domingo - 18/12/2022 - 05:04h

Retalhos do cotidiano

Por Marcos Ferreira

Penso agora em escrever alguma coisa na terceira pessoa, algo sobre fatos que não tenham nada a ver diretamente comigo. É isso. Ao menos uma pequena crônica que fale sobre terceiros, eventos alheios. Acontece, porém, que hoje, a exemplo de vários outros dias, não estou com vocação para falar sobre a vida além da minha pífia existência. Suponho que os meus poucos leitores já estejam enjoados, de saco cheio, de ler tantas narrativas tão pessoais.

Por que não falar um pouco sobre política? Não quero me ocupar com política. Até por uma questão de higiene mental.retalhos, cabeça, pensamento, cotidiano, homem, rosto, pensamentos

Há outros assuntos muito na moda. O futebol, por exemplo, é um deles. Contudo não entendo patavina acerca dessa matéria. Sei apenas que nossos atletas, os da seleção canarinha (vai com minúsculas mesmo) se preocupam muito mais em mudar a cor e o corte do cabelo a cada jogo, fazer dancinhas, mogangas e caretas do que propriamente jogar bem. Isso, todavia, como eu já disse, não é assunto para mim. Então passo a bola para o ex-futebolista e comentarista Walter Casagrande.

Hoje, entretanto, diante da escassez de motivação ou inspiração, digo honestamente que me sinto vazio, sem uma centelha de criatividade, sem voltagem literária. Considero chato, no entanto, e isso é uma opinião de muitos cronistas craques do gênero, como Rubem Braga e Fernando Sabino, Antônio Maria, lamuriar-me por causa da falta do que escrever. Não. Embora seja uma solução bem-aceita, uma receitinha caseira e salvadora, não vou ceder ou consolar o leitor com essa chupeta. Acho que ele sempre merece mais do que tapeação, lugares-comuns e monotonia.

Nessas horas de esterilidade verbal, situação esta que ocorre com incômoda frequência, penso na prosa suave e honesta do cronista Odemirton Filho, penso no estilo cheio de poeticidade do vate Cid Augusto, recordo o verbo instantâneo e burilado do meu Editor, jornalista e escritor Carlos Santos, além de outros colaboradores deste espaço dominical. Esses manejadores da palavra escrita, os quais leio e sempre aprendo alguma lição nova, dão corpo e forma a mais este parágrafo.

Acima, então, eis um parágrafo tão honesto quanto merecido. Porque não menciono tais pessoas nesta página fria por uma questão de favor ou de coleguismo gratuito. Não, meus prezados amigos. Não sou desse tipo, não sou bajulador. E há outros trabalhadores do verbo (colaboradores deste Blog) que povoam o Canal BCS e merecem igual referência, muito embora eu incorra no pecado da omissão e da curta memória. Cito, portanto, escribas de admirável talento como Honório de Medeiros, François Silvestre e o não menos aguerrido comentarista Marcos Pinto.

Bom. Deixemos o beija-mão de lado. E peço desculpas àqueles que deixei de citar por traição da memória. Neste momento da manhã, cuja hora prefiro não revelar, outra vez escuto a procissão dos pregoeiros do conjunto Walfredo Gurgel. Vão passando aqui pela rua do cubículo que habito provisoriamente. Negociam com todo tipo de coisa. Como o anônimo vendedor de frutas: “Olha a banana, olha a acerola, o abacaxi, a manga, a verdura, o melão”, diz o homem sobre sua carroça.

Outros mais, como eu já mencionei em textos anteriores, mercadejam toda sorte de produtos. Um anuncia o queijo de coalho, outro propaga que tem galinha caipira fresquinha, daí a pouco passa o carro dos ovos, o entregador de leite chama a clientela cativa: “Olha o leite!”, grita o sujeito sobre a motocicleta, já destampando o botijão metálico. Não só homens trafegam por estas ruas de paralelepípedos oferecendo uma coisa e outra aos moradores. Jovens senhoras, às vezes em companhia de filhos miúdos, tentam vender pamonha, canjica, tapioca, cocada, picolé e sorvete.

Eu bem sei que estou a me repetir. Como também sei que você não se apraz com isso. Os leitores querem, esperam por um assunto novo a cada semana, a cada domingo. Não lhes tiro a razão. Às vezes, porém, a gente precisa requentar o pão. E pão requentado não é coisa das piores. Porque não existe pão duro para uma boa fome. Ainda assim quem nos acompanha está correto. Pois paga, com o tempo que nos dedica, por um texto minimamente e, quem sabe, inovador. Não basta só arte.

A vida neste cubículo claustrofóbico, embora com a perspectiva de que isso dure cerca de três meses, é algo desestimulante. Aqui não há saída de ar, apenas a porta da frente, de maneira que o vento não entra. Não bastasse, fica defronte para o sol após o meio-dia. O ventilador já deu sinais de cansaço.

Pensar em literatura também se tornou um luxo bem pouco acessível. Minha velha casa foi demolida para a construção de uma nova. Um pouco menor, é verdade, mas sem o risco iminente de cair por cima de mim. O inverno está chegando, mas eu me sinto otimista.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 04/12/2022 - 11:24h
Honório de Medeiros

Um livro para se conectar nessa longa caminhada pela vida

Lançamento de novo título será em janeiro

Lançamento de novo título será em janeiro

O escritor e colaborador perpétuo do Canal BCS (Blog Carlos Santos), Honório de Medeiros, prepara lançamento de mais um livro.

