domingo - 18/06/2023 - 09:36h

Luiz Fernando Pereira de Melo

Livro aborda cenário de tensão de um "RN arcaico" (Rreprodução do BCS)

Livro aborda cenário de tensão de um “RN arcaico” (Rreprodução do BCS)

Por Honório de Medeiros

Luiz Fernando Pereira de Melo é, em essência, um genealogista. Dos melhores.

Também é um historiador, na justa medida em que suas pesquisas o levaram a encontrar, nas sombras e desvãos do passado, personagens da nossa história, a bem dizer esquecidos, que ele trouxe para nosso conhecimento, com dedicação e esmero.

Aos poucos, dessa forma, Luiz Fernando segue construindo, por vias quase oblíquas, um painel do passado do Rio Grande do Norte valioso e imprescindível, calcado em muito trabalho de campo, na consulta a velhos e carcomidos inventários, livros esquecidos e embolorados, registros arcaicos feitos pela Igreja, anotações antigas de próprio punho que chegam às suas mãos como que atraídas pela competência e talento de quem sabe lidar com essas preciosidades.

Cuida da pesquisa que é própria do genealogista e historiador que se debruça sobre esses registros, chamemo-los assim, e, também, da árdua e complexa tarefa de traduzir os textos estudados, vez que vazados em incompreensível escrita para nós, os comuns dos mortais. Missão para paleógrafos.

Além disso, vai tecendo a teia que extrai da nossa esquecida história, na medida em que interpreta esses dados todos conectando-os uns com os outros, dando-lhes o sentido e a compreensão necessárias.

O resultado não poderia ser diferente: famílias inteiras que povoaram o Rio Grande do Norte, o Nordeste, mesmo o Brasil, surgem com seus laços entre si revelados, ao mesmo tempo em que alguns dos seus integrantes, significativos e importantes para nossa história, obtêm o justo realce.

Tudo começou com Um Ramo Judaico dos Medeiros do Seridó, seguido por Os Fernandes Pimenta: Notas para o Conhecimento Familiar. Depois, veio Crônica do Sertão de Apodi: História do Período Colonial, de 1710 a 1817; Genealogia e Fatos do Sertão do Norte de Baixo; Melos de Campo Grande – Genealogia: Raízes Antigas e Ramos Familiares que delas Derivam; Prelúdio do Cangaço no Sertão do Assu: A Saga do Coronel Antônio da Rocha Bezerra; e Manuel Raposo da Câmara, Morgado Português: História Familiar, Processos da Inquisição, Raízes Judaicas e Ligações à Genealogia Paulistana.

EXEMPLO DE TUDO quanto dito acima, transcrevo, a seguir, trecho do prefácio que tive a alegria de escrever para Prelúdio do Cangaço no Sertão do Assu: A Saga do Coronel Antônio da Rocha Bezerra:

“Foi nessas eras que existiu o Coronel de Cavalaria Antônio da Rocha Bezerra, descendente, dentre outros ilustres, de Arnáu de Hollanda, filho de Henrique de Holanda Baravito de Renoburg, natural de Utrecht, casado com Margarida de Florença, irmã do Papa Adriano VI”.

“Arnáu era, por sua vez, casado com Brites Mendes de Vasconcelos, filha de Bartolomeu Rodrigues, camareiro-mor do Infante D. Luiz, filho do Rei D. Manoel, de Portugal. Sua esposa, natural de Lisboa, veio para o Brasil com os pais, acompanhando o primeiro Donatário de Pernambuco, Duarte Coelho”.

“O Coronel de Cavalaria, a julgar pelos registros a seu respeito tanto dos representantes do Governo Colonial, quanto por aqueles que usavam batina, era homem “facinoroso e perturbador do povo”, “petulante e inquietador da coisa pública”, “desobediente aos Ministros” do Rei de Portugal, “incorrigível”, entre outros apodos que lhe foram assacados pelos homens de batina”.

“Pintaram e bordaram, como se diz popularmente, na Ribeira do Sertão do Assú, sob a liderança do Coronel, dois filhos seus e um aliado, meio jagunço, meio cangaceiro, chamado Felipe Silva, principalmente por conta de uma briga feroz contra o Tenente José dos Anjos, na qual houve de tudo um pouco, desde homicídios a cárcere privado, passando por roubo de gado, em uma longa série de desrespeitos à letra da lei”.

Luiz Fernando Pereira de Melo (Reprodução da Amazon)

Luiz Fernando Pereira de Melo (Reprodução da Amazon)

“Dele, cuidou Luiz Fernando de Melo, seu descendente direto, um dos nossos maiores genealogistas e pesquisadores, autor de livros que já se tornaram referências não somente no que diz respeito à genealogia das famílias nordestinas, que se enroscam entre si desde o solo lusitano, mas, também, pelo cuidado documental com o qual fundamenta suas descobertas, e, porque não deixar claro, também pelo aprofundamento nos fatos históricos que sempre envolvem o entorno dos personagens acerca dos quais trata”.

“Chama a atenção, a partir da leitura de tudo quanto aconteceu com o Coronel e está comprovado pela farta documentação que compõe o livro, o retrato indireto de uma época, o Setecentos, ainda tão pouco conhecida, que se expõe como pano de fundo e nos mostra o Brasil em plena ebulição de um processo de transformação que deixaria para trás seus primeiros duzentos e cinquenta anos de infância, e entrava lentamente na adolescência que antecedia a mocidade do Império”.

“Como se não bastasse a história desse antepassado, importante por si somente, no resgate feito por Luiz Fernando fica demonstrada a marcante presença de sua descendência em momentos cruciais no tempo e espaço nordestinos, qual seja a Revolução de 1817; a participação na Guerra do Paraguai; bem como, até mesmo, a resistência heroica oferecida naquela que foi a mais violenta eleição política no Rio Grande do Norte, a de 1934/1935, aos desatinos do Interventor Mário Câmara e ao Governo de Getúlio Vargas”.

Eis, pois, o resultado: uma malha histórica profunda, solidamente alicerçada em pesquisas da melhor qualidade, revelando um Rio Grande do Norte arcaico, conhecido apenas em alguns recortes específicos, e suas relações com o Nordeste e o Brasil, através das grandes famílias que o povoaram.

E a redenção, digamo-lo assim, de personagens e episódios que jaziam esquecidos nas sombras do nosso passado.

Trabalho meticuloso, necessário e definitivo.

Vem mais por aí. Muito mais.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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domingo - 28/05/2023 - 04:44h

Por que escrevemos

Por Marcos FerreiraPor que escrevemos #

Todo domingo é assim. Pomos a cara fora e tratamos sobre um monte de assuntos. Há uns que caem no gosto do público leitor, e o cronista é logo aplaudido por seu texto. Pois bem. O Blog Carlos Santos (Canal BCS) é isto: um reduto desses intelectos, e atrai pessoas dos mais diversos estratos humanos e níveis críticos. São um show à parte os comentários vistos no espaço reservado à opinião dos leitores.

Assim como eu, alguns articulistas se autodenominam escritores. Não tiro a razão de ninguém. Já outros, mais contidos quanto modestos, preferem informar suas profissões e status curriculares. Para os quais tiro o chapéu.

Aos domingos, então, expomos nossa escrita acerca de um sem-número de temas. Há aqueles, todavia, que se atêm a um determinado campo temático, a exemplo do doutor Marcelo Alves Dias de Souza, aguçado bateador da história da Literatura e dos seus autores, tanto os bambas das letras nacionais quanto estrangeiras. Temos também a verve suave e envolvente do cronista Odemirton Filho.

Vez por outra é François Silvestre quem ataca com uma crônica, artigo ou poema neste espaço. François, com legitimidade, é mais um que se declara escritor. Possui biografia, histórico e estatura para dizer-se como tal.

Temos, ainda, o não menos doutor e professor Marcos Araújo, cuja inteligência e mérito literário não ficam a dever a nenhum de nós. O mestre Honório de Medeiros é outro que volta e meia dá o ar da graça com uma página de apreciável rutilância. Semana passada deu-se a estreia do ilustrado Hildeberto Barbosa Filho, professor da UFPB, poeta, escritor e membro da Academia Paraibana de Letras.

Por essa ou aquela razão, enfim, todos escrevemos. Uns com periodicidade definida, enquanto fulano e beltrano comparecem de maneira esporádica, feito procedem o doutor Marcos Araújo e Honório de Medeiros. O importante é escrever, ter onde publicar e contar com o interesse de nove ou dez leitores.

Se me perguntarem por que escrevemos, digo que é menos por dom que necessidade. Abrimos uma brecha em nossas agendas (a maioria possui isso) e nos dedicamos a compor algo com um mínimo de literariedade.

Marcos Ferreira é escritor

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quinta-feira - 11/05/2023 - 09:06h
Crônica

Padre Vieira e D. Helder…

Por François Silvestre

…a repetição que não foi farsa.

Foto ilustrativa (Reprodução)

Foto ilustrativa (Reprodução)

Na abertura do Dezoito de Brumário Karl Marx retoma Hegel para lembrar que o genial pensador declarara ser repetitivo na História grandes eventos ou ilustres personagens. Porém, Marx ressalva que Hegel esquecera de afirmar outra verdade, qual seja, que na repetição o fato ou personagem é a farsa da tragédia repetida.

O Padre Antônio Vieira, pensador, orador, argumentador ferino, sábio da igreja católica, infernizava, com seus Sermões, o sossego do poder oficial da Corte, nos idos da metade do século XVII. E esse poder agiu, conseguindo da Cúria Romana a imposição do silêncio ao padre Vieira. O famigerado silêncio “obsequioso”. A língua do Padre Vieira incomodava.

