/ As pedras que cercam o Rio/ continuam belas,/ Mas a cidade cercada por elas,/ nem tanto.

François Silvestre é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 25/02/2024 - 11:20h

Nem de longe

Foto do próprio autor da crônica

Foto do próprio autor da crônica

Por Bruno Ernesto

Aquele velho ditado de que nem sempre o que parece, é, nunca esteve tão em voga.

Dia desses, escutei um conhecido dizer que a felicidade é possível nas coisas simples.

Sim, concordo!

O que, de início, parecia uma conversa alinhada, com exemplos de simplicidade, autoconhecimento e satisfação pessoal, se mostrou uma felicidade tóxica e artificial.

Voz mansa e palavras de ordem para a plena felicidade, aos poucos, contrastava com o que fazia na prática.

Essa foi a terceira vez que pudemos conversar pessoalmente, numa roda de conhecidos em comum; e uma coisa que notei, foi que toda conversa iniciava com uma lição de autoestima daquelas que se encontra em livro de autoajuda ou se escuta em palestras motivacionais, e que seu ciclo de amizade era enorme e de gente abastada.

Como de costume, escutei atentamente e falei pouco.

Sempre é bom escutar o interlocutor que tem muito a dizer, especialmente quando o assunto é ele mesmo.

Dizia ela, a dita pessoa, que não sabia como alguém poderia viver num ciclo de aparência e necessidade de agradar aos outros, mas que, ela própria, precisava fazer a mesma coisa.

Estranhei, mas a justificativa que deu em seguida, foi reveladora: era preciso manter o “networking”.

Fiquei curioso e resolvi perguntar que “networking” seria esse, embora já imaginasse.

Não se fez de rogada e disse que eram pessoas da alta sociedade cujo seu trabalho era manter o fio da navalha sempre cego, de modo que os cortes das agruras deles fossem rasos.

Descobri, depois, que as agruras a que ela se referia eram quais restaurantes, academias, viagens luxuosas e o carro novo que precisariam frequentar, realizar e comprar; pouco importando o sacrifício pessoal, o custo financeiro e o moral.

Confesso que compreendi.

Embora tentasse se desvencilhar dos seus pupilos emocionais, transparecia um prazer existencial em fazer parte daquele micromundo de invariável fragilidade pessoal e, muitas vezes e, ao que parece, indissociável prazer de orbitá-lo, muito embora fosse intangível à sua realidade.

Não seria surpreendente que se sentisse parte, ao menos em sua mente.

Lá pelas tantas, disse que, apesar de ter morado num luxuoso hotel por três meses, a vista deslumbrante do mar, a brisa, o excelente buffet do café da manhã e as excelentes conversas com os hóspedes bem afeiçoados, não lhe interessaram naquele momento, por razões que lhe fugiam à sua racionalidade.

De fato, não tive como contrapor o seu argumento de autoridade, muito embora desconhecesse sua real formação acadêmica.

Após os seus repetidos bordões de felicidade tóxica, lembrei de uma pequena casinha que fotografei outro dia na beirada de uma grande falésia.

Sua simplicidade, digo, da casa, contrastava com a beleza que ao fundo apareceria. Muito embora o penhasco ficasse logo ao lado.

Certamente quem já a conhece, sabe que a beleza ao fundo, esconde um grande perigo.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 25/02/2024 - 10:28h

Uma comparação literária

Machado de Assis: autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Foto: Reprodução)

Machado de Assis: autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Foto: Reprodução)

Por Marcelo Alves

Hoje mais do que nunca, com a globalização, a facilidade de comunicação e o maior intercâmbio cultural, a literatura comparada deve ser uma das principais “parceiras” daquele que pretende analisar as realidades da cultura geral e do seu povo. E, quando falo de globalização, refiro-me àquele processo que tende a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, uma complexa rede de comunicações que abarca todo o mundo e, por que não, um padrão de cultura/literatura comum a todos os povos ditos “civilizados”.

Essa melhor utilização da literatura comparada, aliás, pode se dar de várias maneiras e em vários níveis. Podemos realizar macro ou microcomparações. A primeira refere-se ao estudo de duas ou mais “literaturas” (a brasileira e a norte-americana em suas totalidades, por exemplo); a segunda, ao estudo de aspectos, temas, obras ou autores de duas ou mais “literaturas”. Deve-se notar, ainda, que essa comparação pode ser horizontal ou vertical, a depender se o enfoque recai sobre o panorama atual ou se são feitas incursões de caráter histórico nas “literaturas” comparadas.

De fato, na literatura, a comparação tem muito a nos oferecer. De maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, a literatura comparada nos ajuda a identificar os elementos essenciais da literatura de outros países, de outros povos, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa, assim como seus pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Jamais em competição com as tradições internas, mas em parceria com elas, a literatura comparada pode ter uma função de análise e ajudar a se chegar a um julgamento mais equilibrado e crítico de nossa produção intelectual, graças a uma perspectiva mais ampla e multicultural da literatura.

