terça-feira - 21/10/2014 - 08:13h
Ponto de vista

Nada vale uma indignidade

Por Honório de Medeiros (Blog Honório de Medeiros)

Estamos no fim da corrida eleitoral. Neste espaço, apesar de minha posição firme em defesa dos meus candidatos, creio não ter perdido, em qualquer momento, o respeito por quem discorda de mim.

Este é o testemunho que eu almejo de quem me leu.

Entretanto, lamento, e lamento muito a sociedade dividida que a eleição vai deixar como legado.

Lamento esse clima de ódio gratuito, típico de quem não compreende que tudo passa, e o tempo é implacável.

Lamento pelas amizades perdidas, as incompreensões, os desentendimentos.

Culpo os líderes, sua ânsia de poder, sua incompreensão do verdadeiro papel de alguém que momentaneamente está à frente do caminho.

Nada vale uma indignidade.

Às vezes uma derrota é tudo quanto precisamos para crescermos enquanto humanos.

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Categoria(s): Artigo / Opinião
domingo - 14/09/2014 - 11:43h

A opressão do Estado que se move contra um ser humano

Por Honório de Medeiros

Nada tão opressivo quanto o Estado se movendo contra um ser humano. A opressão chega dissimulada por leis, sejam elas constitucionais, complementares, ordinárias, regulamentações, portarias, ofícios-circulares, etc, usadas à exaustão por inocentes-úteis ou jagunços a serviço da máquina de moer gente.

Com que prazer um servidor público nega, baseado em uma portaria, um direito de um cidadão, mesmo que esse direito esteja amparado em uma lei maior…

De quando em vez me deparo com a notícia de alguém que luta, de todas as formas possíveis e imagináveis para provar que está vivo! Isso mesmo: que está vivo. Está vivo mas está morto para o Estado, a burocracia assim determinou.

Contra o atestado do seu óbito, emitido erroneamente pelo Estado, sequer valem suas impressões digitais e um certificado de qualquer médico do SUS afirmando que aquele cidadão que lhe procurou tem todos os sinais vitais em perfeito funcionamento.

O cidadão sequer desconfia do quanto é oprimido. Bestificado, anulado, alienado pelo circo multimídia que o Estado lhe proporciona, segue sua vidinha chinfrim até o último suspiro, dando satisfação de seus atos a todos quanto possam ameaçar sua paz de ameba.

Vive de salamaleques ao chefe próximo ou distante. Salamaleques comprados pelos reais a mais em sua conta bancária, o afago condescendente do detentor do Poder…

Quando não é a rotina massacrante, toda manipulada pelo Estado, que lhe assegura pagar o personal-trainer, o cirurgião-plástico, o veículo importado, o vinho francês, a vaidade tola.

Ai de nós…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 07/09/2014 - 11:26h

Feudalismo, coronelismo e cangaço

Por Honório de Medeiros

Convido-lhes a empreender, comigo, uma ousadia.

Para tanto precisamos recordar o que sabemos acerca do feudalismo, esse nicho histórico que começou com a queda de Roma – gosto de imaginar a cena de Hipona, da qual Santo Agostinho era bispo, incendiada pelos bárbaros enquanto ele agonizava, como sendo o verdadeiro marco inicial – e terminou com o início da idade moderna, mais precisamente, segundo vários historiadores, com a descoberta da América por Cristovão Colombo e o início do absolutismo, cujo primeiro momento, e ninguém há de me convencer do contrário, ocorreu quando Felipe, o Belo, criou seu próprio papa, o de Avignon, e dizimou os templários, fortalecendo a instituição do Estado.

O feudalismo – sabemos todos – calcava-se na propriedade da terra e na rígida divisão da Sociedade em nobres, clero e servos das glebas. Os nobres e o clero eram aliados, claro, para espoliar o povo.

O epicentro dessa estrutura de poder era o Barão feudal, latifundiário, em cujo entorno gravitavam seus vassalos, ou seja, proprietários de terra de menor importância, e a nobreza eclesiástica. A ele pertencia o direito de aplicar o baraço e o cutelo – ou seja, de criar, interpretar e aplicar as leis ou costumes. Sua vontade era lei.

A IGREJA exercia papel fundamental nesse sistema, por vários motivos: em primeiro lugar era detentora de muitas riquezas; em segundo lugar sua nobreza era formada pelos filhos segundos dos senhores feudais – os primeiros seguiam o caminho das armas; e, em terceiro, a ela cabia a formatação ideológica que assegurava o domínio da nobreza e do clero, bem como a fiscalização de possíveis desvios – instrumentalizada por intermédio da confissão e delação – bem como a punição dos recalcitrantes via inquisição.

Brigavam muito entre si, os nobres, disputando terra e prestígio político.

Quem tinha terra, tinha Poder; quem tinha Poder, tinha terra. Por exemplo: a primeira cruzada não foi à Terra Santa, como comumente se crê. Foi contra os Cátaros, uma heresia que ameaçava dominar todo o Sul da França, sob o beneplácito do Conde de Toulouse.

Contra os Cátaros levantou-se a Igreja, ameaçada em sua soberania ideológica, e os barões feudais do norte da França, liderados por São Luis, ou Luís XI, como queiram. Na verdade o pano de fundo dessa cruzada foi a disputa pelas ricas terras do sul da França. Nada mais.

Para essas brigas mobilizavam os nobres seus vassalos, seus servos, bem como exércitos de mercenários. À toda mobilização acompanhava a Igreja, abençoando ou punindo, conforme o caso.

Pois bem, embora ainda haja muito o que se dizer acerca do feudalismo, façamos uma parada estratégica e utilizemos o “desenho” – chamemo-lo assim – de sua estrutura de poder para analisar o nicho histórico brasileiro ao qual denominamos de coronelismo.

Há alguns, para não dizer vários, autores que dizem não ter havido feudalismo no Brasil. Eu, pelo meu lado, com fulcro em Raymundo Faoro, Gustavo Barroso e Câmara Cascudo, penso que tal não procede. Analisemos.

O coronelismo também se calcou na posse da terra e no prestígio político. O coronel – verdadeiro senhor feudal – era o epicentro de uma estrutura de poder.

Lampião (centro), símbolo de uma discussão controvertida (Foto: reprodução)

Também ele tinha, enquanto senhor feudal, seus vassalos, os proprietários menores de terra, a si ligados por laços de compadrio e interesses mútuos, que lhe prestava vassalagem. O coronelismo dependia, ideologicamente, da igreja, que tratava de fiscalizar e punir desvios da ortodoxia, como o demonstra tudo quanto ocorreu com Padre Cícero.

E dependia da confissão e delação, principal forma de obtenção de informação por parte da igreja, e sempre à disposição, seus resultados, do coronel que a mantinha. Quem não lembra da estreita relação do Coronel com o Padre, em o Alto da Compadecida, de Ariano Suassuna?

O coronel tinha os seus servos da gleba, empregados que viviam às custas dos sobejos do grão-senhor. E da mesma forma que no feudalismo, a vontade do Coronel era lei.

Ele era senhor de baraço e de cutelo. Claro, brigavam entre si disputando terra e prestígio, briga essa que arrebanhava vassalos – os compadres; servos da gleba, os jagunços; e mercenários, os cangaceiros, como nos demonstra a rica história do Cariri cearense.

Agora talvez os senhores estejam se perguntando: e qual a relação entre tudo isso e Chico Pereira? A relação é a seguinte: Chico Pereira, assim como Jesuíno Brilhante, o mais remoto, passando por Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião, Corisco, e outros menores, tal qual Cassimiro Honório, e por aí segue, não eram servos da gleba.

Eram proprietários rurais em maior ou menor escala. Todos ligados a coronéis, todos ligados a alguma estrutura de Poder detendo parcela dele. Ou seja, os grandes líderes cangaceiros estão mais próximos da nobreza da terra que do proletariado.

Em sendo assim, não faz o menor sentido a teoria do banditismo social, de Hobsbawn quanto aos cangaceiros. Pensa assim, por exemplo, aproximadamente, Luiz Bernardo Pericás, em “Os Cangaceiros”.

Tampouco faz sentido a teoria que aponta os cangaceiros enquanto desviantes, da qual faz uso Frederico Pernambucano de Mello.

Muito menos a teoria marxista da luta de classes, calcada em Althusser, de tantos outros.