Padre Vieira obedeceu, não sem antes ferir, ferinamente, a estupidez. E declarou: “Deus, na sua infinita misericórdia, fez surdos os que eram mudos e fez mudos os que eram surdos. Posto que até a natureza, provocada pelo grito, responde com o eco”.

Honório de Medeiros escreveu sobre D. Helder e o chamou de Santo (veja AQUI). Pois pois, confirmaria o Padre Vieira. O Bispo D. Helder Câmara também foi vítima do Silêncio “obsequioso”. Repetição de Vieira. Só que, em vez de farsa, foi a tragédia repetida e agravada. Por que agravada? Porque ocorrida quatro Séculos depois. Sem reinos e sem reis absolutos. Apenas Ditadores truculentos e assassinos, nos tempos da modernidade.

A Ditadura militar do Brasil conseguiu, tal qual a Corte de Lisboa, que a Cúria Romana calasse a voz de D. Helder. Diferentemente do Padre Vieira, D. Helder silenciou humildemente. E fez mais. Quando o papa silenciador veio ao Brasil, D. Helder ajoelhou-se aos seus pés e beijou-lhe as mãos. O Papa, inteligente e culto, deve ter pensado: “Meu Deus, isso é Jesus beijando as mãos lavadas de Pôncio Pilatos” . Baixe o pano.

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domingo - 07/05/2023 - 11:10h

Eu conheci um santo

Por Honório de Medeiros

Eu tinha dez ou onze anos quando conheci um santo. Chamava-se Helder Câmara, era Arcebispo da Igreja de Cristo em Recife e Olinda.Dom-Helder-Camara-NE2

A ele fui levado pela secretária particular do Governador Nilo Coelho, que eu suponho ter sido, muitas vezes, um canal de comunicação entre a Igreja, o Poder Civil e o Poder Militar em Pernambuco, dada sua condição singular de amiga pessoal dos líderes dessas instituições.

Fomos eu, ela, uma tia, funcionária da Sudene, minha mãe e minha irmã, no começo da noite, na sede do arcebispado.

Estávamos de férias em Recife.

D. Helder nos recebeu com aquele seu sorriso luminoso, tão característico, olhos pisados pela falta de sono, o corpo mirrado, frágil, em seu ascético gabinete.

Para mim, naquela época, era impossível sequer imaginar que ali estava um gigante moral. Um dique, que com a força de suas palavras, atitudes, e carisma, tantas vezes contivera o furioso redemoinho, em Pernambuco, das águas turbulentas da repressão pós 64.

Pregava defendendo uma Igreja simples, voltada para os pobres, e a não-violência. Orador que galvanizava multidões, também era um escritor cultuado. Dele li o belo “Um Olhar Sobre a Cidade”, depois perdido em alguma das mudanças que minhas muitas vidas me impuseram.

Entretanto, dele, guardei mesmo, em meu coração, em minha mente, sem nunca esquecer, não somente a benção que seus dedos magros desenharam sob a minha testa ainda infantil, como também uma frase sua, lida em algum lugar, que é a síntese, para mim, do seu apostolado, tão bela quanto densa: “me enriqueces quando discordas de mim”.

Eis uma epistemologia em forma de poesia direcionada ao espírito dos homens de boa-fé do povo de Deus. Minha benção, padre. Quando me lembro do senhor, acredito na humanidade.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

*Crônica extraída do livro De uma longa e áspera caminhada, pela Editora Viseu.

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domingo - 16/04/2023 - 11:44h

Aos que são vítimas de plágio

Por Honório de Medeirosplagio

Recentemente passei pelo que a doutrina jurídica brasileira denomina de “plágio indireto”.

Ocorre plágio indireto quando o redator do texto, com o uso de paráfrases, ideias sistematizadas ou mesmo de palavras-chave, apropria-se  e transcreve conteúdo de outro autor, sem a devida citação.

Cometer plágio indireto é crime contra a propriedade intelectual, conforme o  artigo nº 184, do Código Penal brasileiro.

Ao todo, o tempo de reclusão por plágio pode variar entre 3 meses até 1 ano. Ou seja, é o mesmo tempo em reclusão que diversos outros tipos de crime penalizam seus praticantes.

Evidentemente, esse crime também suscita efeitos de natureza civil, tal qual indenização por danos causados.

No plágio do qual fui vítima, o redator praticamente parafraseou um livro de minha autoria, sem qualquer citação ao meu trabalho, exceto quanto a um parágrafo, interpretado de forma absolutamente equivocada.

Pior, veiculou informações como sendo suas, quando na verdade foram extraídas do meu livro. Tais informações, antes de serem por mim publicadas, eram completamente desconhecidas.

Caso não haja retratação, pretendo acionar a Justiça.

Recomendo a todos quanto passam pela mesma situação, a mesma atitude.

Defender a propriedade intelectual é uma das formas de assegurar o respeito pelo seu trabalho realizado. No caso do meu livro, passei cerca de dez anos dedicado a ele, entre pesquisa – inclusive de campo -, estudo, leitura de outros autores, escrita, revisão, edição e publicação.

Sem contar o custo para a publicação da obra.

Nunca é pouco defender algo assim.

A defesa da lei, e de sua correta aplicação, é um dos baluartes da Democracia.

Não por outra razão Heráclito de Éfeso disse:

É necessário que os que falam com inteligência se fortifiquem com a coisa comum a tudo, assim com a lei a cidade e a cidade com mais força: pois as leis humanas se alimentam todas de uma lei una, a divina: pois (essa) domina tanto quanto quer e dá princípio a todas e as excede (Fragmento 114).

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 09/04/2023 - 07:26h

Pontear um assunto

Por Honório de Medeiros 

“Sente aqui”, me disse Seu Antônio de Luzia, segurando o braço de uma espreguiçadeira próxima a ele.

Era cedo da manhã, umas seis horas, a bem dizer, mas a passarinhada já tomara conta dos pés de caju no terreno em frente, do outro lado da rua de chão batido, no Feijão, Sítio Canto, Serra da Conceição, Sertão do Norte de Baixo.

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

“Já tomou café da manhã”? Respondi que sim, e agradeci.

“Traga uma caneca de café para o doutor, essa menina, sem açúcar. Foi coado agora?” A neta, filha de João, fez carreira casa a dentro, largando o bordado com o qual se divertia sentada no chão, escorada na parede.

Enquanto a caneca não chegava às minhas mãos, cuidamos de pastorar os passantes que iam no rumo da cidade, ou dela vinham, e olhávamos o vai e vem dos canários e sabiás, sem dizer qualquer palavra.

Caneca na mão, café fumegante, tapioca recusada, Seu Antônio virou-se para mim e me perguntou: “Doutor, me responda uma coisa, o senhor que é um homem sabido, estudado e viajado, vai haver uma guerra grande?”

Fiquei surpreso. Conhecia Seu Antônio de muito tempo, e tínhamos uma amizade até certo ponto estreita, nos limites bem claros da antiga cultura arcaica sertaneja. Homem calado, dado à introspecção, de pouca conversa, limitava-se, aqui e ali, a um dito, ou pequena história, para pontear um assunto, nunca o tinha visto agir dessa forma.

“Seu Antônio, não sei dizer. O Senhor, mais que ninguém, sabe que somente Deus conhece tudo, e eu sou um homem até certo ponto viajado, que já bateu algumas capas de livro, é certo, mas quanto mais vivo, tenho por mim mesmo que menos sei das coisas”.

“É, eu esperava que o Senhor dissesse isso mesmo. Agora, veja o Senhor: se os passarinhos estão voando baixo, as formigas assanhadas, se as pedras estão suadas, o mandacaru florando, é arriscado chover. Não é que vai ser, é que pode ser”.

Durante um fragmento de tempo me lembrei dos escritos do maior dos filósofos do século vinte, Karl Popper, que dizia o mesmo em sua epistemologia, para condenar o determinismo. “Meu Deus do Céu”, suspirei para mim mesmo.

“É verdade”, respondi. “O Senhor me pegou”. “Eu compreendo e admiro suas palavras, que são de sabedoria”. “Está conforme”. “O que eu posso dizer para o Senhor, sem medo de errar, é que eu nunca tinha visto um desmantelo tão grande quanto este que está tomando conta do mundo. Pode ter tido, mas eu não dou conta”.

“É como eu penso, Doutor. Parece o fim das eras. Pode não ser, mas é muita briga, muito ódio”. “Já me conformei”. “Vivi muitos invernos e secas, passei fome e hoje tenho umas coisinhas de nada, uns palmos de terra, andei légua tirana muitas vezes, conheci o coração do homem na sua maldade e bondade, mas tempos como estes, eu nunca vi”.

A conversa prosseguiu por muito tempo. Alguns passantes paravam, tomavam um gole de café mordendo um pedaço de rapadura, davam conta do que ocorria na cidade e no campo, arriscavam uma estória ou outra, formava-se um círculo de pessoas que se desfazia, depois outro, e mais outro, todos reverenciando Seu Antônio de Luzia.

De há muito as cadeiras tinham sido arrastadas para debaixo da cajaraneira frondosa, ao lado da casa, espécie de salão de visitas a ser usado quando o sol chegava forte.

Para o fim da manhã, mormaço se instalando, Seu Antônio me intimou a entrarmos, para pegarmos o feijão da comadre, misturado com arroz vermelho e um pouco de farofa d’água temperada com cheiro verde e cebola. Acompanhado por um guisado de carneiro, e rebatido com um naco de rapadura e um copo d’água gelado, seguido por um gole de café coado na hora.

“A rede está armada”, disse Seu Antônio, e eu embioquei quarto a dentro, me deitei alisando o lençol cheirando a flor de laranjeira, cobri os olhos, mergulhei em um sono de meia hora, mais não podia ser, até sonhei que voava feito um beija-flor, mundo afora, e via os homens, mulheres e crianças, em todos os lugares, felizes, sem malquerença, mágoa ou tristeza em seus corações.