Tomemos aqui, como singelo exemplo para comparação literária, a seguinte relação entre a obra do irlandês Laurence Sterne (1713-1768) e do nosso Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

O mulato carioca Machado de Assis é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. O grande crítico norte-americano Harold Bloom (1930-2019), aliás, tinha Machado de Assis como o maior escritor negro de todos os tempos. Uma de suas obras-primas é o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). E a propósito, em 2020, a prestigiosa revista The New Yorker, em virtude de uma nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, deu à resenha do livro o consagrador título: “Redescobrindo um dos mais espirituosos livros jamais escritos”.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é alegadamente inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) de Sterne. Mesmo que se tenham estórias diversas para cada um dos livros, e mesmo que seus contextos sociais e culturais sejam diversos (uma Europa com duzentos anos de diferença para o nosso Brasil), há, sem dúvida, fortes pontos de contato/inspiração.

A “forma livre de jogar as ideias”, as digressões e o humor (embora um humor mais sarcástico em Machado e um mais ingênuo/sentimental em Sterne) são amplamente reconhecidos. Pode-se até de dizer que Machado “roubou” a ideia ou concepção do romance de Sterne, que, por sua vez, já a teria “furtado”, em parte, do Dom Quixote (1605) de Miguel Cervantes (1547-1616).

Mas não tenham isso como demérito para o nosso maior escritor. Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de fato nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo do Cosme Velho.

As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são mesmo revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?).

Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.

Afinal, e não canso de repetir, já dizia o enorme Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 25/02/2024 - 09:50h

Lá vem a chuva

Área litorânea, região metropolitana, são pontos mais críticos no período (Foto ilustrativa Elisa Elsie)

Foto ilustrativa de Elisa Elsie/Arquivo

Por Odemirton Filho

O velho sertanejo olhava para o céu. Estava no período do inverno, e rogava a Deus que a chuva molhasse o chão esturricado. Todo ano era a mesma peleja, o homem do campo fia-se em Nosso Senhor e nas benções de São José para que o inverno seja chuvoso. A esperança não morre, renova-se ano a ano. Assim é a vida do povo do sertão, calejado pela constante falta d`água.

Com o velho sertanejo não era diferente. Passou a vida trabalhando naquelas terras. Herdou-as do seu pai e, desde pequeno, ajudava-o na roça, aprendendo o ofício que vinha de geração em geração. Daquele chão seco conseguiu tirar o sustento dos cinco filhos.

Hoje, moravam somente ele e a sua mulher, também avançada em anos. Os filhos foram morar numa cidade grande em busca de melhores condições de vida. Entretanto, nunca pensou em sair do seu torrão. Ali nasceu, ali morrerá.

Levavam uma vida simples. A sua mulher preparava o café cedinho, antes do sol raiar; barria o terreiro, depois, ia limpar a casa e preparar o almoço. Ele ajeitava alguma cerca que estava quebrada; alimentava os poucos animais que tinham; limpava a sua pequena roça. Na hora do almoço, normalmente comiam feijão, farinha e, quando tinha, alguma mistura. Tomava umas doses de cachaça para “espaiar o sangue”.

À noite, ao lado de sua velha, assistiam ao noticiário na televisão e escutavam umas cantigas no rádio. Gostavam de ouvir o rei do baião: “Sem chuva na terra descamba janeiro, depois fevereiro e o mesmo verão; apela pra março que é mês preferido do santo querido senhor São José (meu Deus, meu Deus)”; dormiam antes das 21h, religiosamente.

Recebia o dinheirinho do governo, mas o “aposento” mal dava para as despesas. Há anos que escutava a conversa mole dos políticos que a vida vai melhorar. Neste ano de eleições municipais, os candidatos a prefeito e a vereador deverão passar pela sua casa prometendo mundos e fundos, mas gostava de dizer que já tinha plantado “um pé de cá te espero”.

Agora, via as nuvens carregadas, os raios rasgando o céu. Estava capinando a roça e gritou para a sua mulher: lá vem a chuva! Lá vem a chuva!

E sentiu o suor do trabalho, as lágrimas da esperança e os pingos da chuva enviada por Nosso Senhor escorrerem em seu rosto.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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domingo - 25/02/2024 - 09:12h

Marcas do tempo

Por Marcos Araújo

Ilustração Web

Ilustração Web

O poeta romano Virgílio, autor de “Geórgicas” e “Eneida, costumava dizer aos seus comensais que o tempo fugia de forma irreparável (tempus fugit irreparabile). Como um “devorador das coisas” (tempus edax rerum) emendou depois, com precisão, o poeta Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.). Em suas aulas aos estóicos, o filósofo grego Sêneca repetia excessivamente que “nada é nosso, exceto o tempo.” E sobre a ansiedade humana na busca de um viver perpétuo, complementava: “Perdemos o dia esperando a noite e perdemos a noite esperando amanhecer.

Outro dia, fiquei absorto em envelhecidas sinapses cerebrais ao adentrar na ampulheta da minha existência, depois que o ilustre editor deste Blog restaurou uma publicação sua, de 12 anos atrás, noticiando a inauguração do nosso “novo” escritório.  Reflui no seu texto, para aportar brevemente no passado. À semelhança de Mário Quintana, admito que na minha cabeça “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”

Pensei nas diversas mudanças a que fui submetido. No último decênio, por exemplo, a tecnologia “devorou” muitos dos símbolos dos escritórios de advocacia do meu tempo inicial, a exemplo: i) a máquina datilográfica; ii) o diário oficial publicado em jornal impresso; iii) o processo judicial – e administrativo – físico; iv) os livros em papel; v) o contato com o cliente e o meio de consultar o advogado (que era fundamentalmente presencial, e agora é pelo Instagram e o WhatsApp); vi) os mandados judiciais, que são atualmente cumpridos por mensagens de WhatsApp etc.