O cangaço é resultante de brigas intestinas entre famílias que dispunham de terra e prestígio. A briga era no seio do coronelismo. Era o coronelismo. Todo líder cangaceiro, com raras e honrosas exceções – até mesmo Sabino Gore, por exemplo, está inserido nesse contexto.

O referencial teórico aqui talvez seja Gaetano Mosca e sua teoria da classe política, enquanto situação limite em um plano mais complexo, ou seja, a teoria darwiniana. Nesse sentido concluo propondo o seguinte:

1) que se faça o estudo do cangaço a partir do coronelismo, ambientando o epifenômeno no fenômeno;

2) que se estude Chico Pereira, por exemplo, a partir do panorama político de sua época, no Sertão paraibano.

Chico Pereira não era um bandido social, e embora fosse um desviante, no sentido de que se voltou contra o sistema legal de sua época, essa informação nada acrescenta quanto a entender causa e efeito de sua existência enquanto cangaceiro.

Por fim, lembro uma consequência imediata da assunção desse modelo teórico: a verdeira história do ataque de Lampião a Mossoró é a história da briga entre coronéis paraibanos e coronéis norteriograndenses por prestígio político no Oeste e Alto Oeste potiguar.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 31/08/2014 - 08:13h

Filhos, melhor tê-los…

Por Honório de Medeiros

Conhecidos, tenho muitos. Muitos, mesmo. Não sei se em decorrência do tempo vivido, dos meus defeitos ou qualidades, se é que tenho algumas. Talvez uma mistura disso tudo.

Amigos, entretanto, tenho poucos. Conto nos dedos. Alguns, antigos. Outros, mais recentes. A todos dispenso o mesmo afeto que pretendo gentil e leal. Pretensão? Talvez.

Entretanto tenho isso como certo posto que recebo, de volta, além do que mereço.

Percebo que, com o passar dos anos fico mais ensimesmado, o que pode parecer, para alguns, distanciamento, sem o ser. Ao contrário. Nessa amiudada conversa comigo mesmo há sempre muito espaço para o afeto tão especial que é a amizade.

Mas agora já não há a necessidade juvenil do contato pessoal constante, tão comum nos anos em que precisávamos viver todos os dias como se não houvesse um depois-de-amanhã. Digo tudo isso tendo em vista que para eles, meus amigos, escrevo essa notícia singela, dando conta de uma semana, já passada, especialmente feliz em minha vida.

Vai dessa forma, fora do tempo exato: em mim a maturação das coisas do coração é lenta. Tão feliz que eu quis partilha-la, e, ao mesmo tempo, também quis que todos os outros pudessem saber desse partilhamento. Em assim sendo, tratei de publicá-la onde quem me conhece sabe que pode encontrar algum texto meu, caso queira se dar ao trabalho de me ler.

É que meu filho se formou.

A se crer em sua história pessoal, vai cuidar das pessoas, enquanto médico, com o mesmo carisma que o torna, aos meus olhos de pai, afetuosos, mas de forma alguma pouco críticos, tão querido pelos que o cercam.

Mais que sua formatura em Medicina louvo, nele, a ética, a fé, o foco, e a disciplina que o levaram a realizar um sonho de criança. Orgulhoso constato, nele, qualidades que eu não tenho, ao mesmo tempo que faço vista grossa para os defeitos meus que porventura tenha herdado. Tenho certeza que o tempo vai cuidar de esmerilhá-lo.

Creio nele, enquanto pessoa, e aprendi a respeitar sua angústia com a impossibilidade de fazer mais do que gostaria e pode fazer. Peço a Deus que o mantenha assim, sempre refém de um caráter sem mácula.

E minha filha ingressou, aos dezesseis anos, na mesma semana das festas do seu irmão, no curso de Direito, após uma batalha judicial e burocrática que tentou impedir sua inteligência viva, instigante, sua voraz capacidade de leitura, sua habilidade natural para os idiomas, de pousar no ambiente apropriado para quem anseia, como ela, por entender o mundo no qual vive para melhorá-lo, ou seja, na Academia. Não pude deixar de me emocionar quando a vi subindo lentamente os degraus que conduzem ao curso de Direito da mesma Universidade Federal onde estudei, fiz política estudantil nos estertores da Ditadura, e me formei.

Naquele momento se fez presente, além de qualquer outro, a consciência da velocidade com o qual o tempo nos aniquila e nos pereniza por intermédio dos filhos. E em assim sendo, após comunicar a vocês, meus queridos amigos, o que se passou nesses dias tão felizes para mim, eu lhes peço que compartilhem, comigo, esse sentimento singular, tão humano, que é a felicidade de se sentir, talvez em um dos aspectos mais importante de todos, de certa forma realizado.

Fosse eu poeta, não tendo feitos a contar, anônimo que sou, e cada dia mais feliz com essa condição, mas livre na justa medida em que um homem pode ser em tempos que tais; sem dever a ninguém, exceto ao meu próprio esforço, o pão, o teto, e o transporte que são meus, escreveria para eles um poema tão belo quanto possível para lhes dizer do meu orgulho e da minha alegria, nestes dias que correm rápidos, em tê-los como filhos, em partilhar com eles minha história, e em ser testemunha de tudo quanto estão a construir honradamente.

Como não sou, bastei-me nessas linhas que se mal-traçadas, são sinceras, e termino agradecendo a atenção dos amigos e desejando, aos meus filhos, que Deus lhes torne, sempre, seu caminho cada vez mais leve.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Estado do RN

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domingo - 20/07/2014 - 08:56h

De pai e mãe: os meus

Por Honório de Medeiros

* Para Elza Sena, onde ela estiver.

Para quem não gosta de adjetivos, aviso logo: não leia o texto. Aliás, não sei por que essa neurose contra adjetivos.

Um adjetivo é um instrumento: se mal usado, compromete; se bem usado, acrescenta. Texto somente com substantivos é igual à mulher sem um toque de batom, um ajeitado no cabelo, um olho delicadamente delineado, uma gota de perfume. Falta poesia.

Pois bem, a minha mãe era extrovertida, determinada, solar; meu pai, por sua vez, introvertido, cismarento, noturno. Antípodas. Completavam-se. Entendiam-se pelo olhar. Conversavam pouco entre si falando.

Tinham longas conversas em silêncio. Poucas vezes os vi amuados um com o outro. Anos depois, já maduro, minha mãe me confessou que muito cedo tinham feito um pacto: se brigassem não dormiriam sem se beijar e desejar boa noite. “Quebrava logo o gelo”, dizia ela.

Lá em casa as tarefas eram bem demarcadas: ela, administração; ele, o financeiro. Quem lidava, por exemplo, com o pessoal que vinha fazer algum serviço na nossa antiga casa às margens da Igreja de São Vicente, era minha mãe. Dura, detalhista, sem papas na língua, amenizava tudo isso tratando os trabalhadores por igual e os convidando a partilharem nossa mesa comum.

Papai, discreto, observava tudo de longe. E ficava fazendo contas, controlando o parco orçamento doméstico, providenciando o pagamento.

Demonstravam afeto de formas bastante diferentes: mamãe abraçava, beijava, ficava arrodeando cada um de seus filhos e sobrinhos, perguntando, dando conselho, participando diretamente.

Papai somente me beijou uma vez, em toda a sua vida, quando me viu sair de casa, aos quatorze, em busca das ilusões da cidade grande. Beijou-me na testa. Marejou os olhos. Fiquei abismado.

Engoli meu choro. Amava de longe, de forma mansa, mas intensa. Chegava na hora certa, maneiroso, solidário. Mas não era de demonstrações afetivas.

Profundamente religiosos, assim o eram, também, de forma muito diferente: enquanto ela cria de uma forma bastante prática, manifestada por intermédio de sua participação em tudo que dizia respeito à Igreja de São Vicente, do coral às novenas, ele, pelo seu lado, movia-se silenciosamente nos meandros da fé.

Quando morreu, era Ministro da Eucaristia. E, ao contrário de minha mãe, era dado às orações solitárias, conversas particulares entre ele e os santos de sua estima.

Ambos de famílias antigas, tradicionais, sequer pegaram o fim do fausto familiar. Foram, desde o início, e com muita dificuldade, da pequena classe média: minha mãe funcionária pública, meu pai empregado de uma empresa familiar de beneficiamento de algodão.

No final, dois aposentados, contando cuidadosamente o dinheiro mirrado que o Governo depositava em suas contas bancárias no final de cada mês. Mas nada relevante lhes faltou: a casa era antiga, mas boa, a mesa era farta, os filhos estudavam em bons colégios.