Deus há de nos proteger…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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sexta-feira - 07/04/2023 - 11:42h
Lírico

Pau dos Ferros das águas

Barraem de Pau dos Ferros - foto de Honório de Medeiros - 6 de Abril de 2023Foto belíssima de Honório de Medeiros, nessa quinta-feira (6), na barragem de Pau dos Ferros.

Lírica, digo.

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sábado - 25/03/2023 - 19:44h
Leitura

Prazer, estou de volta

Voltei à leitura de 2 ou mais livros no mesmo espaço temporal. Tinha me desfeito do hábito há tempos, com a rotina de muitas horas diante de telas de computador, tablet e smartphone. Ler, por prazer, tinha virado sobrepeso de labuta, que a ‘vista’ e o corpo não aguentavam.

As boas companhias do fim de semana (Foto: pessoal)

As boas companhias do fim de semana (Foto: pessoal)

Agora vai.

Fim de semana embalado com “De uma longa e áspera caminhada” (Honório de Medeiros), “Doze contos peregrinos” (Gabriel García Márquez) e releitura de “Os cães ladram” (Truman Capote).

Não sei qual o melhor, cada um com seus atrativos, me instigando mais à cada página.

Prazer. Estou de volta.

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quinta-feira - 09/03/2023 - 20:24h
Livro e vida

Para caminharmos juntos

Livro está no catálogo da Editora Viseu (Foto: pessoal)

Livro está no catálogo da Editora Viseu (Foto: pessoal)

Com novo livro de Honório de Medeiros à mão, minha noite será a moldura de uma leitura que vai chegar à madrugada, presumo.

Se a vida nos religou por um fio que tinha se esgarçado e, parecia rompido desde a distante juventude, a proximidade do outono não nos dispersará outra vez.

Há muito a caminhar. Juntos!

Mossoró, na República da São Vicente, 09 de Março de 2023.

*De uma longa e áspera caminhada – Editora Viseu – adquira AQUI.

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Categoria(s): Crônica / Cultura
domingo - 05/03/2023 - 08:52h

Uma nova Casa Branca

Por Marcos Ferreira

Imóvel que foi demolido para que pudesse nascer um lugar habitável...

Imóvel que foi demolido para que pudesse nascer um lugar habitável…

... e decente à vida modesta, mas digna (Fotos: Marcos Ferreira)

… e decente à vida modesta, mas digna (Fotos: Marcos Ferreira)

Tudo começou com o escritor David de Medeiros Leite. Àquela época David estava presidente da Companhia de Habitação do Rio Grande do Norte (Cohab/RN). O filho da saudosa senhora Hilda foi quem me apontou a disponibilidade do imóvel situado no Conjunto Walfredo Gurgel, no Alto de São Manoel.

Eu contava com um cargo miúdo na Prefeitura de Mossoró, e fomos (eu, David Leite e o também escritor Clauder Arcanjo) dar uma olhada na casa, que encontramos em escombros. Assim mesmo, com o apoio de David e Clauder, conseguimos tornar aquelas ruínas em algo habitável. Esse, portanto, foi o início.

Depois de vários anos, sempre entremeados de incontáveis apuros, não pude mais realizar nenhum benefício na residência, e esta foi estiolando-se rapidamente. Decorridos cerca de quinze anos, portanto, a situação se agravou. A ponto de eu colocar uma placa de venda, buscando assim adquirir outro imóvel noutro subúrbio mais distante deste município. Ressalto que o Walfredo Gurgel, exceto por alguns problemas estruturais, ainda é um bairro bem familiar, de cadeiras nas calçadas.

Ao saber da placa de venda, meu amigo petroleiro Elias Epaminondas bateu os coturnos e se opôs com veemência à venda de meu endereço. Sim. Eu costumava dizer que não tinha uma casa, mas somente um endereço. A placa de venda foi retirada. Miriam Ferreira, esposa de Elias, elaborou um simples e belo projeto para minha nova habitação e Elias deu início a um mutirão entre nossos amigos.

Agora, extremamente grato, eu me sinto na obrigação de relacionar aqui os nomes daqueles que se sensibilizaram e contribuíram, de maneira relevante, para tornar meu sonho e o projeto de Miriam Ferreira em realidade.

De largada, cito o amigo Clauder Arcanjo, que prontamente se comprometeu em adquirir todas as telhas. A seguir, embora sempre discretos, vêm Túlio Ratto e José Antero dos Santos, responsáveis por grande parte do cimento. Na sequência, em ordem aleatória, vou citando o restante dos nomes. Torço que isso não lhes pareça maçante ou enjoativo, tendo em vista que o nobre leitor sempre espera encontrar neste espaço o mínimo possível de literatura, sobretudo no gênero crônica.

Mas, repito, eis os bons samaritanos em ordem aleatória: Luiza Maria Freire de Medeiros, Raimundo Antonio, Fabrício Caymon, Raimundo César Barbosa, Odemirton Filho, Zilene Medeiros, Dr. Dirceu Lopes, João Bezerra de Castro, Aluísio Barros, Francisco Wanderley, Cristiane Reis, Marconi Amorim.

Acho que isto, com perdão do leitor, não se trata de prestação de contas ou cabotinismo imobiliário. Não é isso. Também não é subserviência, servilismo púbico. Quero apenas, no breve espaço de uma crônica, quiçá duas páginas, exibir, de maneira honesta, minha gratidão a essas pessoas que venho citando. Porque a gente não tem rédeas no instante de fazer determinadas críticas a terceiros, todavia se omite no momento de tornar notório aquilo de bom que lhe foi feito. Aqui eu falo de gratidão. E gratidão não está nem nunca esteve fora de moda. É algo bom a se praticar.

Contei, entre outros, com figuras como Rogério Dias, Flávio Quadrado, Ranniere Ferreira, Sandro Jorge, Jessé de Andrade Alexandria, Alexsandro Lopes Pinto, Laélio Ferreira, André Luís, Carlos Silva, Antonio Alvino, Dr. Lúcio Leopoldino, Francisco Nolasco, Francisco Amaral Campina, Gildemar Condados, Elder Nolasco, Anchieta Albuquerque, além do meu culto Editor Carlos Santos.

Não paramos por aqui. O mutirão prossegue. A velha choupana foi inteiramente demolida e uma nova casa branca (que não é a dos americanos) ergueu-se bela e majestosa sob as mãos dos pedreiros Jailson Batista, Rogério Cordeiro e Wellington Azevedo. “Agora não tem mais volta”, falei comigo mesmo.

Vamos aos demais: Francinaldo Rafael, Honório de Medeiros, Cid Augusto, Elisabete Stradiotto, Valdemar Siqueira, Ênio Souza, Luzia Praxedes Arcanjo, João Helder Alves Arcanjo, José Anchieta de Oliveira, Afrânio Melo, João Maria Souza da Silva, Antônio Railton, Marquinhos Rebouças, Nilson Rebouças, Jorge Alves, Vanda Maia, Arlete Jácome, Dr. Diego Dantas e Alexandre Miranda. Creio que não esqueci ninguém, isto graças a Natália Maia e às suas planilhas cheias de nomes e números. Também agradeço àqueles que, por um motivo ou outro, não puderam ajudar. Sei que muitos torceram pelo êxito desta empreitada construída graças a várias doações.

Não tenho, pois, o menor embaraço em escrever expondo meu agradecimento a todos esses amigos de primeira e de última hora. Porque a gratidão, repito, faz parte do meu DNA, da minha constituição e personalidade.

Todos são bem-vindos para um cafezinho.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 22/01/2023 - 09:24h

O fio que conecta a trama

Por Gustavo SobralDe uma longa e áspera caminhada - livro de Honório de Medeiros - foto

Faltava à vertente escrita de Honório de Medeiros, jurista, filósofo, ensaísta e biógrafo, escritor, o livro pessoal. Aquele em que o escritor reúne fragmentos de sua pensata, impressões, expressões, leituras, ficções e que revela um mundo de uma viagem pelo pensamento.

De uma longa e áspera caminhada (Viseu, 2022, 148p), de Honório de Medeiros, é um tanto isso e muito mais. É aquele livro que a gente vai e volta, para, pensa, grifa, relê, anota. É aquele livro que nos faz sair do mesmo e nos faz dialogar com o autor.

Recém-lançado e disponível para compra no site das livrarias e magazines, no Brasil, Portugal e Estados Unidos, em versões impressa e digital, o livro é um navego de um leitor vocacionado pela literatura universal e que revela o escritor cuja vida foi traçada pela leitura e pelos livros, desenhando o seu olhar sobre o mundo.

O leitor há de se aventurar palmo a palmo, a cada página de um pouso no inesperado, o que faz do livro um caminho de surpresas e que faz da leitura um caminho que pode ser próprio além do preposto pelo sumário. É um livro de ir e vir, é um livro para navegar.

O áspero do título pode até ir de encontro a um certa incredulidade e ceticismo que se contrapõe ao leitor do mundo abismado, surpreso, encantado, que toma água de coco na praia e conversa, anda pelo cemitério de Paris e tece uma perfeita crônica em ode ao ipê amarelo, uma beleza à Rubem Braga.

Honório de Medeiros é também aqui filósofo, lógico, matemático, político, cidadão, literato; é também o colecionador de paisagens, sensações, surpresas.  É Rousseau acima de Voltaire e Voltaire acima de Rousseau, com Platão, Popper e outros mais caros ao seu pensamento.

Este é o livro que faltava na biblioteca potiguar pela solidez do conteúdo, forma e o jeito de sabor de conversa que nos conduz. Vale ter na cabeceira como companhia.