O Direito foi mudando.  Antes, a fonte era a lei, depois a Constituição. Agora, somos espectadores da fuga da normatividade, valendo apenas a “decisão-norma” criada pelo Tribunal ou por um Juiz, em isolado. O STF virou legislador extraordinário, e Alexandre de Moraes um intérprete avesso da lógica constitucional.

No meu tempo, crises diplomáticas entre nações se resolviam em reuniões longas a portas fechadas entre os embaixadores. Hoje, são “viralizadas” a partir de publicações – dos embaixadores – em redes sociais. Os Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) todos os dias criam mais e mais portais, canais e oferta de serviços virtuais, uma prodigalidade de promessas descumpridas e serviços absolutamente ineficazes.

Os prejuízos são notados na família, na formação educacional, na educação social. Há um desprezo pelos encontros pessoais e estamos decretando a morte da mágica da afetividade humana.

A VIRTUALIDADE, penso eu, tem sido inimiga da criatividade, do aprofundamento do saber, do pensar instantâneo, da operatividade, da destreza do agir… Pelo menos, as crianças estão mais lerdas, menos ativas. Os profissionais também. Conhecimento temático é de superfície. O saber é apenas “googliano”. Os cursos de finais de semana, por Google Meet, diplomam milhares dos “especialistas” do presente.

Stravinsky (1882-1971), o famoso compositor e maestro russo, perguntado uma vez sobre o seu sucesso, negou bastar a inspiração. Dizia ele que tudo vinha pela persistência do trabalho: “Não se nega a importância da inspiração. Pelo contrário, considero-a uma força motriz, que encontramos em toda atividade humana. Essa força, porém, só desabrocha quando algum esforço a põe em movimento, e esse esforço é o trabalho.”

Meu desafio diário está na resposta de Arnaldo Antunes, dos Titãs: “não vou me adaptar”.  Tenho travado, como Aldyr Blanc, diálogo com o tempo. E sei que ele debocha de mim. O efeito é diverso do que foi musicado. Fico apenas com a parte final: No fundo é uma eterna criança, que não soube amadurecer / Eu posso, e ele não vai poder, me esquecer.”

Marcos Araújo é advogado e professor da Uern

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domingo - 25/02/2024 - 08:02h

Pequeno burguês de esquerda

Foto: I Stock

Foto: I Stock

Por François Silvestre

Certa vez, um comentarista do Blog Carlos Santos, pensando me agredir, chamou-me de ex-comunista. Eu respondi confirmando, para desencanto dele. Disse, na época, que concordava com a afirmação. E que fora de fato comunista, ou pelo menos pensava que o fora.

Digo que pensava porque havia quem não me considerasse como tal. Isso mesmo. Os comunistas tradicionais, da cartilha stalinista, nunca me consideraram comunista. À exceção dos quadros do PCR. Nomes importantes da resistência democrática. Lembro agora Emmanoel Bezerra, Manoel Lisboa, Leonardo Cavalcanti, Dionary Sarmento. Os dois primeiros mortos sob tortura, os outros dois presos e torturados. Mas isso é outra história.

O certo mesmo é que o comunismo sino soviético foi uma tragédia fantasiada de alternativa. Tragédia não apenas pela prática da violência, mas pelo delito histórico de ter ofertado ao capitalismo a bandeira das liberdades fundamentais. Presente indevido a presenteado imerecido. O capitalismo foi e sempre será o regime da exploração humana.

Toda crítica do capitalismo à violência, à opressão, e à miséria é tão somente um estuário de hipocrisia e farisaísmo. Hipócritas e exploradores da condição humana. O sinosovietismo deu ao capitalismo sobrevida e argumentos. Mas não conseguiu lhe dar vergonha.

O comunismo morreu para o capitalismo continuar matando.

Então, isso dito, reafirmo como verídica a crítica dos stalinistas sobre mim. De fato eu sou o que eles disseram que eu era. Apenas um pequeno burguês de esquerda. Ou como disse Ângelo da Costa Neto, filho de seu Luis Lino, sou um esquerdista cervegista. Não consegui até hoje enxergar dignidade humana no capitalismo.

É isso aí.

François Silvestre é escritor

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domingo - 25/02/2024 - 06:48h

O universo fantástico de Ayala Gurgel

Por Marcos Ferreira

Livro de Ayala Gurgel (Reprodução)

Livro de Ayala Gurgel (Reprodução)

Não sou estudioso da produção livresca potiguar. De modo algum. Nem mesmo do âmbito mossoroense. Ignoro, destarte, que tenhamos entre nós um literato mais sombrio e fiel às surpresas do estilo sobrenatural, com os recursos criativos, as características e peculiaridades de Ayala Gurgel. Sim. Trata-se de um ficcionista engenhoso, fecundo, versátil, autor, principalmente, de títulos nas modalidades conto, novela e romance.