Tinham, até mesmo, um fusquinha comprado zero quilômetro com o dinheiro do FGTS da aposentadoria de meu pai.

Eram respeitados e queridos na cidade que escolheram para viver e morrer.

Penso, hoje, que minha mãe foi feliz, vivendo sempre o momento presente, de sua forma intensa, visceral. O mesmo não sei dizer de meu pai. Terá sido ele feliz?

Acho que ter se afastado da sua viola amada, por injunções familiares, e trabalhado anos a fio no mesquinho e hostil ambiente da empresa onde era empregado, acentuou sua melancolia de nascença. Entretanto tinha orgulho dos filhos. E seus olhos claros, esquivos, brilhavam quando chegavam as boas notícias que cada um de nós lhe levava. Aparecia um sorriso rápido no rosto. E sua doçura natural se acentuava.

Desisti de me questionar acerca da existência de Deus. Qual minha mãe acredito e pronto. Ponto final.

Penso como Pascal: em crer, mal não há. Talvez haja, também, um fio de esperança a alimentar minha crença: a de que, em morrendo, possa reencontrá-los, sentir o abraço com cheiro de lavanda de minha mãe e o sorriso de meu pai em sua cadeira de balanço enquanto dedilha a viola.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN.

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domingo - 29/06/2014 - 06:46h

“Durmo novo e acordo velho”

Por Honório de Medeiros

* Para François Silvestre

Seu Antônio de Luzia, oitenta e seis anos, sentado em sua cadeira de balanço, na calçada de sua casa, no Sítio Canto, em Martins, é o próprio símbolo da passagem inalterável das manhãs, tardes, noites, madrugadas, do ritmo lento dos dias que se sucedem bucólicos, tais e quais as contas debulhadas do rosário de Sinhá, oitenta e poucos não admitidos, que deslizam por entre seus dedos, à hora do ângelus, enquanto seu pensamento vagueia nos limites de sua circunstância, e nada escapa do seu olhar dardejante e de seus ouvidos “de tuberculoso”, como me confidenciou.

Pergunto a Seu Antônio acerca das coisas que estão mudando mundo afora, em uma rapidez vertiginosa, impossível de serem acompanhadas. Lembro a ele a chegada do homem na Lua, o computador, o celular…

Ele fica calado um bocado de tempo.

Quando penso que esqueceu o assunto, ergue um pouco o braço e aponta com o dedo um passante, quebra o silêncio do final-de-tarde e me diz: “desde que o mundo é mundo, podem as coisas ter mudado, mas o homem, meu filho, é o mesmo de sempre”.

“Quando eu era de menino para rapaz”, continua, “pensava que as pessoas lá fora eram diferentes. Viajei, corri légua, vi e ouvi muitas coisas que eu prefiro esquecer, e voltei. Fico comparando o homem que vive lá fora com o homem que vive aqui, e não vejo diferença. Lá se mata, como aqui; lá se bebe, como aqui; lá se trai, como aqui; lá se rouba, como aqui. Tudo que existe lá fora, maior, existe aqui, menor”.

Fez-se silêncio, novamente, durante algum tempo.

“Eu às vezes penso” prosseguiu, “que tanto faz como tanto fez, o homem se engana demais com as coisas, é como a roupa que a mulher veste: pode ser de qualquer tipo, mas ela é sempre a mesma”.

E, depois de beber um gole de café, arrematou: “lá fora o tempo passa e eu não vejo: durmo novo e acordo velho; aqui, eu vejo que o tempo não passa: faz uma eternidade que estou vivo!”.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do Estado do RN

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domingo - 22/06/2014 - 20:51h

De criminalidade

Por Honório de Medeiros

Diferente da corrente majoritária hoje nas análises sociológicas acerca das causas da criminalidade e suas consequências, defendo uma abordagem, acerca do tema, de caráter darwinista. Ou seja, penso que está mais que no tempo de superar a falida postura de atribuir às condições sociais, à pobreza, por assim dizer, o surgimento da criminalidade.

A pobreza não é causa, é um dos ambientes do surgimento da criminalidade.

Para o senso comum, principalmente o brasileiro, é fácil entender essa hipótese: basta acompanhar, diariamente, o noticiário acerca da corrupção. Existe uma lógica perversa, típica, por trás da difusão e aprofundamento dessa manobra diversionista que é atribuir á pobreza o surgimento da criminalidade.

É uma lógica de gueto, secessionista, da qual se apropriam os interessados em usufruir da confusão que ela origina. Acerca desse tema tive oportunidade de escrever um artigo que submeto à atenção do leitor: //honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2012/10/o-que-leva-o-jovem-ao-crime.html.

Em relação ao reconhecimento desse “ethos da hipermasculinidade”, ou seja, trocando em miúdos, “a busca do reconhecimento por meio da imposição do medo”, a literatura também se manifesta, mesmo que obliquamente, no sentido de reconhecê-la como uma das causas da criminalidade.

Leiam atentamente o trecho a seguir, pinçado de “Maigret hesita“, do genial Georges Simenon, escrito em 1968:

“É provável que lá também encontrasse um pobre sujeito que havia realmente matado porque não podia agir de outro modo, ou então um jovem delinquente de Pigalle, recém-chegado de Marselha ou da Córsega, que eliminara um rival para se fazer crer que era um homem.”

Ai está o senso comum e a literatura mais uma vez mostrando de forma inequívoca por qual razão deve ser um ponto-de-partida para o conhecimento.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 01/06/2014 - 07:57h

De gentileza, cortesia, polidez e hipocrisia

Por Honório de Medeiros

As pessoas confundem gentileza com fragilidade. Acham, embora não externem, que quem é gentil é fraco.

Elas não expressam o que sentem, às vezes, porque não conseguem abstrair a sensação que lhes acomete. Mas agem como se o conseguissem. Origina-se, daí, a condescendência, o menoscabo. É fácil entender essa situação.

A gentileza é um degrau além da cortesia que, por sua vez, está acima da polidez.

Esta pressupõe um distanciamento, um desinteresse pelo interlocutor, embora, talvez, um certo respeito cético pelas convenções humanas.

A cortesia direciona a atenção das pessoas para seus interlocutores, podendo resvalar, se não houver algum cuidado, em plena hipocrisia. Já o gentil é, em todos os aspectos, realmente interessado e respeitoso com seus interlocutores.

Poderíamos dizer que o gentil é um romântico; o cortês, bem-educado; e o polido, distante, até mesmo frio.

Tudo isso para dar razão a um amigo que cansado de ser confundido com alguém a quem se possa tratar com condescendência, anda migrando lentamente para a polidez. Embora não o faça, ainda que por um pouco de hipocrisia, em sua mente, da mão que estende aos outros somente vai a ponta dos dedos.

Indagado acerca de sua mudança por aqueles que lhe são próximos, culpa, sarcasticamente, o avassalador crescimento da hipocrisia ingênua, aquela que o vulgo batizou de falsidade, tão diferente da hipocrisia irônica, na qual quem fala sabe que quem o escuta percebe facilmente que ali somente se vive um jogo, sutil, cujo resultado é sempre uma soma zero.

Eu, pelo meu lado, penso que na verdade o que acontece é que esse meu amigo vai, a marcha batida, no rumo do ceticismo.

Nada mais que isso.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do  RN

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domingo - 18/05/2014 - 11:05h

Copa do vexame?

Por Honório de Medeiros

O Presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Augusto Nardes, escancarou o que muitos já dizem aos berros nos quatro cantos deste País sem eira, beira, nem cumeeira: “o Brasil vai passar vergonha na Copa”

Ele não estava se referindo ao futebol, muito embora isso também possa acontecer. Referia-se às obras inacabadas, apesar dos rios de dinheiro despejados nos bolsos dos espertos de sempre.

Ora, ora, não é que o Presidente Nardes foi contido? Muito contido. Deveras contido. Sequer mencionou, por exemplo, essa vergonha nacional que é o menosprezo com o qual somos tratados pelas operadoras de telefonia.

Fazem o que querem conosco. Não são punidas. E quando o são, devem rir da punição recebida. Como se explica que continuem a fazer o que fazem, sem que as autoridades tomem providências? Será corrupção? Não são essas autoridades acometidas dos mesmos problemas que nós, os reles mortais?