A pré-venda é no site da editora Viseu e o livro físico está nos sites da Amazon, Americanas, Magazine Luiza, Shoptime, Submarino. E o e-book nestas e Apple, Barnes & Noble, Google, Kobo, Livraria Cultura e Wook.

Gustavo Sobral é escritor, ensaísta e jornalista

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Categoria(s): Crônica
domingo - 08/01/2023 - 09:00h

Paulo Maia

Por Honório de Medeiros

Da esquerda para a direita de quem olha: Fred, Paulo Maia, Hélton, eu, Fernando Negreiros, Segundo Paula, Lenilson, Anchieta, Delevan, Jânio Rêgo. Turma da Quarta Série Ginasial, 1972, Colégio Diocesano Santa Luzia, reunidos em 2011 (Foto: arquivo do autor)

Da esquerda para a direita de quem olha: Fred, Paulo Maia, Hélton, eu, Fernando Negreiros, Segundo Paula, Lenilson, Anchieta, Delevan, Jânio Rêgo. Turma da Quarta Série Ginasial, 1972, Colégio Diocesano Santa Luzia, reunidos em 2011 (Foto: arquivo do autor)

Paulo Maia dizia que era baixinho por minha culpa: eu tinha roubado o leite dele, quando recém-nascido.

Tudo porque eu nasci três dias depois do 23 de abril de 1958, no qual ele veio ao mundo, ambos na Maternidade Almeida Castro, em Mossoró.

Como mamãe não conseguia matar minha fome com seu pouco leite, valeu-se da generosidade da mãe dele, Manolita Pereira, que nos alimentou.

Manolita diz que é minha mãe de leite. Eu respondo, sempre respondi, que eu e Paulo tínhamos que ser irmãos, estava escrito no livro da vida, e beijo a mão dela, reverente.

Entre idas e vindas, altos e baixos, seguimos próximos vida afora, sempre próximos. Amigos desde a maternidade.

Ontem (05/01/2023 – veja AQUI), eu lá pelas bandas de São João do Sabugi, muito longe, em busca das misteriosas raízes genealógicas do meu avô paterno, acordo cedo, abro o celular, e leio a notícia de sua morte.

Um baque. Boto o carro na estrada e venho mudo, de lá até Mossoró, rasgando o centro do Estado, percorrendo um mundão de terra.

Uma espécie de solidão amarga, ensimesmada, uma onda de tristeza que teima em vir, toma conta da gente. Sensação de impotência. Solidão, tristeza e impotência.

Falam que há conforto na partida de alguém que lutou bravamente por dois anos contra essa maldita doença cujo nome, amedronta tanto, que o abreviaram.

Pode ser. Sei que lutou ele, a esposa, filhos, a família toda, os amigos, os amigos dos amigos. Rezamos muito. Luta vã. Que seja feita a vontade de Deus.

Descansou, então, e por fim.

E a saudade?

Paulo, você se lembra daquele dia no qual Antônio de Bé nos levou em sua jangada, começo da madrugada, para além da última visão de terra, como companheiros de pescaria?

Lembra das tardes de cerveja e Belchior, lá no Asfarn, em Natal?

Lembra dos veraneios em Tibau? Do jipe, das meninas, dos amigos comuns, das pescarias no Arrombado?

Do Diocesano e da turma da quarta série ginasial de 1972?

Lembra como decidimos, junto com Delevam, quem seria o padrinho de Paulinha?

Lembra daquele dia no qual fomos barrados na ACDP?

Lembra daquele dia… melhor não contar, não é?

Ê Paulo, são tantas e tantas memórias. Um dia eu conto para meus sobrinhos! As que eu puder, claro.

Ei, Paulo, aguarde aí. Um dia, chego.

Descanse em paz, meu irmão.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 25/12/2022 - 05:22h

O bem e o mal

Cainismo. Caim. Zoroastrismo e Heráclito de Éfeso - unidade dos opostos constituindo a Realidade.

Por Honório de Medeiros

O caminho que sobe e o que desce é o mesmo (Heráclito de Éfeso, dito “O Obscuro”)[1].

– Mas terá que aceitar isso – retrucou Woland, e o sorriso irônico entortou sua boca. Você mal apareceu no telhado e já disse bobagens, e vou dizer onde elas residem: na sua entonação. Você pronunciou suas palavras de tal maneira como se não reconhecesse as sombras, e muito menos a maldade. Não seria muito trabalho de sua parte pensar na seguinte questão: o que faria a sua bondade se não existisse a maldade, como seria a terra se dela sumissem as sombras? (O Mestre e Margarida, Mikhail Bulgákov)[2].O bem e o mal, luz e trevas, vida e seca

“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus.” (Demian, Hermann Hesse)[3].

Quem, nos anos 70 do século passado, gostava de ler, possivelmente teve entre as mãos algum livro de Herman Hesse.

Talvez Sidarta, no qual ele romanceou a vida de Gautama Buda, ou mesmo O Jogo das Contas de Vidro e O Lobo da Estepe, os mais cultuados; quem sabe DemianPequenas HistóriasNarciso e Goldmund, os menos conhecidos.

É possível que dentre esses, Demian seja considerado um livro menor.

Na verdade, a crítica teceu e tece loas à O Jogo das Contas de Vidro e, em menor escala, a O Lobo da Estepe, muito embora o mais famoso seja Sidarta, cuja fonte foi a vida do grande líder espiritual Buda (Siddhärtha Gautama), Príncipe de Sakyas, “o Iluminado”, que viveu entre 563-483 a.C., um homem extraordinário.

Quando adulto, Sidarta, rebelado contra a hierarquia bramanista, largou todos os confortos materiais dos quais dispunha no palácio do seu pai, o rei, para ir em busca do real sentido da existência, ganhando fama imorredoura em todo o Oriente como Gautama, o Sublime.

Em Demian, Hesse nos apresenta a um enigmático adolescente e sua mãe, mulher bela e misteriosa iniciada em uma seita pouco conhecida, o Cainismo, que fascina Emil Sinclair, colega dele de escola e relator da história.

O Cainismo foi uma seita gnóstica cristã surgida no século II d.C. que venerava Caim como filho de um espírito superior ao que teria criado seu irmão Abel, considerada herética pela Igreja Católica.

Quando o Cainismo aparece na convivência entre Demian e Sinclair, aquele aponta, como ponto-de-partida para uma possível iniciação do amigo na doutrina Cainista, o conhecimento da vida de uma relação de personagens significativos, embora condenados pela história oficial, começando por Eva, depois Caim, cujo nome batiza a seita, bem como Judas Iscariotes, dentre outros.

Sabe-se que o Cainismo foi resgatado no século XIX da total obscuridade por Lord Byron, o cultuado e maldito poeta romântico inglês, e hoje é possível que somente exista em obras emboloradas praticamente desconhecidas, a grande maioria ocupando estantes empoeiradas no imaginário “Cemitério dos Livros Esquecidos” que fica em Barcelona, e do qual nos deu a conhecer Carlos Ruiz Zafón, em famosa tetralogia.

Voltando a Demian, a pergunta que ele faz a Emil Sinclair, durante o transcorrer da trama, no processo de sua iniciação nos segredos da seita, é se haveria Adão sem Eva; Abel sem Caim; Jesus, sem Judas, e assim por diante. Evidentemente, a verdadeira questão, implícita e fundamental, é se haveria o Bem, sem o Mal; e, fundamentalmente, a Ordem, sem o Caos.

Não é ousadia supor que o Cainismo seja descendente do Zoroastrismo ou Mazdeísmo, a religião dominante no Império Persa mais ou menos no século VI a.C. até sua invasão e dominação, no reinado de Dario III, por Alexandre “O Grande”, rei macedônio.

O zoroastrismo professava uma interpretação dualista da realidade, entendendo-a como governada pelas forças antagônicas do Bem e do Mal: existiria um deus supremo, criador de dois outros seres poderosos que seriam extensões de sua própria essência: Ormuzd (ou Ahura-Mazda, ou ainda Oromasdes, segundo os gregos), a fonte de todo o Bem, e Ariman (Arimanes), a fonte de todo o Mal, depois que se rebelou contra seu criador.

Os conflitos entre o Bem e o Mal seriam constantes até o momento em que Ormuzd venceria, condenando Ariman e os que o seguiam às trevas eternas.

Tampouco é ousadia crer que o Maniqueísmo seria continuação dessa linhagem herética e gnóstica originada na Pérsia, muito tempo depois renascida no Império Romano (sécs. III e IV d.C.). Sua doutrina, plena de um dualismo religioso sincretista, consistia em afirmar, também, a existência de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), assim como em localizar a matéria e a carne na escuridão.

Do Maniqueísmo foi seguidor, por um longo tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho de Hipona, Doutor da Igreja Católica, talvez seu mais importante pensador, autor da “magnum opus” De Civitate Dei (A Cidade de Deus), por quem Santa Mônica, sua mãe, tanto rezou para o converter.

Avançando no tempo, mas ainda na mesma linhagem, essa mesma percepção gnóstica, dualística, da realidade, constituiria o cerne da doutrina do Catarismo, professado pelos Perfeitos, a quem a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França na Primeira Cruzada da Igreja Católica, liderada por São Luis, o nono Rei francês.

É um fato que questões como essas, acerca do eterno embate entre o Bem e o Mal (a Luz e as Trevas), e a Ordem e o Caos, suscitaram debates ardentes e sinceros durante os famosos e esotéricos anos 60 e 70 do século passado, quando se questionava, entre outras coisas, o modelo de vida que o capitalismo “selvagem” ou o socialismo “científico” impunham ao mundo.