Conquistou posições de destaque em relevantes prêmios literários, além de integrar antologias organizadas e lançadas ao longe de nossa província.

Embora pouco conhecido nos meios intelectuais do RN e de Mossoró, Ayala já escreveu e publicou quase uma dezena de livros através de edições particulares. Unindo criatividade e elementos verídicos, o seu estro adota como pano de fundo a temática e vastidão da caatinga. Transita, invariavelmente, pelo gênero sobre-humano, sempre arraigado na ficção teológica. Nessa esfera, que conhece a fundo, apresenta as suas garras de escritor ácido. É aí que estabelece e desenvolve uma escrita iconoclástica, pródiga em sistemáticas críticas à instituição da Igreja Católica.

Nascido em 1971 no município norte-rio-grandense de Alexandria, Ayala Gurgel reúne vasta formação acadêmica. Tem passagem por importantes universidades brasileiras, informações estas que não gosta de divulgar. Entre outras habilitações, é doutor em Políticas Públicas e Filosofia. Desde 2014 é professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).

Possui experiência no campo da Filosofia, sobretudo em Ética, Bioética, Tanatologia e Saúde Mental. Atualmente desenvolve pesquisas na área de filosofia da linguagem ordinária e teoria da argumentação. 

Em Brumas & Brenhas, cujo prefácio leva a minha assinatura, mas que poderia lhes expor a avaliação de alguém mais familiarizado com o simbolismo do místico, ouso dizer que o autor de O Segredo da Ordem do Santo Sacrifício se revela em sua melhor forma enquanto criador de mundos e personagens. Inventivo, de pulso firme e se utilizando das tintas de um demiurgo como Stephen King, de quem é confesso admirador, Ayala nos mostra que também sabe contar uma boa história e infundir algum medo em pessoas menos habituadas a leituras dessa natureza.

Não pretendo esmiuçar, traduzir nem oferecer a bem elaborada narrativa de Brumas & Brenhas toda mastigadinha para o respeitável leitor. Não. Isso está fora de minha competência. Ao menos é o que eu presumo. Recomendo ao público, portanto, mergulhar na trama e ver de perto o saboroso e extraordinário conto acerca de indivíduos tão incríveis quanto verossímeis. Em especial a jornada que dois padres jesuítas empreendem pelas brenhas do alto oeste potiguar no ano de 1751.

Gurgel: instigante (Foto: divulgação)

Gurgel: instigante e ácido (Foto: divulgação)

A HISTÓRIA É CONTADA em primeira pessoa por um narrador onisciente e ignoto. Na segunda parte do causo, com uma prosa clara e instigante, é relatado o aparecimento do seguinte fenômeno climático:

“A situação estava feia e não dava sinais de melhora, anjos e santos pareciam não se apiedarem, mas naquele exato dia 06 de abril de 1751, ainda de madrugada, antes do sol raiar, uma névoa úmida começou a subir da areia fina do riacho onde se encontravam as últimas cacimbas com alguma serventia. Não houve relâmpago ou trovão durante a noite toda, nenhum sinal de que cairia uma gota d’água, nada que indicasse mudança do tempo, apenas a bruma que começou a subir da terra, atingindo, em pouco tempo, a copa das árvores ciliares”.

A trama é construída a partir de um documento fictício que supostamente aponta para a origem da cidade natal do romancista, um lugarejo de nome Barriguda. Aí encontramos tipos cativantes, a exemplo do protagonista e contador de histórias Zé Preto, escravo que conseguiu sua alforria por meios que ninguém sabe ao certo.

À volta de Zé Preto, que relata aos jesuítas o mistério da súbita bruma, gravita uma série de catingueiros interessantes como Dona Antônia, Seu Zé de Brejeiro, Dona Amélia, Preá, Baraúna, Filomena, Zefa, Cocota, Mundico, Zefinha e Madalena.

Posso afirmar que, entre todos os trabalhos artísticos de Ayala, Brumas & Brenhas é o meu preferido. Digo mais: estamos perante um homem de letras que realmente sabe escrever, talento este que não é regra em nosso habitat. Então, sem querer me alongar nem chover no molhado, fico por aqui e convido vocês a se embrenharem no universo fantástico de Ayala Gurgel. Afianço que vale a pena.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 25/02/2024 - 04:34h

Um oficial de Justiça (amigo) em minha porta

Batendo à porta, porta,Por Carlos Santos

Mais uma vez tenho um oficial de justiça à minha porta. A batida ao portão, com o punho cerrado e em sequência tonitruante, não me deixa dúvida. Pergunto só para conferir mesmo:

– Quem é?

– Sou eu, Carlos Santos. É Otacílio, oficial de Justiça.

Nem precisava a declaração oficial.

O “toque” de Otacílio é personalíssimo.

Tomo a liberdade, para não atrasá-lo, de sair em trajes quase sumários, com meu físico de pintassilgo resfriado, pernas de talo de coentro à mostra.

Uso apenas uma toalha contornando a cintura, dorso “atlético” à exibição, como um gladiador apolíneo, espécie de deus grego do semi-árido.