Conseguem elas ligar quando querem e manter a ligação durante a conversa?

Nem mencionou a (in)segurança pública. Hoje somos reféns dos bandidos, que nos encurralam em nossas casas, e furtam, roubam, matam, estupram, em escala cada dia maior, mas, também, do aparelho policial-militar que, ao cruzar os braços com seu oportunismo grevista, passa a senha para o crime surgir dos esgotos e atacar à luz do dia.

Tampouco mencionou a saúde pública. O povão, aqui, além da classe média, está se acostumando ao caos que é a saúde pública. As autoridades lidam com a questão de tal forma que já se espraia, nos corações e mentes, a sensação de que tudo isso é assim mesmo, não tem como mudar, e se mudar, é para pior.

Enquanto isso somos espoliados pela máquina de arrecadação do Estado em níveis cada dia mais cruéis. Ou seja: pagamos cada dia mais, por cada dia menos e pior.

Também não mencionou a corrupção generalizada, onipresente, no nosso dia-a-dia. Nada, hoje, no Brasil, parece funcionar sem corrupção. Nada. Essa face horrenda do País estará à disposição dos turistas que vierem, em massa, acompanhar a Copa do Mundo, desde seu contato inicial com os motoristas de táxi, passando por momentos inesquecíveis nos bares, restaurantes e similares.

Torçam, eles, para não terem que manter contato com a burocracia nacional. Torçam muito. E torçam ainda mais para não terem que manter contato com o aparelho repressor do Estado.

Enfim e por fim, não mencionou o Ministro que nem mesmo o brasileiro – pelo menos os das grandes cidades – é mais esse primor de cordialidade e hospitalidade que o Governo apregoa e espera reinar durante o evento. Muito pelo contrário. O brasileiro anda muito mal humorado. E com razão.

Seu dia-a-dia – excluo os bem nascidos -, o dia-a-dia da imensa maioria dos brasileiros, piorou, vem piorando, vai piorar, e a esperança é, hoje, mercadoria em falta.

Não resta a menor dúvida: o Ministro Nardes foi muito comedido…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 11/05/2014 - 09:20h

Não vejo a luz no fim do túnel; sequer vejo o túnel

Por Honório de Medeiros

Encurralada, extorquida, abandonada, segue, inerme, a classe média brasileira, bem como a base da pirâmide social, ante a incompetência e a roubalheira generalizada que grassa nesse País.

A corrupção, hoje, faz parte da alma brasileira.

Está em toda a parte, em todos os momentos, em todas as classes.

A falta de respeito dos dirigentes do Estado para com a Sociedade atinge níveis alarmantes. É um câncer. Em metástase. Não sei o que seria do Brasil se não fosse o Ministério Público e alguns juízes abnegados.

Ouço, aqui e ali, pais inconformados, embora passivos, declararem seus sonhos com a ida dos filhos para outros países, onde a decência ainda é um valor cultivado. Aqui, todos os valores desmoronam lentamente.

Alguns, em velocidade estonteante.

As regras implícitas que regem a Sociedade brasileira, neste atual momento da nossa história, são terríveis: não há o pensamento no outro, não há a solidariedade, não há o interesse social. Para onde dirigimos nossa atenção percebemos apenas falta de dignidade própria, ausência de respeito com os valores cultivados pelo processo civilizatório, descompromisso com a verdade mais comezinha, intuito de enganar, de manipular, de espoliar.

O resumo da ópera é esse: temos um aparato legal de faz-de-conta e uma realidade normativa social implícita derruidora.

Os códigos dizem uma coisa, as ruas dizem outra totalmente diferente.

Os políticos, com raras e honrosas exceções, mentem e furtam sem qualquer pudor. Os administradores públicos, idem. As instituições estão corrompidas e tomadas pelo aparelhamento vil.

Quem discordar que mergulhe na história do Brasil. Analise o antes. Estude o agora. Pense no depois.

As consequências do que se está fazendo aqui, e agora, durarão gerações, para o bem ou para o mal.

Não vejo luz no final do túnel. Para ser sincero, sequer vejo o túnel.

Temo pelo futuro das futuras gerações.

P.S – Acerca da classe média e sua pasmaceira sugiro a leitura do artigo “Uma elite perdida” AQUI.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do Estado do RN.

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  • Repet
domingo - 06/04/2014 - 10:28h

A Arena das Dunas é uma peneira

Por Honório de Medeiros

Começamos a pagar – eu, você, todos nós – R$ 10,2 milhões por mês pela “Arena das Dunas”. R$ 10,2 milhões. À construtora OAS. Pagaremos esse valor até dezembro de 2022.

Depois haverá uma redução no repasse. Mas no final dos pagamentos teremos repassado mais de 1 bilhão de reais à construtora. Para ser mais preciso, R$ 1.288.400.000, o equivalente a três “Arena das Dunas”.

Somente este ano serão R$ 91,8 milhões.

Enquanto isso, Mossoró vive uma guerra civil. Mata-se sem limites, rouba-se, furta-se, na cidade. Convido o leitor a abrir o Blog do BG e tomar conhecimento da postagem “Jornalista narra ‘guerra’ em Mossoró”, que diz respeito a informações veiculadas pelo jornalista Cézar Alves de Lima por intermédio do Twitter. É desesperante ler o que acontece lá.

Enquanto isso, o médico Hausemann Morais, ortopedista, plantonista do Hospital Walfredo Gurgel, usa sua página no Facebook para fazer um desabafo. Teclem seu (dele) nome no Google e leiam. É estarrecedor. “Hoje, morando em Natal, venho testemunhando há anos situações no mínimo absurdas: falta de fixador externo, falta de gases, falta de luvas, falta de fios de aço, falta de vagas de UTI, tanta coisa e ainda ter que ver mentiras na TV para disfarçar ou maquiar o caos”, diz ele.

E, mais à frente: “Talvez os senhores não tenham dado conta da gravidade sobre a que ponto chegou a saúde do RN. Eu temo! Por mim, por meus familiares, por meus amigos e pelos meus futuros pacientes. Temo muito!”

Mas o detalhe, crucial, cômico, se não fosse trágico, é a informação que nos chega pela rede social hoje, 31 de março, aniversário da Redentora: a “Arena das Dunas”, essa apoteose à incúria, à falta de respeito com a Sociedade, ao desprezo com os mais humildes, ficou alagada durante as chuvas que caíram no jogo América versus Alecrim.

Torcedores brincaram nas piscinas formadas pelas águas da chuva.

Jornalistas quase não puderam trabalhar com tanta goteira.

É isso mesmo. O complexo batizado pomposamente de “Arena das Dunas” não resistiu às primeiras chuvas. É uma peneira. Uma peneira de mais de um bilhão de reais. Uma peneira que eu, você, todos nós, inclusive nossos filhos, vamos pagar.

Uma peneira inútil e desnecessária.

Releio esse comentário e percebo o uso de palavras muito fortes: “desesperante”, “estarrecedor”… Um pouco mais de tempo e as palavras serão impotentes, se já não o são, pelo desgaste, quando se trata de retratar uma situação como essa que estamos vivendo. O uso intermitente gera a banalização.

É mais um fator a contribuir para a perpetuação da ignomínia.

De tanto conviver com o mal terminamos nos tornando indiferentes a ele. O pior é lermos as desculpas dos gestores. Quase sempre se escudam no desempenho de seus iguais em estados vizinhos.

Deveriam ser exceção, ficam satisfeitos por serem a regra. Da incompetência.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

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domingo - 30/03/2014 - 07:59h

Nossa tortura anual: hora de pagar Imposto de Renda

Por Honório de Medeiros

Está prestes a chegar a hora da tortura anual: a declaração do imposto sobre a renda. Nós, da classe média, como sempre assistiremos passivos o massacre feito pelo Governo.

Em algum lugar do cérebro surge uma vontade inicial de se revoltar, mas, logo, logo, retornamos à nossa passividade natural, tipicamente brasileira.

No nosso país não pagam imposto sobre a renda os muito pobres e os muito ricos. Os muito pobres por razões óbvias. Os muito ricos por que se beneficiam das brechas da lei, das facilidades legais, da impunidade onipresente, dos grandes escritórios de advocacia. Ou pagam, mas repassam o ônus para nós, a classe média.

E o Governo, o Governo acha mais fácil tributar na fonte ou expropriar a passiva e inerte classe média.