Era o tempo da Revolução de maio de 1968, na França, e do Festival de Woodstock nos Estados Unidos.

Havia, então, um inebriante fascínio pelo Oriente misterioso dos zoroastristas, cainitas, maniqueístas, iogues, faquires, dervixes, sadhus, budistas, taoístas, e seus estilos de vida, enquanto contraponto à possibilidade de hegemonia da sociedade de consumo ou do marxismo-leninismo.

Ainda hoje encontramos, em alguns nichos na internet, tal percepção esotérica acerca da realidade, herdeira longínqua dessas arcaicas seitas, que parece muito distante do feijão-com-arroz cotidiano ao qual estamos acostumados.

Existem também espaços diminutos, embora alvoroçados, no campo das ideias, resultantes de raízes solidamente firmadas na tradição oriental, que se voltam para a tentativa de explicar fenômenos tais como a antimatéria, física quântica, ou a teoria do Caos, em uma perspectiva que resvala para a metafísica, menos atenta ao rigor metodológico ortodoxo próprio da ciência. Que o diga Fritjof Capra, famoso físico teórico autor de O Tao da Física e O Ponto de Mutação.

Fritjof Capra traça um suposto paralelo entre a física relativística, assim como a quântica e a das partículas, e as filosofias e pensamentos orientais tradicionais, tais quais o taoísmo, o Budismo, e o Hinduísmo. Surgido nos anos 70, seu livro O Tao da física busca os pontos comuns entre as abordagens oriental e ocidental da realidade.

Por fim, voltando a Herman Hesse, com o qual abrimos este ensaio, é possível entender que, em Demian, ele tratou obliquamente, ao utilizar o Cainismo como pano de fundo da trama cujo epicentro é a relação entre Demian, Emil Sinclair e Gertrud, em uma perspectiva esotérica, acerca do que seja a Realidade, e cujo ponto de partida é a onipresença da eterna guerra entre o Bem e o Mal.

Mais: ao fazê-lo, trouxe para a claridade, ou pelo menos tentou, a misteriosa seita que seus personagens professavam e, para quem optou por se aprofundar na questão, como consequência, os mistérios do Zoroastrismo, Maniqueísmo e Catarismo, seus parentes próximos pela linhagem.

Teria o Zoroastrismo, cujo apogeu ocorreu aproximadamente no século VI a.C., influenciado Heráclito de Éfeso (aproximadamente 500 – 450 a.C.)?

Pode ser que sim. O certo é que antecede o filósofo em um ponto principal de sua cosmovisão, a de que os opostos são idênticos, embora apareçam para os homens como diferentes:

Vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice, tudo é o mesmo. (…) pois um virado, é o outro e o outro, virado, é o primeiro. (…) O caminho que sobe e o que desce são o mesmo (…) bem e mal são idênticos. (…) Para Deus todas as coisas são belas e boas e justas, mas, para o homem, há algumas coisas justas e outras injustas (…). Não pertence à natureza ou caráter do homem possuir o verdadeiro conhecimento, mas sim à natureza divina[4].

                   Sir Karl Popper, analisando esse trecho, observa que:

Assim, na verdade (e para Deus) os opostos são idênticos: só aos homens eles aparecem como não idênticos. E todas as coisas são uma só – todas elas são parte do processo do mundo, o ‘Fogo’ perene[5].

Todo esse Conhecimento arcaico, mas fundante, de natureza esotérica, é calcado na crença de que a Realidade é a extensão visível e material de uma divindade única e suprema, da qual são emanações antagônicas o Bem e o Mal; por outro lado, de natureza filosófica, é calcado na conjectura da unidade do mundo, identidade dos opostos e da aparência e realidade.

                   Para o Zoroastrismo, o Bem e o Mal são forças antagônicas que seriam extensões da essência de um Deus supremo. Heráclito de Éfeso disse que o Bem e o Mal são idênticos, “Somos e não somos”[6], e concluiu que para Deus, todas as coisas são belas, boas e justas, e todas as coisas são somente uma.

                   O Bem e o Mal: o Um.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

[1] POPPER, Sir Karl. O Mundo de Parmênides: Ensaios sobre o Iluminismo Pré-Socrático. São Paulo: Unesp, 2019.

[2] BULGÁKOV, Mikhail. O Mestre e Margarida. Rio de Janeiro: Alfaguara. 2003.

[3] HESSE, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Record. 2015.

[4] POPPER, Karl. O Mundo de Parmênides: Ensaios sobre o Iluminismo Pré-Socrático.

[5] Idem.

[6] Ibidem.

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domingo - 18/12/2022 - 05:04h

Retalhos do cotidiano

Por Marcos Ferreira

Penso agora em escrever alguma coisa na terceira pessoa, algo sobre fatos que não tenham nada a ver diretamente comigo. É isso. Ao menos uma pequena crônica que fale sobre terceiros, eventos alheios. Acontece, porém, que hoje, a exemplo de vários outros dias, não estou com vocação para falar sobre a vida além da minha pífia existência. Suponho que os meus poucos leitores já estejam enjoados, de saco cheio, de ler tantas narrativas tão pessoais.

Por que não falar um pouco sobre política? Não quero me ocupar com política. Até por uma questão de higiene mental.retalhos, cabeça, pensamento, cotidiano, homem, rosto, pensamentos

Há outros assuntos muito na moda. O futebol, por exemplo, é um deles. Contudo não entendo patavina acerca dessa matéria. Sei apenas que nossos atletas, os da seleção canarinha (vai com minúsculas mesmo) se preocupam muito mais em mudar a cor e o corte do cabelo a cada jogo, fazer dancinhas, mogangas e caretas do que propriamente jogar bem. Isso, todavia, como eu já disse, não é assunto para mim. Então passo a bola para o ex-futebolista e comentarista Walter Casagrande.

Hoje, entretanto, diante da escassez de motivação ou inspiração, digo honestamente que me sinto vazio, sem uma centelha de criatividade, sem voltagem literária. Considero chato, no entanto, e isso é uma opinião de muitos cronistas craques do gênero, como Rubem Braga e Fernando Sabino, Antônio Maria, lamuriar-me por causa da falta do que escrever. Não. Embora seja uma solução bem-aceita, uma receitinha caseira e salvadora, não vou ceder ou consolar o leitor com essa chupeta. Acho que ele sempre merece mais do que tapeação, lugares-comuns e monotonia.

Nessas horas de esterilidade verbal, situação esta que ocorre com incômoda frequência, penso na prosa suave e honesta do cronista Odemirton Filho, penso no estilo cheio de poeticidade do vate Cid Augusto, recordo o verbo instantâneo e burilado do meu Editor, jornalista e escritor Carlos Santos, além de outros colaboradores deste espaço dominical. Esses manejadores da palavra escrita, os quais leio e sempre aprendo alguma lição nova, dão corpo e forma a mais este parágrafo.

Acima, então, eis um parágrafo tão honesto quanto merecido. Porque não menciono tais pessoas nesta página fria por uma questão de favor ou de coleguismo gratuito. Não, meus prezados amigos. Não sou desse tipo, não sou bajulador. E há outros trabalhadores do verbo (colaboradores deste Blog) que povoam o Canal BCS e merecem igual referência, muito embora eu incorra no pecado da omissão e da curta memória. Cito, portanto, escribas de admirável talento como Honório de Medeiros, François Silvestre e o não menos aguerrido comentarista Marcos Pinto.

Bom. Deixemos o beija-mão de lado. E peço desculpas àqueles que deixei de citar por traição da memória. Neste momento da manhã, cuja hora prefiro não revelar, outra vez escuto a procissão dos pregoeiros do conjunto Walfredo Gurgel. Vão passando aqui pela rua do cubículo que habito provisoriamente. Negociam com todo tipo de coisa. Como o anônimo vendedor de frutas: “Olha a banana, olha a acerola, o abacaxi, a manga, a verdura, o melão”, diz o homem sobre sua carroça.

Outros mais, como eu já mencionei em textos anteriores, mercadejam toda sorte de produtos. Um anuncia o queijo de coalho, outro propaga que tem galinha caipira fresquinha, daí a pouco passa o carro dos ovos, o entregador de leite chama a clientela cativa: “Olha o leite!”, grita o sujeito sobre a motocicleta, já destampando o botijão metálico. Não só homens trafegam por estas ruas de paralelepípedos oferecendo uma coisa e outra aos moradores. Jovens senhoras, às vezes em companhia de filhos miúdos, tentam vender pamonha, canjica, tapioca, cocada, picolé e sorvete.

Eu bem sei que estou a me repetir. Como também sei que você não se apraz com isso. Os leitores querem, esperam por um assunto novo a cada semana, a cada domingo. Não lhes tiro a razão. Às vezes, porém, a gente precisa requentar o pão. E pão requentado não é coisa das piores. Porque não existe pão duro para uma boa fome. Ainda assim quem nos acompanha está correto. Pois paga, com o tempo que nos dedica, por um texto minimamente e, quem sabe, inovador. Não basta só arte.

A vida neste cubículo claustrofóbico, embora com a perspectiva de que isso dure cerca de três meses, é algo desestimulante. Aqui não há saída de ar, apenas a porta da frente, de maneira que o vento não entra. Não bastasse, fica defronte para o sol após o meio-dia. O ventilador já deu sinais de cansaço.

Pensar em literatura também se tornou um luxo bem pouco acessível. Minha velha casa foi demolida para a construção de uma nova. Um pouco menor, é verdade, mas sem o risco iminente de cair por cima de mim. O inverno está chegando, mas eu me sinto otimista.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 04/12/2022 - 11:24h
Honório de Medeiros

Um livro para se conectar nessa longa caminhada pela vida

Lançamento de novo título será em janeiro

Lançamento de novo título será em janeiro

O escritor e colaborador perpétuo do Canal BCS (Blog Carlos Santos), Honório de Medeiros, prepara lançamento de mais um livro.