Tenho essa naturalidade, em face da frequência com que os oficiais de justiça aportam aqui em meu muquifo, sempre trazendo citações e intimações da patota que está no poder e, que, não é do ramo.

Pelo menos do ramo de governar, que se diga.

Suas manoplas têm outras habilidades.

Bem, mas voltemos ao ponto central desta prosa.

Surpreendi-me. Nem intimação nem citação.

O amigo Otacílio, de manhã ainda cedo, pede desculpas pelo suposto incômodo. Quer apenas uma informação sobre outra pessoa a ser citada judicialmente. Oriento-lhe, ajudo-o. E, lógico, coloco-me sempre à disposição para esse ou outro fim ao meu alcance.

Como jurisdicionado, até cobro tratamento diferenciado, pois me considero o melhor por essas plagas, sem nunca me esconder ou colocar qualquer embaraço ao prosseguimento processual, desde a simples citação.

Dessa vez, na pressa não deu para oferecer pelo menos um copo com água ao Otacílio. Mais não posso. A geladeira parece um chafariz: só tem água.

Fica para uma próxima.

– Volte sempre – intimei ao me despedir.

Carlos Santos é editor e criador do Blog Carlos Santos (Canal BCS) e autor dos livros “Só Rindo – A política do bom humor do palanque aos bastidores” (I e II)

*Texto originalmente publicado no dia 20 de maio de 2011, quando eu era soterrado por dezenas de processos judiciais originários de um mesmo grupo político local.

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domingo - 18/02/2024 - 12:34h

Uma receita ensaística

Por Marcelo Alves

Michel de Montaigne (Reprodução revista Cult)

Michel de Montaigne (Reprodução revista Cult)

Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o exemplo do intelectual moderno. Talvez tenha sido o primeiro da sua estirpe. Como bem define Carlos Eduardo Ortolan (em “Montaigne: um ensaísta refinado”, Cadernos EntreLivros 4 – Panorama da Literatura Francesa, 2007), ele foi um “cavalheiro elegante que, recluso em sua propriedade em Bordeaux e cercado por vasta biblioteca como um herói solitário do pensamento, produziu reflexões sobre os temas mais variados.

Montaigne forneceu o tom para o estudioso erudito, o trabalhador intelectual incansável, às voltas com a leitura e a redação de seus artigos”. Montaigne foi um sábio, no que de mais positivo possa ter essa palavra. Praticante da “epoché” do ceticismo clássico, a suspensão do juízo diante da antinomia de duas formulações igualmente razoáveis e fundamentadas, evitava, entre outras coisas, falar tolices.

E Montaigne foi – ou, melhor, é – o autor de uma obra considerada seminal das letras universais, “Os ensaios” (“Les Essais”, 1580), que tratam de quase tudo e que fundam um novo gênero literário. Como anota o citado Carlos Eduardo Ortolan, “uma breve vista de olhos por suas páginas nos brindará com um cortejo imenso, heterogêneo e vazado, no melhor estilo clássico de uma variedade de temas que faria inveja a qualquer enciclopédia moderna. (…) Esse é um dos encantos da obra: os ensaios podem ser lidos sem compromisso com uma ordem rígida, abertos ao acaso e fruídos em sua sabedoria e elegância, mesmo nos tempos atuais”.

Mas, a partir do exemplo de Montaigne, o que faz alguém ser um bom ensaísta? E, em tempos tão “líquidos”, que pedem textos mais curtos, o que faz um bom cronista/ensaísta? Existe uma receita para um “fino corte ensaístico”?

Certamente, ensaios/crônicas devem ser sistemáticos somente até certo ponto. Os textos, espalhados em jornais e revistas, ou mesmo reunidos em livro, podem possuir um ou mais núcleos temáticos, é verdade. Mas o que realmente importa é que eles sejam o resultado das reflexões mais íntimas do autor, das suas preferências na vida ou mesmo do momento, enfim, do seu estado anímico, quando ele, tinta e papel à mão, ou defronte a uma tela de computador, deixa fluir suas ideias e sua imaginação.

O ensaísta/cronista não deve cair na tentação da rigidez acadêmica, embora não deva abrir totalmente mão dos elementos indispensáveis a uma formulação de ideias fundamentada e crítica. Nesse ponto, basta ser sensato.

Ele deve ser informativo. Conhecer o mundo, as pessoas e as ideias. Mas deve ser também opinativo. Ter posição. Não precisa – aliás, não deve – ser extremista. O ensaísta/cronista deve ter a coragem de ser moderado.

Pode ser irônico, até sarcástico, mas na medida certa. A ironia oferece expressividade a qualquer discurso. E o riso, para desespero dos casmurros de hoje, nos une.

Por derradeiro, o ensaísta/cronista de gênio deve saber interpretar o mundo. Para além de saber das ideias, é necessário compreendê-las. Deve sobretudo descobrir e dizer o ainda não dito a partir daquilo que já foi dito. Mark Twain (1835-1910) certa vez disse algo como: “Não existe uma nova ideia. É impossível. Nós simplesmente pegamos um monte de ideias antigas e, então, as colocamos em um tipo de caleidoscópio mental”. E assegurava o revolucionário Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

E, claro, o ensaísta/cronista deve concluir o seu raciocínio ou, pelo menos, sugerir alternativas coerentes de conclusão para o leitor. Pois essa é a minha receita de “fino corte ensaístico”. Que, confesso, copiei ou roubei, por partes, de muita gente.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 18/02/2024 - 08:52h

Pósdromo carnavalesco

Por Bruno Ernesto

Foto do Blog Jair Sampaio

Foto do Blog Jair Sampaio

Um bom carnaval produz duas coisas: ressaca e boas histórias.