Essa nossa passividade não é genética, como pensam alguns sociólogos de meia-tigela. Não somos assim porque resultamos do cruzamento de brancos portugueses de baixíssima qualidade moral, negros indolentes e índios preguiçosos ou mal-acostumados. Nada disso é verdade. Ao contrário.

É difícil um povo que trabalhe mais para sobreviver que o brasileiro. E tampouco somos cordiais além da medida, como disse Sérgio Buarque de Holanda.

Ele, o grande Sérgio, talvez não tenha sido suficientemente crítico ao olhar para nossa história antes do Estado Novo de Getúlio. Uma história cheia de irridências, revoluções, insurgências, banditismo, cangaço e massacres. Taí Canudos, a cabanagem, o banditismo rural, o movimento farroupilha e tantos e tantos outros, para provar o que está sendo dito.

Com Getúlio e o Estado Novo acontece o que o professor Gilson Ricardo de Medeiros Pereira lembra a partir da obra de Raymundo Faoro “Os Donos do Poder”: o pacto das elites para dissolver a luta de classes através da “solução pelo compromisso”, ou seja, a permanente negociação através da qual o zé-povinho recebe, quando muito irada, uma ração extra de carne para acabar com o resmungo.

Não por outra razão vai ano e vem ano e os tubarões da elite continuam o colossal processo expropriatório através dos inocentes-inúteis que exercem cargos na estrutura do poder e se prestam a fazer o serviço sujo dos patrões. Quem conhece a história recente deste país sabe, talvez até mesmo na própria pele, o que foi feito com o serviço público a partir de Collor.

Quem não sabe porque não é servidor público, mas pertence à classe média para baixo, com certeza sentiu e sente na pele quando precisou ou precisa da estrutura do Estado na saúde, educação e segurança pública.

E nós, estúpidos, continuamos esperneando e votando nos mesmos candidatos de sempre!

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

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  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 23/03/2014 - 08:32h

Estamos ficando cada dia mais limitados

Por Honório de Medeiros

A ciência começa a comprovar algo que o senso comum já constatara: estamos ficando cada dia mais limitados na nossa capacidade de nos concentrar, principalmente em tarefas de natureza abstrata como ler um livro. Em “A Civilização do Espetáculo” Mário Vargas Llosa especula, a esse respeito, por vias transversas, enquanto descreve a banalização da cultura contemporânea na medida da opção pelo entretenimento ligeiro, de conteúdo pobre e forma atraente, em detrimento da complexidade de nossa anterior herança cultural comum.

Não aponta causa específica para o fenômeno, mas alude, obliquamente, à onipresença imperiosa, por trás dos panos, da incessante necessidade do lucro. Em outra face da questão o filósofo americano Michael J. Sandel, autor de “Justiça” menciona, em “O que o Dinheiro não Compra”, como a corroborar Llosa, o poder avassalador do mercado a dominar tudo e todos, corações e mentes, e suas consequências no universo moral.

Quem diz mercado, diz lucro.

Daniel Coleman, o famoso psicólogo americano professor em Harvard, criador do conceito de “Inteligência Emocional”, pondera acerca de outra face desse poliedro social, ao apontar o déficit de atenção cada vez mais profundo, decorrente da escravidão às redes sociais , em nossa civilização, a originar uma demanda, no futuro, pelo próprio mercado, de todos quanto sejam capazes de se concentrar em tarefas de médio e longo prazo.

Perguntamo-nos se quando o mercado reagir a catatonia (alienação) já não estará estabelecida de vez.

Acerca do fenômeno da volatilidade das coisas, causa e consequência desta atual fase do capitalismo, discorre Baumant com excepcional clareza em sua obra de caráter mais filosófico que sociológico. Somos uma sociedade evanescente, crê ele, na qual a transitoriedade de tudo, cada vez mais acentuada e veloz, seria o único fator permanente. Ou seja, mercado, lucro, redes sociais potencializadoras, volatilidade, déficit de atenção, tudo interconectado.

Em outra face – são mesmo muitas, para a mesma realidade – Moisés Naím especula acerca da fragmentação do poder, tal qual o conhecemos, como consequência dessa realidade volátil, evanescente, permanentemente transitória, em decorrência, entre outras coisas, dos instrumentos que a alimentam e ampliam, ou seja, a rede social e a interconectividade, por exemplo.

O que estaria por trás de tudo isso?

Como chegamos a esse patamar?

Que teoria explicaria esse fenômeno em sua inteireza?

A menção, feita por Llosa, Sandel, Michel Henry e Debord, estes aqui ainda não citados, mas que também especulam acerca de faces do mesmo poliedro, qual seja o dinheiro, o lucro, o mercado, poderia, obliquamente, dar razão ao Marx sociólogo, não aquele do materialismo dialético. Ou à teoria da seleção natural, do qual o capitalismo seria um epifenômeno.

Nesses casos bem vale o dito atribuído a Proust: “o tempo é senhor da razão.”

Ressalve-se, apenas, que as tentativas para conter a alienação, quando e se acontecerem, promovidas seja pelo próprio mercado, seja pelo Estado, poderão encontrar um status quo irreversível. Isso acontecendo, tendo como causa um brutal nivelamento por baixo em termos de capacidade de apreensão, cognição, pensar em termos complexos, perdemos todos.

Concretamente viveremos a realidade da Academia no Brasil, hoje: cada dia mais alunos, cada dia menos conhecimento…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 16/03/2014 - 09:12h

A banalidade da cultura atual

Por Honório de Medeiros

Fecho o livro de Llosa, Mário Vargas Llosa, “A Civilização do Espetáculo”, cujo título foi calcado no “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, um dos mais originais pensadores do século, e me percebo confortável por ter encontrado um texto, da melhor qualidade, que desse corpo a essa sensação permanente de estranhamento e solidão vivenciada por mim e alguns poucos, originada pelo descompasso entre a “cultura” na qual fomos criados e a realidade que encontramos nos dias de hoje.

Não é, portanto, “saudosismo”, o que sentimos. Há, de fato, um progressivo, solerte e profundo processo de banalização dos valores fundantes da cultura, entendida esta como o pressuposto da construção do processo civilizatório.

Cultura como a pensou, por exemplo, T. S. Elliot, citado por Llosa, em “Notas para uma definição de cultura”, de 1948, tão atual, posto que, por exemplo, lá para as tantas, expõe:

“E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura.”

É bem verdade que em ensaios tais como “A civilização do espetáculo”, e “Breve discurso sobre a cultura”, Llosa não nos aponta as causas do surgimento desse epifenômeno muito embora aluda, de forma enfática, à “necessidade de satisfação das necessidades materiais e animada pelo espírito de lucro, motor da economia, valor supremo da sociedade”, como a força que está por trás das rédeas que conduzem o processo de destruição da cultura tradicional.

Não nos é oferecido, de sua lavra, uma macroteoria, que nos explique tudo. Para Llosa, por exemplo, civilização do espetáculo é “a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal.”

Entendo, embora possa estar enganado, que mesmo Zygmunt Bauman e sua obra acerca da “vida líquida”, “modernidade líquida”, na qual mergulhei durante algum tempo, também não o conseguiu. Sua preocupação é, também, descrever um fato, ou melhor, um epifenômeno social, o processo civilizatório por nós vividos hoje, um degrau acima, em termos de tempo, com alguns instrumentos intelectuais diferenciados, como tentado pelo excepcional Norbert Elias.

Para Bauman, “a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”; nas quais “as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades.”

Eu me pergunto, em relação a Bauman: não há um padrão, uma lei geral que origine esse processo? Não seria essa “vida precária” em “condições de incerteza constante” uma face avançada do processo evolucionário de Darwin?

Aliás, ainda hoje somos devedores, nesse aspecto, dos titãs do século XX, quais sejam Freud, Marx e Darwin, por assim dizer. Mas não é o caso de abordar esse tópico por aqui.

O caso aqui é apenas registrar o alívio ao constatar que não estamos errados nós que sentimos que somos, cada vez mais, órfãos de uma cultura que desde os meados do século XX, vem sendo deixada, cada dia mais velozmente, e de forma mais radical, para trás. Que o digam, como pálido exemplo, a música, o teatro e a literatura contemporânea.