Está chegando “De uma longa e áspera caminhada, pela Editora Viseu.

“O fio que conecta a trama deste livro bem pode ser o que se revela com a leitura de suas pequenas histórias, de algumas poucas reflexões, do sumo extraído de algumas leituras, das conexões existentes entre vários escritores, de algumas memórias, de um pouco de ficção e fantasia, e, ao fim, nada mais é, tudo isso, que o relato de uma árdua e longa caminhada pela vida.”

PRÉ VENDA: editoraviseu.com
LANÇAMENTO E VENDA: 2 de janeiro de 2023
LIVRO: Amazon, Americanas, Magazine Luiza, Shoptime e Submarino.
EBOOK: Amazon, Apple, Barnes & Noble (EUA), Google, Kobo, Livraria Cultura e Wook (Portugal).

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domingo - 27/11/2022 - 08:20h

Grandes e Pequenos Homens e Mulheres especiais

Porque, como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm laborado (Os Heróis, Thomas Carlyle)[1].

É bem verdade que isso acontece em casos isolados e únicos em várias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, nas quais certamente se manifesta um tipo superior; tipo que, comparado ao restante da humanidade, aparece como uma espécie de super-homem (O Anticristo, Friedrich Nietzche)[2]. 

heróiPor Honório de Medeiros

Sempre houve alguma percepção, às vezes discreta, outras, não, de que o percurso da humanidade somente pode ser compreendido se for levada em consideração a noção de que homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, o mais das vezes anônimos, construíram a história.

Não se defende, aqui, que haja uma lei histórica que aponte a existência desses homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, conduzindo o processo histórico, às ocultas ou claramente.

O que se defende é que sempre houve essa percepção, discreta ou ostensiva, por parte significativa de pensadores, de que isso realmente aconteceu.

Sempre houve essa percepção, assim como a de que esses homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, tanto poderiam ser considerados do “Bem”, quanto do “Mal”, seja o que seja um e outro a depender da avaliação dos seus contemporâneos ou pósteros.

Essa percepção, atenta às suas circunstâncias, originou relatos mitológicos, como os do Zoroastrismo, onde Ormuzd é a fonte de todo o Bem, e Ariman, a fonte de todo o Mal.

Há, portanto, uma justificativa metafísica para essa conjectura desenvolvida por muitos pensadores.

Saliente-se o embaralhamento proposital, no romance de Hermann Hess, Demian, entre o que seria o Bem, e o que seria o Mal, quem seriam os heróis, e quem seriam os bandidos, que aponta para o problema da construção das narrativas que solapam verdades ocultas até que o tempo e as circunstância as resgate da escuridão.

No texto, Demian diz para Emil Sinclair, o personagem principal e narrador, referindo-se a Caim:

– Também gostei, mas creio que essa história de Caim pode ser interpretada de maneira diferente. A maioria das coisas que nos ensinam é, sem dúvida, verdadeira, mas também pode ser considerada de um ponto de vista diferente daquele dos professores, e então passa a apresentar quase sempre um significado muito mais amplo. Por exemplo: essa história de Caim, o homem que tinha um sinal na fronte, não poderia nunca nos satisfazer tal como nos é ensinada. Não achas?… Que um homem possa matar seu irmão numa disputa é algo admissível; como também o fato de haver sentido medo em seguida e se humilhado. Mas que sua covardia seja premiada com uma distinção que o ampara e inspira medo a todos os demais… isso já é francamente estranho.

                        (…)

O que houve desde o princípio, e constituiu como ponto originário da história, foi o sinal. Havia um homem que tinha algo no rosto que atemorizava os demais. Não se atreviam a toca-lo e sentiam medo diante dele e de seus filhos. Mas, naturalmente, o sinal que aquele homem trazia na face não era material, não era, por exemplo, como o de um carimbo dos correios; as coisas não costumavam acontecer, na vida, de maneira tão rudimentar. Tratava-se, possivelmente de algo talvez sinistro, apenas perceptível, digamos um pouco mais de vivacidade e de audácia no olhar. Aquele homem era poderoso e esparzia inquietude. Tinha um “sinal”. As pessoas podiam explicar aquilo como quisessem. E sempre queremos aquilo que nos seja mais cômodo e que nos dê razão. Os filhos de Caim, marcados com o “sinal”, atemorizavam os demais, e aquele sinal passou a ser explicado não como a distinção que realmente era, mas exatamente como o contrário. Passaram a dizer que os homens assim marcados era pessoas suspeitas e ímpias, o que, na verdade, ocorria. Pois os homens corajosos, as pessoas de caráter, sempre inquietaram as demais. Tornava-se, portanto, francamente incômoda a existência de uma raça especial de homens sem medo e capazes de infundir medo aos demais, e então lhes atribuíram um apodo e uma lenda para se vingarem daquela raça e justificarem de certo modo os temores sofridos…[3]

Observemos que a crença na existência do Bem e do Mal atuando concomitantemente, e, em decorrência, de anjos e demônios, heróis e bandidos, constituindo parte do caldo fundamental do qual surge a história poderia, assim, ser considerada arquetípica, fazendo parte do inconsciente coletivo da humanidade, nos moldes propostos na obra de Carl Gustav Jung, um dos maiores psicanalistas de todos os tempos, fundador da Psicologia Analítica.

É de se mencionar o interesse de Carl Jung, tão condenado por Freud, pelo esoterismo, espiritualidade e artes ocultas, que temia pelo comprometimento da credibilidade da Psicanálise.

Carl Jung foi muito importante para a comunidade psicanalítica, chegando a presidir a Associação Internacional de Psicanálise. Fez significativas contribuições para esse ramo do conhecimento, como a elaboração do conceito de “Complexo de Édipo”, chamado por ele de “Complexo de Electra”; da noção de “inconsciente coletivo”; da hipótese dos “arquétipos”; além de outras. Uma teoria famosa de Carl Jung é a dos “tipos psicológicos”, por meio da qual ele propôs os conceitos de introversão e extroversão.

Pois bem, o texto do capítulo anterior é uma alegoria, utilizada para propor a hipótese de que, ao longo do tempo, não faltou quem defendesse ser a história da humanidade constituída pelas ideias e ações daqueles que, de uma forma ou outra, enquanto “heróis” ou “bandidos”, louvados ou condenados, ao resolverem seguir em frente, impulsionaram a história.

No que diz respeito aos “heróis”, respeitados Homero, Heródoto, Tucídides, Hesíodo, Ésquilo, e tantos outros antecessores, Thomas Carlyle foi um dos principais pensadores a defender diretamente o papel fundamental por eles exercidos.

Seu livro Os Heróis, o mais notório de quantos escreveu, publicado em 1841, reuniu seis conferências por ele realizadas desde 1837, e é imediatamente posterior à História da Revolução Francesa, e, nele Carlyle discorreu acerca dos heróis, do culto dos heróis, do heroísmo na história, e expôs sua teoria fundamental, qual seja a de que o conhecimento da história do mundo resulta do estudo da vida de homens como Maomé, Dante, Shakespeare, Lutero, Knox, Samuel Johnson, Jean Jacques Rousseau, Cromwell e Napoleão.

Deve-se ressaltar, entretanto, que uma exegese atualizada do seu texto exige uma abrangência maior quanto a quem impulsiona, com suas ideias e ações ou omissões, a história universal, para englobar tanto aqueles que possam merecer os elogios dos seus contemporâneos e da posteridade, quanto aqueles que mereceriam o opróbrio da humanidade:

Porque, como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm laborado. Eles foram os condutores de homens, estes grandes homens, os modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir; todas as coisas que nós vemos efetuadas no mundo são propriamente o resultado material externo, a realização prática e a incorporação dos pensamentos que habitam nos grandes homens mandados ao mundo: a alma de toda a história universal, pode justamente considerar-se, seria a história destes[4].

É de Carlyle a avançada teoria, para a época, de que os patrões, que ele apontava como um dos tipos de heróis, viriam a pensar, algum dia, que é (seria) “possível e necessário conceder a seus empregados um interesse permanente nas suas empresas”[5].

Não é possível deixar de comparar o trecho anterior, com outro, do romance Demian, de Hermann Hesse:

Para isso levamos o sinal, como Caim o trazia para infundir medo e ódio e arrancar a humanidade de então de um mundo idílico e limitado, conduzindo-a a horizontes mais amplos e perigosos. Todos os homens que influíram na marcha da humanidade, todos eles, sem exceção ou diferença, puderam fazê-lo porque estavam sempre prontos para o destino. Tanto Moisés quanto Buda, Napoleão ou Bismarck. Ninguém pode escolher a onda a que obedecerá nem o polo pelo qual será atraído. Se Bismarck tivesse compreendido os social-democratas e acolhesse suas inspirações, teria sido um político prudente, mas não um homem do destino. O mesmo se passou com Napoleão, com César, com Inácio de Loyola, com todos eles. Essas coisas devem ser consideradas sempre do ponto de vista biológico e evolutivo[6].

Mais que à noção de “heróis”, no sentido proposto por Thomas Carlyle, é melhor estar atento, portanto, aos que ele nomina de “condutores”, “modeladores”, “padrões”, “criadores” de tudo quanto “a massa geral dos homens (ou mulheres) imaginou fazer ou atingir”.

Seriam os “grandes homens” de Carlyle os mesmos “homens do destino” aos quais aludiu Hermann Hesse, pela boca de seu personagem Demian, todos eles, enfim, heróis” ou bandidos”, “santos ou hereges”, “estadistas” ou “terroristas”, a depender, um ou outro qualificativo, de como os seus contemporâneos e pósteros os julgaram e julgam, formando a unidade primordial entre os opostos mencionada pelo Zoroastrismo e Heráclito de Éfeso e constituindo a história da humanidade.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

[1] CARLYLE, Thomas. Os Heróis. São Paulo: Melhoramentos. 1956.