O sonho de todo estrangeiro é curtir o carnaval no Brasil.

O famoso carnaval de Caicó, com seus bloquinhos de rua, não poderia ficar de fora do desejo de um amigo meu italiano que resolveu passar um carnaval em Caicó.

Naquele longínquo carnaval, ele sendo um grande apreciador de boas farras, correu para o Brasil e disparou para Caicó na sexta-feira de carnaval.

Findo o carnaval, na Quarta-Feira de Cinzas aportou em Mossoró com o grupo de amigos que aproveitaram a folia em Caicó.

Quando chegou, eu estava na casa da minha mãe aguardando o almoço e fui recepcioná-lo, pois fazia tempo que não nos víamos.

Quando desceu do carro, me deu um abraço, falou do grande carnaval que aproveitou, da bebedeira e, lá pelas tantas, caqueou os bolsos atrás do telefone celular.

Entrou no carro que veio e revirou tudo atrás desse celular, e nada de achar o bendito celular.

Como um bom italiano, perdeu logo a paciência e passou a disparar toda sorte de xingamento e, gesticulando, disse que furtaram seu celular lá em Caicó.

Naquela situação, saquei meu celular do bolso e perguntei qual era o número do celular dele e tratei de ligar a fim de ver se alguém atenderia à ligação e, assim, talvez conseguisse reaver o aparelho telefônico.

Por sorte, alguém atendeu de imediato. Ele arrebatou meu celular da minha mão e passou a interrogar a pessoa no outro lado da linha.

Enfurecido, ressacado e cansado após 5 dias de farra, numa mistura de português e italiano, passou a dizer que tinha sido furtado, que foi vítima de um rapina e que ia denunciar para a polícia.

Como não sabia o que o outro interlocutor falava, eu só podia ver a reação do meu amigo, cada vez mais enfurecido.

Num certo momento ele disse gritando e gesticulando:

– Maluco? Não sou louco! Você que rapinou meu celular!

– Vou ligar para polícia! Você vai ser preso!

Após uns minutos dessa peleja, o meu amigo olhou indignado para mim e, com o telefone ainda no ouvido disse:

– Bruno, o cara desligou! Perdi o telefone!

A alegria do carnaval dele acabou ali.

Tentei consolá-lo dizendo que daríamos um jeito de arrumar outro telefone para ele usar enquanto estivesse no Brasil.

Lá para as tantas, ele pediu para ligar novamente para o número do celular dele.

Imaginei que ele quisesse negociar com o “rapina” e reaver o celular, e tratei de ligar novamente.

Dessa vez ninguém atendeu. Entretanto, um telefone tocava dentro de uma bolsa que estava na calçada.

Meu amigo, ainda com o meu telefone ao ouvido, se agachou e abriu a dita bolsa; enfiou a mão e sacou o celular dele.

Ele me olhou e pediu para conferir o número do telefone que havia ligado antes e, furioso, disse:

– Bruno, você ligou para o número errado na outra ligação!

– Por isso que o cara estava me chamando de louco!

– Estava chamando ele de ladrão, rapina, e ele não entendia!

Até hoje quando chega a Quarta-Feira de Cinzas lembramos dessa história e damos altas gaitadas.

Carnaval é carnaval.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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domingo - 18/02/2024 - 06:46h

Inúteis notas de inutilidade pública

Por Marcos Ferreira

Ilustração da Web

Ilustração da Web

Esta semana, precisamente na terça, fui convidado a não participar de uma magnífica antologia com os mais expressivos e baludos contistas, poetas e cronistas de nossa província. Todos eles, devo admitir, mestres de uma poeticidade e ficção bacanas, medalhões da alta-roda destes confins do mundo.

Os romancistas ficaram de fora desse divisor de águas da pujança editorial de Mossoró, claro, porque romance é romance e não aceita compartilhar holofotes com os demais gêneros.

O livro, que pode atingir as quatrocentas páginas, sairá com uma musculosa tiragem de dez mil exemplares e selo da conceituada Pombagira, casa publicadora com sede em Salvador. Os integrantes da antologia vão custear cinquenta por cento da edição. Os outros cinquenta ficam por conta da Pombagira.

Metade da tiragem, assim, entrará na algibeira dos autores. Está programada uma glamourosa noite de autógrafos na imensa área de festas do hotel cinco estrelas Cabaré Palace. A estimativa de público é de mil convidados. O DJ Alouco, aclamado internacionalmente, virá do Rio de Janeiro para animar o megaevento.

O bufê, o cachê do artista carioca, o aluguel do espaço recreativo do Cabaré e metade dos cinquenta por cento das despesas gráficas que rolam para os escribas serão patrocinados pela Construtora Irmãos Pindaíba, pela Secretaria de Cultura e Câmara de Vereadores. A imprensa escrita, televisiva, falada e digital fará uma cobertura maciça.