É a banalização da cultura…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 02/03/2014 - 10:03h

Aquelas noites do sertão

Por Honório de Medeiros

* Em memória de Compadre Adauto Fernandes

Naquelas noites do Sertão a escuridão tomava conta da entrada do Sítio onde, à luz do lampião, Compadre Adauto Fernandes – eu, menino, o chamava assim, e ele assim me tratava – reunia, no seu entorno, a família e os amigos para uma xícara de café e ouvirem as estórias que constituíam a antiga tradição oral dos nossos antepassados.

Às vezes havia lua e o mar de prata criava ademanes fantasmagóricos nos arbustos lá fora, no terreiro; ao vê-los instintivamente aproximava-mo-nos um pouco mais do círculos dos adultos e somente relaxávamos quando sua risada cristalina pontuava essas estórias; até então, ele nos deixara, a todos, em permanente suspense.

Decerto nunca mais pude fugir de um compromisso alegando uma mentira inocente sem recordá-lo e a um desses “causos” em especial.

Dizia respeito a alguém do seu conhecimento que para fugir de um compromisso social jurara, através de bilhete, estar, em casa, de repouso e, ao voltar de um forró onde se esbaldara a noite inteira, em outra localidade, mal apeara do cavalo escutou choro e lamentações, e seu pressentimento foi confirmado pelos fatos – ela, sua esposa, jazia nos braços das filhas nos estertores da morte. Exposto assim parece pouco, quase nada, mas somente sabe acerca da magia daquelas noites quem as viveu no Sertão, à luz bruxuleante do lampião, céu estrelado, ouvindo, de quando em vez, dentre outros, o canto arrepiante dos rasga-mortalhas…

Eram estórias de amor, gestas, ódios de família, tesouros enterrados, botijas, estes descobertos por intermédio de sonhos que precisavam de uma sabedoria centenária para serem interpretados corretamente, raptos consensuais ou não, caçadas às onças nas quais somente a habilidade sobrenatural do caçador o fizera escapar com vida, pescarias milagrosas, recuperação da saúde via feitiços e orações de benzedeiras e curandeiros, secas e invernadas desmedidas, justiça divina a corrigir desmandos humanos, feitos com armas, aventuras de parentes e amigos nas terras desconhecidas da Amazônia, para a qual tantos tinham ido e não mais voltado, os segredos da Serra das Almas…

Na forma arrastada com a qual meu compadre contava suas estórias, havia uma magia que segurava a atenção: uma cadência hipnótica na voz, uma lógica precisa no encadear das frases buriladas com palavras que Luis da Câmara Cascudo não hesitaria em classificar como egressas do puro português colonial e que os folgados das cidades grandes alcunhariam de “matutês”, por pura ignorância, uma sabedoria antiga de quem herdara e cultivara o dom de contar uma estória.

O desfecho sempre ensinava uma lição de vida e, não raro, eram belíssimos achados a externar uma apropriada observação acerca da natureza dos homens e seu destino de desprezar o caminho certo, a senda justa, a trilha verdadeira, na vida, em troca das facilidades enganosas que o diabo apresentava, enquanto armadilhas, para a perdição da alma dos incautos.

Mas Compadre Adauto Fernandes não era somente um contador de estórias sem igual e um dos últimos integrantes daquela raça de titãs que colonizou o Sertão e que nasceu no começo do século XX. Dotado de arguta percepção a respeito dos homens e das coisas, certa vez me confessou por que não votara no candidato a prefeito que entusiasmava, então, sua numerosa família: “meu compadre, se ele não consegue arrumar sua casa, como vai arrumar a dos outros?”

Não deu outra. Foi uma desastre.

E quando lhe indagávamos, ansiosos, acerca do inverno, tão esperado todos os anos, respondia calmamente: “isso é com Deus, mas a experiência dos antigos diz que…”; quase sempre acertava.

Compadre Adauto Fernandes também era um poeta, em um certo sentido, alguém com o dom de dizer belamente, em momentos especiais, com tiradas de brilho incomum, algo que nunca brotaria, com facilidade, dos nossos corações e mentes. Dele escutei, certa vez, quando falávamos da morte, rompendo um seu mutismo inabitual, que “a morte, para quem fica, é uma saudade sem esperanças”.

Acaso alguém poderia ser mais preciso e poético ao descrever esse sentimento?

De outra, referindo-se aos caminhos e descaminhos de um amigo comum, saiu-me com essa, aludindo à eterna vitória da esperança sobre a razão: “compadre, quem nos puxa mesmo é a mão da ilusão…”

Tantos anos passados, todos nunca esquecidos. Tantas vidas vividas e sua lembrança não esmorece.

As vidas, meu compadre, sem homens como você, íntegro, único, profundo, está cada dia mais parecida com o que lhe ouvi dizer várias vezes a esse respeito – “é uma roca sem fuso!”

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 16/02/2014 - 08:43h

Maturidade impregnada de descrença

Por Honório de Medeiros

É muito ruim quando a maturidade surge impregnada de descrença. O Homem fica melancólico, quando não amargo. Embora digam que esse é o preço que se paga pela chegada do outono da vida, prefiro atribuir tal descrença a circunstâncias que fogem ao seu querer, mesmo se contra elas tenha lutado a boa luta, aquela que se supunha não ser vã.

Que circunstâncias seriam essas, caberia a pergunta.

Poderia ser diferente, se elas fosse outras? Ou, por outro lado, se essas circunstâncias fossem diferentes seria possível imaginar que a maturidade surgiria sem descrença, mesmo que acompanhada da constatação de que o espírito está preso numa estrutura que o tempo vai comprometendo lenta mas insidiosamente?

Creio que sim.

Poderia ser diferente se elas fossem outras. Mas não o são, e aqui estou eu, em plena maturidade, descrente, talvez melancólico, mas não amargo.

No meu caso essa descrença diz respeito ao que concluo quando observo o que se passa em meu País e meu Estado. Espero não estar errado – acredito sinceramente que não estou – mas minha conclusão é que, no geral, estamos muito pior, hoje, se comparado com ontem, ou mesmo anteontem.

Entendam-me.

Não nego avanços, pois os há.

Apenas sustento que esses avanços aconteceram espontaneamente, decorrentes da própria lógica do capitalismo primitivo brasileiro. E são poucos. Eu diria que também são superficiais. E ainda digo que a questão é que a descrença não resulta do pouco que avançamos, ou da fragilidade dos nossos avanços, conquistas da Sociedade.

Resulta do quanto deixamos de avançar graças às nossas elites políticas predatórias, inconsequentes, criminosas.

O Estado, uma hipostasia, concretamente nada mais é que a expressão financeira, legal e policial dessas elites políticas. O resultado desse atraso no avanço, digamos assim, cada um de nós, brasileiro, norte-rio-grandense, pode aquilatar meramente se dando conta – e fazemos isso, dia-a-dia – do que está acontecendo no nosso entorno.

Não quero sequer mencionar o descalabro na educação, saúde, infra-estrutura, segurança pública – esta, no meu entender, caso para intervenção federal no Estado.

Menciono, e é o bastante, a situação das consequências da seca no resto do Estado, para além dos limites caóticos de Natal. Pois a seca, a mesma seca que angustiou D. Pedro II há tanto tempo atrás, essa seca dizimou, no interior, a agricultura, a pecuária, a criação, a piscicultura, as feiras, o comércio, a construção civil, nesses últimos anos.

Agora a seca está ameaçando a sobrevivência das pessoas, principalmente dos mais humildes, condenados estes a fazerem uso de água misturada com lama para satisfazerem suas necessidades fundamentais; a seca está conduzindo as pessoas para patamares antigos de desrespeito ao ser humano que as novas gerações, se os conhecem, o é por meio da literatura…

Enquanto isso o Governo do Estado constrói um complexo denominado pomposamente “Arena das Dunas” para a Copa do Mundo de 2014 ao mesmo tempo em que o sertanejo e o Sertão potiguar se desfazem em sol, poeira e sede, e alguns privilegiados, para os quais essa questão é algo remoto, se preparam para contemplar e usufruir desse templo do supérfluo, da trivialidade, da falta de respeito com a condição humana.

Ainda por cima há os que creem firmemente que a construção da “Arena das Dunas” é algo defensável. E a defendem. E apresentam estatísticas nas quais se embasam para apresentar essa defesa. E falam e escrevem defendendo o impacto econômico favorável ao Rio Grande do Norte em decorrência do dinheiro federal que está vindo às catadupas.

Um complexo que será visitado e usufruído pelas elites, um complexo inacessível à base da pirâmide social, um complexo desnecessário para todo o restante do Rio Grande do Norte. Essa é apenas uma das faces da tragédia.