[2] NIETZSCHE, F. O anticristo. São Paulo: Martin Claret. 2015.

[3] Demian, O.a.c.

[4] Os Heróis, O.a.c.

[5] Idem.

[6] Demian, O.a.c.

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quarta-feira - 19/10/2022 - 18:44h
Reflexão

Bem assim…

carneiros-e-lobo-121430964Por Honório de Medeiros

No começo, Rousseau disse que nascemos iguais. Muitos acreditaram.

Voltaire, não.

Depois, veio Marx e disse que a superestrutura ideológica, em última instância, emana da infraestrutura econômica, como se o fato antecedesse a ideia de sua existência. Muitos acreditaram.

Popper, Hayek, Aron, Mises, os anarquistas, não.

Deu no que deu…

As ideias são armas.

Os lobos sabem disso, os carneiros, não.

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sábado - 24/09/2022 - 16:14h
Luto

Mary Cantídio, símbolo da distinção das grandes damas de Mossoró

Por Honório de Medeiros

Com o falecimento de Mary Cantídio, perdemos um símbolo da distinção que caracterizava as grandes damas da antiga Mossoró.

Mary Cantídio: boas lembranças (Foto: redes sociais)

Mary Cantídio: boas lembranças (Foto: redes sociais)

Elegante, discreta, requintada, Mary foi casada com Aldo Fernandes, primo “legítimo” – como dizemos por aqui – de minha mãe, o filho caçula de Ezequiel Fernandes, grande condutor de Alfredo Fernandes e Cia. Ltda., nos áureos tempos da riqueza que o algodão proporcionou.

Mary Cantídio e Aldo estão em minhas mais antigas lembranças de menino adolescente atrevido, sempre carinhosamente recebido na residência deles, quando voltava da missa dominical na Catedral de Mossoró. Ambos, sentados em cadeiras de palhinha Gerdau, tomando o frescor da noite na entrada da casa que possuíam em frente à lateral da Praça do Codó, vizinha a de Dix-neuf Rosado, simpaticamente me acolhiam para alguns dedos de prosa.

Conversávamos basicamente acerca de livros: Aldo, amante da leitura, teve, inclusive, uma plaquete publicada pela Coleção Mossoroense, que eu já tentei localizar, mas não consegui. De Mary, não esqueço os livros de M. Delly, paixão de minha mãe, que com ela se abastecia regularmente em visitas semanais em minha companhia.

Nos veraneios em Tibau do Norte, para chegarmos à praia, nós, os primos que lotávamos a casa de Tio Chico Sena, tínhamos que passar por entre as casas de Aldo e Mary e a de Seu João Cantídio, pai dela, onde Coconha, seu irmão, viveu até a morte.

Sempre havia tempo e gentileza para acolherem uma ou outra palavra do menino atrevido. A distinção característica de Mary é algo que o tempo está levando, portanto rara, atualmente. Está circunscrita a uma época que desaparece lentamente, consumida pela vulgaridade, a falta de educação, a sofisticação vazia baseada em consumo desenfreado.

Dizem alguns que é assim porque houve uma democratização nos costumes. Que a realidade, hoje, é outra. Pode ser. Se assim o é, para mim faz muito sentido dizer “Oh tempos!; Oh costumes!”, parodiando Cícero, em seu discurso no Senado, nas célebres Catilinárias.

Concordo com ele, e, pelo meu lado, lamento muito o falecimento de Mary Cantídio neste sábado (24), em Mossoró, símbolo de uma época na qual a elegância era uma condição natural.

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sexta-feira - 09/09/2022 - 08:26h
Livro

‘Papo de Fogão Raiz’ junta o paladar regional com histórias deliciosas

As receitas da culinária regional coletadas diretamente de cozinheiros e cozinheiras, durante o programa de TV “Papo de Fogão Raiz,” realizado entre 2021 e 2022, ganham um registro inédito em livro. O trabalho será lançado no dia 15 de setembro, a partir das 17h, no Sesc Rio Branco em Natal. O livro de receitas “Papo Raiz” posteriormente será disponibilizado na Internet.

Livro transporta para o impresso o passeio gastronômico de Fernando Amaral (Foto: reprodução)

Livro transporta para o impresso o passeio gastronômico de Fernando Amaral (Foto: reprodução)

A publicação tem coordenação do publicitário e apresentador Fernando Amaral, organização da produtora Danielle Brito, com texto e revisão de Mariana Ranieri e fotografia de Humberto Lopes.

São 80 páginas em cores com receitas e histórias dos locais e dos seus participantes. São eles: Restaurante da Neide (Largo Allan Kardec/Mercado de Petrópolis), Bar do Zé Reeira, Buteco do Beco, Borogodó Bar, Bar do Pedrinho, Lama Bar e Bardallos ( Beco da Lama e Cidade Alta); Bar do Pernambuco (Canto do Mangue), Tempero da Dadá (Mercado do Peixe, Rocas), Bar e Restaurante Portal do Potengi e Dona Ivanize (Redinha); Bar e Restaurante da Simara, Maia Bar e Lanchonete Santa Maria (Mercado da Seis); Dona Francisca e Dona Cileide (Feira do Alecrim) e Zélia Pinheiro (Mercado das Quintas).

As receitas vão desde o ‘Bolinho de feijoada Deixe de Guerra’, criado pela cozinheira Heiza Cruz para o Borogodó, ao Chambaril da exímia cozinheira Neide da Silva, do Bar da Neide. Também estão lá os segredos do ‘Baião do Mar’ de Nélio Pedro, proprietário do Bar do Pedrinho, point cultural da Cidade Alta. Ou a receita da ‘Ova de peixe frito no dendê’, do tradicional Bar do seu Pernambuco, uma iguaria típica praieira.

Amaral: delícias também na cozinha de Dona Aldeíza e Chico Honório (Foto: arquivo)

Amaral: delícias também na cozinha de Dona Aldeíza e Chico Honório (Foto: arquivo)

Do tira-gosto ao bucho cheio

O livro está dividido de acordo com o menu: “Tira-gosto” e “Para encher o bucho”. O registo também incorpora belas fotografias de cenários ricos e coloridos do Mercado da Seis, Mercado das Quintas, Mercado do Peixe, Mercado de Petrópolis e as feiras do Alecrim, Quintas, São José e Rocas, além do Centro Histórico, onde está localizado o tradicional Beco da Lama.

Mais do que um livro de receitas, o “Papo Raiz” pode ser lido como um livro de histórias. Traz os ingredientes que fazem parte de uma cultura e, juntos, dão o sabor da nossa terra, o tempero da nossa gente.

Foi assim que o fruto do trabalho com o Papo de Fogão Raiz gerou um livro com 25 receitas, trazendo um conteúdo iconográfico através dos registros desses locais e seus cozinheiros.

“O livro foi pensado para eternizar não apenas receitas, mas também as histórias de um povo e suas tradições, que tanto acrescenta à cultura potiguar. E, claro, levar um pouco desses sabores para as mesas de quem  quiser se aventurar pelos segredos da cozinha potiguar de raiz”, comentou o apresentador  Fernando Amaral.

Nota do Canal BCS (Blog Carlos Santos) – Conheço a mão de Fernando Amaral para aguçar o paladar, o paulistano mais natalense que existe. Tive o privilégio de saborear seu talento, também no fogão. Foi na cozinha da antiga casa de Dona Aldeíza e do seu Chico Honório (in memoriam, pais de Maria Emília e Honório de Medeiros), nos arrabaldes da Capela de São Vicente, Centro de Mossoró, em junho deste ano. Um Cidade Junina que não estava na programação oficial. Muito mais do que você imagina.

Agora, momento de experimentar livro e suas histórias.

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domingo - 07/08/2022 - 11:46h

Sir Karl Raimund Popper

Por Honório de Medeiros

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Sir Karl Raimund Popper (Viena, 28 de julho de 1902 — Londres, 17 de setembro de 1994) foi, na minha opinião, o maior filósofo do século XX. Levo em consideração, para pensar assim, a importância de sua obra.

Matemático, físico, lógico, filósofo da ciência e filósofo político, historiador, músico, tradutor, um polímata, enfim, provavelmente o último, dado o crescimento avassalador do conhecimento após o epifenômeno da computação, que lhe foi praticamente posterior.

É muito difícil aquilatar o tamanho de sua contribuição intelectual, construído no embate contra a metafísica, o marxismo, positivismo e a psicanálise, mas, também, no estudo da relação entre teoria da evolução e epistemologia.

Suas análises de Platão e Parmênides são, no mínimo, monumentais: para tal, dominou o grego arcaico.

De sua vasta obra, talvez os mais impactantes livros sejam The Logic of Scientific Discovery, A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária, Lógica das Ciências Sociais, Conjecturas e Refutações (o progresso do conhecimento científico) e, post mortem, O Mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-socrático.

Creio ter sido Sir Karl Popper o último dos grandes, e o maior de todos.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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quinta-feira - 04/08/2022 - 20:24h
História

Livro ‘continua’ obra de Câmara Cascudo sobre governos do RN

Livro está à venda Foto: reprodução)

Livro está à venda (Foto: reprodução)

Em 1939, o historiador Luís da Câmara Cascudo apareceu com “Governo do Rio Grande do Norte”, reunindo a história e a trajetória dos governantes que andaram por aqui de 1597 até 1935. O tempo foi passando e ficou uma lacuna a ser preenchida com os que vieram depois.