Após o lançamento da coletânea, a obra ficará disponível para aquisição na livraria do Bodega Shopping, perto do Condomínio Alfavela, e nas plataformas de gigantes do e-commerces como Amazon e Mercado Livre.

No total, entre contistas, poetas e cronistas, a seleta reúne trinta nomes de notória inventividade literária. Quase todos são imortais das academias de letras de Mossoró e do Rio Grande do Norte. Cinco dessas cabeças pensantes, para a glória do nosso mundo das palavras, já conquistaram o prestigioso Prêmio Tartaruga, a mais cobiçada honra da literatura tupiniquim.

A Feira do Livro de Mossoró, desde sempre, é uma vitrine exclusiva e fiel dos nobres bruxos e bruxas do Cosme Novo.

Considero uma tremenda sacanagem o fato de tantos e tão bons escritores do Brasil nunca terem ganho um Nobel. Outra baita injustiça é nenhum literato da terra dos monxorós sequer ser indicado para o galardão da Academia Sueca. Absurdo do absurdo! Bom! Enquanto o Nobel não chega para algum dos meritórios autores mossoroenses, e sem nada de mais importante para fazer, hoje eu resolvi divulgar (na melhor das intenções!) estas inúteis notas de inutilidade pública.

Quem sabe num futuro não muito remoto, quando os algarismos da loteria enfim caírem na minha cuca, eu seja convidado para fazer parte de uma segunda antologia mossoroense dessa magnitude. A menos que não me considerem um escritor.

Mas com Deus, saúde e dinheiro tudo é possível. Deixem estar.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 18/02/2024 - 04:34h

Ficar em casa

Por Carlos Drummond de Andrade

O poeta/contista/cronista em seu apartamento em 1980 (Foto: Rogério Reis)

O poeta/contista/cronista em seu apartamento em 1980 (Foto: Rogério Reis)

Passar quatro dias e quatro noites em casa vendo o carnaval passar; ou não vendo nem isso, mas entregue a uma outra e cifrada folia, que nesta quarta-feira de cinzas abre suas pétalas de cansaço, como se também tivéssemos pulado e berrado nos clubes.

Não ligar televisão, esquecer-se de rádio; deixar os locutores falando sozinhos, na ânsia de encher de discurso uma festa à base de movimento e de canto. Perceber apenas o grito trêmulo, trazido e levado pelo vento, de um samba que marca a realidade lúdica sem nos convidar à integração.

Beneficiar-se com a ausência de jornais, que prova a inexistência provisória do mundo como arquitetura de notícias.

Ter como companheiro o irmão gato Crispim, exemplo de abstenção sem sacrifício, manual de silêncio e sabedoria, aventureiro que experimentou a vertigem da luta livre nos telhados e homologa a invenção da poltrona.

Penetrar no vazio do tempo sem obrigações, como num parque fechado, aproveitando a ausência de guardas, e descobrindo nele tudo que as tabuletas omitem.

Aceitar a solidão; escolhê-la; desfrutá-la. Sorrir dos psiquiatras que falam em alienação do mundo e recomendam a terapêutica de grupo. Estimar a pausa como um valor musical, o intervalo, o hiato. O instante em que a agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som.

Andar de um quarto para outro, sem ser à procura de objetos: achando-os. Descobrir, sem mescalina, as cores que a core esconde; os timbres entrelaçados nos ruídos.

Olhar as paredes, ou melhor: olhar as paredes, em torno dos quadros.

Sentir a casa com um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém.

Habitar realmente a casa, quatro dias: como ilha, fortaleza, continente: infinito no finito.

Reconsiderar os livros; arrumá-los primeiro com método, depois com voluptuosidade, fazendo com que cada prateleira exija o maior tempo possível; verificar que é preciso antes tirar a poeira de um, remover a boba capa de celofane que envolve a encadernação de outro.

Reler dedicatórias; abrir ao acaso os livros de poetas que preferimos e que infelizmente não são os mais modernos nem os mais célebres; copiar meia estrofe por onde corre um arrepio verbal; separar volumes que não nos falam mais nada e que devem tentar seu destino em outras casas.

Sentir chegada a hora dos álbuns de pintura com pouco ou nenhum texto, e dos volumes iconográficos que nos contam Paris ou a vida de Mallarmé.

Viajar em fotografias; sentir-se imagem flutuando entre imagens; a terra domesticada em figura, tornada familiar sem perda de sua essência enigmática. Reconhecer que muitos livros comprados a duras penas, pedidos ao estrangeiro ou longamente minerados nos sebos, não têm mais do que essa oportunidade de comunicação durante o ano; deixar que fiquem a sós conosco e nos confiem seu segredo.

Admitir a fome, sem exigência de horário, e matá-la com o que houver à mão; renunciar à ideia de almoço e jantar, em reverência ao sagrado direito que assiste a todos, inclusive e principalmente às cozinheiras, de brincarem o seu carnaval, achar mais gosto nessa comida, porque não é a regulamentar nem é seguida de nada: todas as obrigações estão suspensas, e só valem as que soubermos traçar a nós mesmos.