E quanto às mortes que estão ocorrendo no nosso Estado, originando estatísticas semelhantes à de guerras civis?

Há ou não motivos para descrença?

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 09/02/2014 - 11:56h

De tirania e servidão

Por Honório de Medeiros

Finalmente expulsos da Terra Santa pelos Sarracenos em 1302 d.c., os Templários passaram a ter sua imensa riqueza cobiçada no Ocidente por soberanos e nobres, e seu prestígio e privilégios, assegurados até então pelos papas, invejados pelo clero.Dentre eles, entretanto, nenhum chegou ao extremo de Filipe, o Belo, neto de São Luis, Rei da França.

"O belo": mestre do mal

Com o tesouro esgotado pelas lutas contra os barões feudais na tentativa de fortalecer seu reino e impor sua vontade, Filipe, para muitos o precursor do Estado-Nação, percebeu que muito próximo de si havia riqueza suficiente para saciar sua ambição e desenvolver seus projetos hegemônicos. O primeiro grande obstáculo a vencer era a Igreja, no seio da qual fora criada a Ordem do Templo, sob as bênçãos de Honório II.

Conta Charles G. Addison, historiador inglês, em seu acurado “A História dos Cavaleiros Templários e do Templo”, que “quando da morte do papa Bento IX (em 1304), ele conseguiu, por meio das intrigas do Cardeal Dupré, elevar o arcebispo de Bordéus, uma criatura sua, ao trono pontifical. O novo papa transferiu a Santa Sé de Roma para a França; convocou todos os cardeais a Lyon e ali foi consagrado (1305 d.c.), com o nome de Clemente V, na presença do Rei Filipe e seus nobres.”

O primeiro passo fora dado.

A seguir o papa convoca os cavaleiros templários a Bordéus.

Em 1307 o Grão Mestre do Templo e sessenta cavaleiros desembarcam na França e depositam o tesouro da Ordem no Templo de Paris. Jamais sairiam de lá.

Entrementes o Rei francês fazia circular diversos boatos sinistros e notícias odiosas a respeito dos Templários por toda a Europa, acusando-os de terem perdido a Terra Santa por não serem bons cristãos. Depois, com base no depoimento de um cidadão condenado que viria a receber, posteriormente, o perdão real, mandou capturar, no reino, secretamente, todos os membros da Ordem, ao mesmo tempo em que determinava uma devassa nos bens dos Templários.

A seguir Filipe endereçou correspondência aos reis europeus exortando-os a acompanhar seu exemplo. E, então, os acusou dos mais esdrúxulos e inverossímeis crimes, tais como satanismo, sodomia, depravação herética e outros mais.

Esses mesmos Cavaleiros Templários que durante centenas de anos derramaram seu sangue nas areias escaldantes da Palestina a serviço da Igreja, com as bênçãos e reverências dos reis da cristandade…

O resto pertence à história.

Torturados, espoliados, dizimados, os templários desapareceram de cena enquanto Filipe de França, e Eduardo, da Inglaterra, bem como o papa Clemente, passaram a mão em sua riqueza. Saliente-se que o Rei de Portugal, à época, não somente se recusou a fazer o mesmo, como deu guarida aos templários fugitivos que para lá se dirigiram.

Em tempos mais recentes, nos famosos expurgos realizados na União Soviética, a criação de crimes imaginários por parte da máquina do Estado a serviço de Stalin conduziu milhares de russos ao pelotão de fuzilamento ou aos campos de concentração. Quem desejar ler acerca do “modus faciendi” da máquina de acusação recomendo “O Zero e o Infinito”, do hoje esquecido Arthur Koestler, uma crítica contundente ao despotismo estalinista.

Esses fatos demonstram algo: em primeiro lugar, no que diz respeito à luta pelo Poder e sua manutenção, nada é novo, tudo é contemporâneo da existência do Homo Sapiens na face da terra; em segundo, não podemos permitir a concentração de Poder nas mãos de quem quer que seja; e, em terceiro, seja qual seja o credo ou ideologia, se favorecemos a concentração de Poder nas mãos de um, ou de alguns, muitos irão sofrer as consequências no futuro.

Tais afirmações dizem respeito a qualquer agrupamento no qual o Homem viva em Sociedade. Tanto pode ser em família quanto, por exemplo, em uma Sociedade como a dos Estados Unidos da América, onde os métodos utilizados pelos seus serviços secretos, hoje em dia, aos poucos vão estrangulando as liberdades civis sob o falso argumento de proteção da segurança do País e seus habitantes.

Na verdade o grande profeta dos últimos tempos acerca do exercício do Poder e suas decorrências foi George Orwell, em “A Revolução dos Bichos”; quanto à falta de legitimidade dos que o exercem, é de se render homenagens a Étienne de la Boétie e seu fabuloso “Discurso Acerca da Servidão Voluntária”.

Quão imensa é a vocação do Homem para a tirania e a servidão…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 02/02/2014 - 08:58h

Nada de novo sob o sol

Por Honório de Medeiros

Não há nada de novo sob o sol.

Seguimos aparentemente em frente, para destino ignorado, permanecendo os mesmos de tanto tempo atrás, enquanto as formas, os instrumentos, os meios que são nossa criação, mas dos quais somos reféns, para lidar conosco, fenômenos e coisas, tornam-se cada vez mais complexos e fugazes, em uma espiral, um “vir-a-ser”, como diria Nietzche, de proporções incalculáveis. Essência imutável, forma evanescente.

Leio em “Os Crimes de Paris”, de Dorothy e Thomas Hoobler, acerca de Vidocq, um personagem maior que sua vida. 

“Depois de cometer vários crimes na juventude, trocou de lado e se aliou à polícia. Foi o primeiro chefe da Súrete, o equivalente francês do FBI, e modelo para vários personagens da literatura”, dizem-me eles. Fascínio antigo esse meu por Vidocq.

Camaleônico, sofisticado, indecifrável, também foi o criador da primeira agência de detetives do mundo, o “Bureau de Reinseignements”, ou Agência de Inteligência. Que outro, além de um francês, criaria uma agência de detetives com esse nome?

Inspirou Maurice Leblanc na criação do célebre Arsène Lupin, “O Ladrão de Casaca”, que eu lia, fascinado, na adolescência, graças à bondade de um colega de ginásio, na Mossoró que não existe mais. Como inspirou, também, além de muitos outros, tais como Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugène Sue, o ainda mais célebre personagem de Balzac, Vautrin, presente em vários livros da“Comédie Humaine”.

Em certo momento, lá para as tantas, Vautrin explica o mundo:

“- E que lodaçal! – replicou Vautrin. – Os que se enlameiam em carruagens são honestos, os que se enlameiam a pé são gatunos. Tenha a infelicidade de surrupiar alguma coisa e você ficará exposto no Palácio da Justiça como uma curiosidade. Furte um milhão e será apontado nos salões como um modelo de virtude. Vocês pagam 30 milhões à polícia e à justiça para manter essa moral… Bonito, não é?”

Como diria minha mãe: “vão-se os anéis, sempre permanecem os dedos…”

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 26/01/2014 - 10:15h

A retórica dos objetos

Por Honório de Medeiros

“Ser é perceber” (George Berkeley, 1685-1753).

Os objetos falam.

Existe uma diferença entre “ver” e “enxergar”, sabemos disso[1]. Quando “vemos”, percebemos.

Os objetos, se percebidos, dizem-nos muito.

Imagine que você seja um advogado que foi introduzido na biblioteca de um potencial cliente para discutir com ele acerca de um futuro contrato de honorários. Você não se preparou para o encontro, seja porque não teve tempo, seja porque confia em sua capacidade de persuasão.

Ao aguardar a chegada do seu possível futuro cliente em sua (dele) biblioteca se admira com a organização reinante: livros limpos, organizados por tema e, nesses nichos, os autores postados em ordem alfabética.

A biblioteca condiz com o ambiente no qual ela repousa. Os outros objetos do espaço circundante também prima pela limpeza e organização: não há nada fora do lugar.

Esses objetos dizem que seu dono é alguém, portanto, organizado, até mesmo meticuloso.

Qual a probabilidade de você convencê-lo nesse encontro para o qual não está devidamente preparado com dados, documentos, legislação, jurisprudência e, até mesmo, doutrina?

Quase nenhuma.