Foi esta a deixa que levou André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros, em 2018, a reunir uma plêiade de pesquisadores e escritores, dentre eles, historiadores, juristas, jornalistas, professores e continuar até os dias de hoje. O resultado vem a público em e-book (Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p), apresentando a trajetória dos governantes do Rio Grande do Norte de 1935 a 2018.

O livro traz, a princípio, uma listagem organizada por ordem cronológica, contemplando cada um dos governos, a que se segue os perfis dos 25 governos que administraram o Estado neste período.

Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018), Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p.

Organizadores: André Felipe Pignatro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros. Autores: Adilson Gurgel de Castro; André Felipe Pignataro; Carlos Roberto de Miranda Gomes; David de Medeiros Leite; François Silvestre; Honório de Medeiros; Gustavo Sobral; Isaura Rosado; José Antônio Spinelli; Ludimilla Carvalho Serafim de Oliveira; Maria do Nascimento Bezerra; Ramon Ribeiro; Ricardo Sobral; Roberto Homem de Siqueira; Saul Estevam Fernandes; Sérgio Trindade; Tarcísio Gurgel; Thiago Freire Costa de Melo; Vicente Serejo; Walclei de Araújo Azevedo.

Para adquirir o livro acesse endereço clicando AQUI.

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domingo - 24/07/2022 - 14:28h

Irresignação perdoada – O Júri de Jararaca

Por Honório de Medeiros

No dia 9 de junho de 2017, a partir das nove horas da manhã, no Fórum Municipal de Mossoró, atuei como advogado de defesa no júri simulado sob a presidência do juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, que julgaria José Leite Santana (1901-1927), o notório cangaceiro Jararaca.

Era a comemoração do aniversário da resistência de Mossoró ante o ataque do bando de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião. A acusação ficou a cargo do advogado Diógenes da Cunha Lima.

Terminados os trabalhos, o Conselho de Sentença houve por bem inocentá-lo por seis votos a um. Segue, abaixo, o texto que norteou minha participação.

Júri de Jararaca aconteceu em 2017 em sala de julgamentos da justiça local (Arquivo)

Júri de Jararaca aconteceu em 2017 em sala de julgamentos da justiça local (Arquivo)

Esta é uma história de perdão, não de julgamento. “Quem tudo compreende, tudo perdoa”, disse-nos Tolstoi, citando Spinoza. Antes, entretanto, peço permissão às senhoras e aos senhores para mergulhar nas águas do meu próprio passado, pois foi aqui mesmo, nesta Mossoró libertária, que eu nasci e cresci, ao lado da Igreja de São Vicente.

Ali ficava a casa de Rodolpho Fernandes, depois a de Alfredo Fernandes e, em frente, a dos Hollanda. Do lado, a de Joaquim Perdigão. Atrás, a de Pacífico Almeida. No final, a de Ezequiel Fernandes. Era o chamado Bairro Novo, escassamente povoado. A todas essas casas dominava a Igreja, à sombra da qual jogávamos bola e brincávamos de bandeirinha, no mesmo chão que foi pisado pelos cangaceiros, dentre eles José Leite de Santana.

Por que estiveram ali? Por que atacaram Mossoró? Compilei quatro teorias.

José Leite de Santana é fundamental para que se entenda a quarta teoria. José Leite de Santana, Ferrugem e Mormaço disseram que Lampião nunca pensou em invadir Mossoró. José Leite de Santana abriu o jogo para Lauro da Escócia. José Leite de Santana quis falar com Rodolpho Fernandes e não deixaram. José Leite de Santana por isso mesmo foi morto.

Mas, como falar em José Leite de Santana sem falar no cangaço? Como falar no cangaço sem falar da época na qual o cangaço aconteceu? Como falar daquela época sem recordar as condições de vida do sertanejo nordestino, fonte de onde o cangaço emanou? Como falar dessa fonte sem entender a crucial diferença entre os resignados e os que não se submeteram? Como abordar essa questão sem perceber que dentre os que não se submeteram estão aqueles que tomaram o caminho do mal, enquanto outros, o do bem? Como não compreender que nem sempre a opção pelo caminho do mal foi algo ao qual se pudesse resistir, tamanha a incapacidade de se ter, nas próprias mãos, o próprio destino?

Esses são os outsiders, os irridentes, os insubmissos, os irresignados, os diferentes, os revolucionários. Esses são o sal da terra, para o bem ou para o mal. Trágico quando é para o mal, como no caso de José Leite de Santana; sublime, quando o é para o bem, como no caso de tantos aos quais devemos nosso avanço enquanto espécie.

O cangaço é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes. Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas existências acicate o nosso repouso envergonhado. O cangaço é a história de homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram serem escravos; de homens que optaram por sobreviver sem lei e sem rei, nos mesmos moldes dos desbravadores dos nossos sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de fera, a liberdade da qual nos falou Hobbes em “O Leviatã”.

O cangaço foi o último suspiro dos desbravadores do Sertão, aqueles mesmos que disputaram a terra com os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, numa guerra contínua e esquecida do resto do mundo. A guerra dos bárbaros.

José Leite de Santana foi assim. Percebemos isso em seu olhar na célebre fotografia tirada na prisão em Mossoró. Passei muito tempo olhando para a fotografia. Ali não estava apenas o olhar de quem está ferido. Ali estava, muito mais que isso, o olhar de quem foi subjugado à força, mais uma vez. É o olhar de uma fera de quem tiraram sua liberdade. É o olhar de quem vai morrer.

Jararaca teve "pena de morte" decretada e terminou sendo executado (Foto: reprodução)

Jararaca teve “pena de morte” decretada e terminou sendo executado (Foto: reprodução)

José Leite de Santana já nasceu subjugado, e contra essa subjugação lutou até o último instante: nasceu bastardo, pobre, preto e desvalido. Um infame. Infame antes mesmo de ser um homem mal. Não se trata de dizer que o meio fez a escolha dele. Não podemos cair nessa armadilha. Ele escolheu seu caminho. Outros fizeram opções diferentes. O comum dos mortais escolheu vergar sob o peso da escravidão diária. Pagou por isso. Mas antes mesmo da escolha, o destino já o tinha jogado na lata de lixo dos dejetos humanos.

Como julgar José Leite de Santana com os nossos olhos? Um homem que não tinha o que comer, se não chovesse, e não chovia; não tinha médico; não tinha dentista; não tinha transporte; não tinha estudo; não tinha dinheiro; não tinha passado, não tinha presente, não tinha futuro, não tinha nada.

Pois foi este homem, refugo da vida, que nos permitiu levantar um pouco a cortina, o véu que esconde a verdade dos fatos, morreu violentamente e o povo o transformou em herói e o santificou. Herói porque ousou a coragem da loucura ou a loucura da coragem de viver sem lei e sem rei, os últimos deles. Santo porque intercede, lá entre os acolhidos pela infinita bondade de Deus, pelos que sofrem, para assim purgar as dores que causou neste mundo de miséria e sofrimento.

Não é possível ver-se nas intercessões dessa alma torturada a quem o julga lá no Alto, em defesa dos que ficaram para lhes minorar a dor, um pedido de perdão por todo o sofrimento que causou quando vivo.

Não é ele um dos cainitas, dos quais nos falou Herman Hesse, um dos escolhidos por Deus para ser as trevas que valorizarão a luz? Por que não podemos perdoá-lo, se perdoamos São Paulo, padre Cícero, Santo Agostinho, Maria Madalena, São Longino, o chefe dos soldados romanos que, no caminho para a crucificação de Jesus, perfurou o peito dele com uma lança?

Somente a Santa Igreja pode, pelo Princípio Petríneo das Chaves, dizê-lo oficialmente santo. Mas assim como padre Cícero, para o povo, ele já o é. Se o condenamos hoje, condenamo-lo novamente; se o absolvemos estamos a ele ofertando o nosso perdão.

Jararaca: morte em Mossoró (Foto: reprodução)

Jararaca: morte em Mossoró (Foto: reprodução)

RECONSTITUAMOS OS ÚLTIMOS DIAS DE JOSÉ LEITE SANTANA: 13 de junho, final da tarde: é ferido; 14 de junho, pela manhã: é traído por Pedro Tomé; à tarde: concede a célebre entrevista a Lauro da Escócia para o jornal “O Mossoroense”; o ordenança do sargento Kelé tenta lhe arrancar o dedo, para ficar com um anel; 15 de junho: identifica os cangaceiros na foto de José Octávio; 16 de junho: o tenente Laurentino de Moraes viaja para Natal; 17 de junho: o tenente Laurentino volta de Natal; 18 de junho: o laudo cadavérico é assinado pelo Juiz Eufrásio Mário, pelo tenente Laurentino de Moraes e por Dr. João Marcelino; 19 de junho: manda pedir para falar em particular com Rodolpho Fernandes; 20 de junho, naquela noite tenebrosa, às 23 horas, mais ou menos, é assassinado sob a vista dos tenentes Laurentino de Moraes, Abdon Nunes e João Antunes; sargentos Pedro Sylvio, João Laurentino Soares, Eugênio Rodrigues; cabos José Trajano e Manoel; soldados Militão Paulo e João Arcanjo; e pelo motorista Homero Couto.

Coube aos soldados o trabalho sujo, como coube quando mataram Lampião, na degolação de Maria Bonita ainda viva. As volantes eram semelhantes ou piores que os cangaceiros.

Dirá depois Luiz da Câmara Cascudo: “Ferido de morte, acuado como uma fera entre caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta, herói-bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele, empoçado no sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa, orientada para o crime, dispersava-se lentamente…”.

Absolvamos o cangaço e perdoemos José Leite de Santana. Ou, melhor, perdoando José Leite de Santana, absolvamos o cangaço.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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