Descortinar na preguiça um espaço incomensurável, onde cabe tudo; mas não enchê-lo demais, devassá-lo à maneira de um explorador que não quer ser muito rico e sente tanto prazer em descobrir como em procurar.

Assim vosso cronista passou o carnaval: sem fugir, sem brincar, divertido em seu canto umbroso.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) foi poeta, farmacêutico, contista e cronista brasileiro

*Texto originalmente publicado em 3 de março de 1960 no jornal Correio da Manhã do RJ.

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  • Cachaça San Valle - Banner Rodapé - 01-12-2024
terça-feira - 13/02/2024 - 16:34h
No sertão

Todos se pintam de alegria

BR-405 à tarde de 8 de fevereiro, Oeste do RN (Foto: BCS)

BR-405 à tarde de sexta-feira (9 de fevereiro de 2024), Oeste do RN (Foto: BCS)

Carlos Santos

Na boleia, caroneiro, testemunho o sertão no seu momento mais sublime.

A chuva abre caminho na BR-405, em pleno Oeste do RN. Pede passagem. Seja bem-vinda, porque resolvi ir no seu rastro.

Vou-me embora para a paz das horas que não têm fim, em busca da conversa despreocupada na calçada e daquelas crianças que vivem estórias da Terra do Nunca.

O Carnaval por lá não tem pierrô nem colombina. A gente não vai atrás do trio-elétrico.

Mas, todos se pintam de alegria.

Eu, também.

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domingo - 11/02/2024 - 10:22h

Direito, séries e seriados – papel e tela

Por Marcelo Alves

Ilustração Web

Ilustração Web

Sou um efusivo defensor das superpotencialidades das séries e dos seriados de TV para fins de estudo sério do direito. Voluntariamente confesso.

Todavia, devo reconhecer o fato de que o direito se desenvolveu ao longo de sua história, fundamentalmente, na forma escrita. A prática do direito e o compartilhamento do saber jurídico se deram, não podemos negar a história, essencialmente com “a tinta posta no papel”. Se o direito é uma ciência, se é uma arte, se é um gênero literário, ela ou ele se fez (e ainda se faz), sem dúvida, majoritariamente através da escrita.

Mas tem de ser necessariamente assim? Ou tem de ser somente assim? Como indaga Julio Cabrera (em “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, Editora Rocco, 2006): “Existe alguma ligação interna e necessária entre a escrita e a problematização filosófica [no nosso caso, jurídica] do mundo? Por que as imagens não introduziriam problematizações filosóficas [ou jurídicas], tão contundentes, ou mais ainda, do que as veiculadas pela escrita?”.

Não enxergo qualquer coisa na essência do direito que o “condene” a se manifestar tão somente pelo meio da escrita como conhecemos, muito menos apenas através de enfadonhos códigos ou tratados. Pelo contrário.

Já disse, entre outras coisas, que: (i) as séries e os seriados jurídicos testemunham a visão sobre o mundo do direito existente em determinada sociedade em certa época, e esse testemunho é bem mais acessível ao cidadão, para fins de reconstrução da imagem que se tem do direito e de seus atores, do que os áridos estudos achados em livros de caráter estritamente científico; (ii) eles podem ser um bom instrumento para que os estudantes e os profissionais no mundo real repensem e reconstruam com aprimoramento os seus papéis e as suas imagens na sociedade; (iii) esses legal dramas de regra resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados, sendo frequentemente, a partir da dramaticidade casuística, excelentes aulas de direito; e (iv) a produção televisiva, ao mesmo tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular, também influencia a construção desse direito, subversivamente antecipando muito das modernas teorias e tendências do direito, tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc.

Aqui adiciono: a TV até possui uma linguagem mais adequada que a linguagem da escrita, sobretudo da nossa escrita técnico-jurídica, para expressar nuances, intuições e elementos afetivos que também permeiam – e assim deve ser – o direito. Como explica Julio Cabrera, diferentemente da letra fria da lei e dos manuais de direito, os conceitos-imagem do cinema (e da TV, ajunto), por meio da “experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc.”. E assim eles têm um valor cognitivo e persuasivo não só pela informação objetiva que transmite, mas também – e muito – pelo seu componente emocional.

Com certeza não estou só nessa empreitada transdisciplinar. No final do ano passado, eu mesmo prefaciei um maravilhoso livro, “O Direito e as séries – temporada 2”, organizado por Adelmar Azevedo Régis e Nicole Leite Morais, que serve como perfeito libelo para que os profissionais do direito incluam as séries e seriados, incluindo as obras de ficção, em suas formações e atividades jurídicas, na academia e na vida profissional cotidiana.

Veja sequência de crônicas sobre esse tema

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Parafraseando palavras de André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (em “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, texto constate do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, Livraria do Advogado Editora, 2008), a ficção, o cinema e a TV abrem o “universo de análise do fenômeno jurídico, na medida em que este deixa de ser descritivo, conforme exige o positivismo, e torna-se narrativo e prescritivo”, demonstrando “que o direito é um sistema cultural, do qual participam a imaginação e a criatividade literária [e cinematográfica/televisiva], como componentes da racionalidade jurídica”.

E assim grito, em prol da unidade dessas duas culturas, o direito e a arte, viva!

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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