Existe uma retórica dos objetos, chamemo-la assim, na falta de uma denominação melhor. O que se quer dizer é que “os objetos dizem, expressam algo”. E é fundamental conhecê-la para quem se interessa em “decifrar” o meio com o qual interagimos.

Ramo da Retórica dos Objetos é a publicidade. Usa a técnica da Retórica dos Objetos para induzir associações de idéias que promovam o consumo.

Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento” que decodificamos os objetos.

E o que seria o “estranhamento”? É algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual uma arte marcial, tornar-se hábil em captar essa desarmonia demanda contínuo exercitar-se até o limite do possível.

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber, a organização limpa e meticulosa da biblioteca do cliente chama a atenção por fugir do padrão comum.

Ao conectar essa constatação com a que resulta do “ver” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer alguma inferência, ou elaborar alguma hipótese, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios.

O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. Mas como essa câmera filmava através do espelho? Patrick sabia que os ilusionistas usam muito um tipo de espelho que permite a quem está por trás visualizar através dele. A noção de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, ali, essa sensação de estranhamento.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e Estado do RN

[1] //g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/11/ver-e-enxergar-acionam-regioes-diferentes-do-cerebro-diz-estudo.html

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domingo - 29/12/2013 - 10:23h

Fé, foco e disciplina?

Por Honório de Medeiros

Os livros de autoajuda, rico filão explorado à exaustão por alguns espertos em cima da ingenuidade de muitos, ensina que fé, foco e disciplina são a chave para o sucesso.

Fé, ou seja, crer que depende de nós chegar lá, naquele lugar almejado; foco: ficarmos circunscritos ao objetivo, à meta a ser alcançada, evitando decididamente qualquer distração que nos faça perder o rumo; disciplina, por fim, significando aquela entrega de corpo e alma, em termos de esforço, de dedicação, de renúncia, fundamentalmente necessários para se alcançar o sucesso em qualquer empreitada.

Nada mais, nada menos.

No entanto, segundo as mais recentes pesquisas em neuropsiquiatria, realizadas obsessivamente por cientistas ao redor do mundo, aliadas ao conhecimento adquirido em áreas tão diversas quanto matemática, teoria da seleção natural e estatística, demonstram que tudo isso é, em uma medida para lá de razoável, pura balela. O que existe, mesmo, é o acaso, aquilo que o senso comum chama de “sorte”.

É o que se lê no livro “O Andar do Bêbado”, de Leonard Mlodinow, recomendado por ninguém menos que o maior físico pós Einstein, Stephen Hawking, acerca do fenômeno da aleatoriedade. O autor ensina teoria da aleatoriedade no famosíssimo Instituto de Tecnologia da Califórnia, o Caltech, celeiro de cientistas premiados com o Nobel, e é autor de obras com consagrados físicos mundiais, tais como Stephen Hawking (“Uma Nova História do Tempo”) e Richard Feynman (“A Janela de Euclides” e “O Arco-Íris de Feynman”).

Em “O Andar do Bêbado”, Mlodinow demonstra, por a+b, que ao contrário do que se supõe, a grande maioria dos eventos são fruto de uma combinação de fatores em grande parte aleatórios. Os exemplos por ele elencados, minuciosos e contundentes. A análise, verossímil. As conclusões, pertinentes.

No final das contas, após a leitura do livro, que em certos largos trechos demanda um conhecimento mais profundo de matemática probabilística que poderão ser deixados de lado sem que se comprometa o entendimento do tema, o “coup de grace” é o seguinte: em qualquer empreendimento nosso, consciente ou inconsciente, não temos como saber, mesmo após todo os esforços, seja de planejamento, seja de realização, qual será o resultado; com certeza somente temos como saber que se não empreendermos, não conseguiremos.

Tudo isso em decorrência do fenômeno da aleatoriedade. Ou seja, o esforço desprendido ao longo dos anos pela grande maioria para chegar lá somente valerá a pena para muitos poucos, e graças a fatores que independem de suas vontades.

É por essa razão que o autor conclui: “(…) a habilidade não garante conquistas, e as conquistas não são proporcionais à habilidade”.

E remata: “Nas palavras de Thomas Watson, o pioneiro da IBM: ‘se você quer ser bem sucedido, duplique sua taxa de fracassos’.”

A questão é a seguinte; vale a pena tamanho sacrifício? Talvez seja por isso que no Livro do Eclesiastes O-Que-Sabe advertiu, logo no prólogo: “Que proveito tira o homem de todos os trabalhos com que se afadiga sob o sol?”

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 24/11/2013 - 12:57h

“Iluminar a realidade”

Por Honório de Medeiros

“Iluminar a realidade”, disse-me o poeta/filósofo. Ou seria filósofo/poeta?

Não importa.

Hoje a filosofia não mais se expõe poeticamente. Veste outra vestes, sem elegância.

Foi-se o tempo de Heráclito de Éfeso: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, célebre fragmento que tanto impressionou Wittgenstein. “Tudo flui”…

Ah!, a beleza da filosofia dos gregos arcaicos…

Quem terá sido o último dos filósofos/poetas? Talvez Gaston Bachelard: “o Conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”. Ou mesmo: ” O pensamento puro deve começar por uma recusa da vida. O primeiro pensamento claro é o pensamento do nada.”

Suprema gnosiologia…

Certa vez, quando exposto um senão, o horizonte foi apontado, naquela linha onde se fundem mar e céu, e a resposta enunciada por um filósofo/poeta: “procure iluminar a realidade”. Somente assim podemos enxergar.” Simples assim.

A poesia –  ela transfigura e sintetiza o comum, o banal, o trivial.

Muitas palavras lavradas na árida linguagem técnica diriam o mesmo, até de forma mais precisa, reconheçamos.

Entretanto essa frase descerrou véus e foi possível enxergar claramente, pois há sempre uma nesga, um fragmento de realidade a ser iluminada, revelada, exposta, onde antes nada havia além de escuridão e ignorância.

Então, assim, o Homem é muitos, mesmo sendo nenhum.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do Estado do RN

 

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Categoria(s): Crônica
domingo - 17/11/2013 - 08:30h

O Rio Grande do Norte é uma tragédia

Por Honório de Medeiros

O Rio Grande do Norte é uma tragédia. Tragicomédia.

Hoje, aqui, nada funciona: nem saúde, nem educação, nem segurança pública, nada, nada. A quantidade de mortos em ações violentas, é algo semelhante a uma guerra. É como se vivêssemos um pesadelo.

Ouvi no noticiário matinal que o turismo está em queda vertiginosa. A indústria do turismo, fonte de receita tradicional no Estado. E não se toma uma providência. E depois vão alegar que a receita caiu.

Ninguém quer vir para cá: sujeira, insegurança, falta de atrativo, carestia…

O Programa do Leite, um dos poucos programas públicos que nossa incapaz elite política houve por bem criar, está morrendo.

A sensação é de caos, caos, simplesmente.

Enquanto isso investem milhões em um estádio de futebol. Em um estádio de futebol! Investem em obras desnecessárias, enquanto a seca dizima o rebanho bovino potiguar.

Nem se comenta o problema de saúde pública que a água usada para consumo humano pode causar. O quê danado o povo do bairro proletário Manoel Deodato, de Pau dos Ferros, cidade cujo abastecimento está em colapso, vai usufruir do pomposo Arena das Dunas?

E os municípios vizinhos, do Alto Oeste?

E do Seridó?

E do Agreste?

E quanto aos servidores públicos?

O Tribunal de Justiça diz que as contas apresentadas pelo Governo do Estado estão erradas. O Ministério Público, também. O Tribunal de Contas, idem. A Assembleia Legislativa, da mesma forma.

Parece que somente está faltando se pronunciar a Diocese.

Cabe a pergunta: quando uma providência será tomada em defesa dos servidores públicos? Quando a remuneração será paga em dia? Quando receberão os servidores seu terço das férias, inclusive o atrasado, assegurado constitucionalmente? Quando poderão gozar suas licenças-prêmio? Quando poderá ser implantado, em seu pagamento, os adicionais por tempo de serviço?

Aliás, a pergunta correta a ser feita é a seguinte: porque o servidor público é quem tem que pagar o pato?

Enquanto isso os eleitores se preparam para voltar às urnas e eleger os mesmos políticos responsáveis por tudo que estamos passando. Ou seus filhos. Ou netos. Ou apadrinhados…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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