Está chegando “De uma longa e áspera caminhada, pela Editora Viseu.

“O fio que conecta a trama deste livro bem pode ser o que se revela com a leitura de suas pequenas histórias, de algumas poucas reflexões, do sumo extraído de algumas leituras, das conexões existentes entre vários escritores, de algumas memórias, de um pouco de ficção e fantasia, e, ao fim, nada mais é, tudo isso, que o relato de uma árdua e longa caminhada pela vida.”

PRÉ VENDA: editoraviseu.com
LANÇAMENTO E VENDA: 2 de janeiro de 2023
LIVRO: Amazon, Americanas, Magazine Luiza, Shoptime e Submarino.
EBOOK: Amazon, Apple, Barnes & Noble (EUA), Google, Kobo, Livraria Cultura e Wook (Portugal).

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domingo - 27/11/2022 - 08:20h

Grandes e Pequenos Homens e Mulheres especiais

Porque, como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm laborado (Os Heróis, Thomas Carlyle)[1].

É bem verdade que isso acontece em casos isolados e únicos em várias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, nas quais certamente se manifesta um tipo superior; tipo que, comparado ao restante da humanidade, aparece como uma espécie de super-homem (O Anticristo, Friedrich Nietzche)[2]. 

heróiPor Honório de Medeiros

Sempre houve alguma percepção, às vezes discreta, outras, não, de que o percurso da humanidade somente pode ser compreendido se for levada em consideração a noção de que homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, o mais das vezes anônimos, construíram a história.

Não se defende, aqui, que haja uma lei histórica que aponte a existência desses homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, conduzindo o processo histórico, às ocultas ou claramente.

O que se defende é que sempre houve essa percepção, discreta ou ostensiva, por parte significativa de pensadores, de que isso realmente aconteceu.

Sempre houve essa percepção, assim como a de que esses homens ou mulheres especiais, heróis ou bandidos, tanto poderiam ser considerados do “Bem”, quanto do “Mal”, seja o que seja um e outro a depender da avaliação dos seus contemporâneos ou pósteros.

Essa percepção, atenta às suas circunstâncias, originou relatos mitológicos, como os do Zoroastrismo, onde Ormuzd é a fonte de todo o Bem, e Ariman, a fonte de todo o Mal.

Há, portanto, uma justificativa metafísica para essa conjectura desenvolvida por muitos pensadores.

Saliente-se o embaralhamento proposital, no romance de Hermann Hess, Demian, entre o que seria o Bem, e o que seria o Mal, quem seriam os heróis, e quem seriam os bandidos, que aponta para o problema da construção das narrativas que solapam verdades ocultas até que o tempo e as circunstância as resgate da escuridão.

No texto, Demian diz para Emil Sinclair, o personagem principal e narrador, referindo-se a Caim:

– Também gostei, mas creio que essa história de Caim pode ser interpretada de maneira diferente. A maioria das coisas que nos ensinam é, sem dúvida, verdadeira, mas também pode ser considerada de um ponto de vista diferente daquele dos professores, e então passa a apresentar quase sempre um significado muito mais amplo. Por exemplo: essa história de Caim, o homem que tinha um sinal na fronte, não poderia nunca nos satisfazer tal como nos é ensinada. Não achas?… Que um homem possa matar seu irmão numa disputa é algo admissível; como também o fato de haver sentido medo em seguida e se humilhado. Mas que sua covardia seja premiada com uma distinção que o ampara e inspira medo a todos os demais… isso já é francamente estranho.

                        (…)

O que houve desde o princípio, e constituiu como ponto originário da história, foi o sinal. Havia um homem que tinha algo no rosto que atemorizava os demais. Não se atreviam a toca-lo e sentiam medo diante dele e de seus filhos. Mas, naturalmente, o sinal que aquele homem trazia na face não era material, não era, por exemplo, como o de um carimbo dos correios; as coisas não costumavam acontecer, na vida, de maneira tão rudimentar. Tratava-se, possivelmente de algo talvez sinistro, apenas perceptível, digamos um pouco mais de vivacidade e de audácia no olhar. Aquele homem era poderoso e esparzia inquietude. Tinha um “sinal”. As pessoas podiam explicar aquilo como quisessem. E sempre queremos aquilo que nos seja mais cômodo e que nos dê razão. Os filhos de Caim, marcados com o “sinal”, atemorizavam os demais, e aquele sinal passou a ser explicado não como a distinção que realmente era, mas exatamente como o contrário. Passaram a dizer que os homens assim marcados era pessoas suspeitas e ímpias, o que, na verdade, ocorria. Pois os homens corajosos, as pessoas de caráter, sempre inquietaram as demais. Tornava-se, portanto, francamente incômoda a existência de uma raça especial de homens sem medo e capazes de infundir medo aos demais, e então lhes atribuíram um apodo e uma lenda para se vingarem daquela raça e justificarem de certo modo os temores sofridos…[3]

Observemos que a crença na existência do Bem e do Mal atuando concomitantemente, e, em decorrência, de anjos e demônios, heróis e bandidos, constituindo parte do caldo fundamental do qual surge a história poderia, assim, ser considerada arquetípica, fazendo parte do inconsciente coletivo da humanidade, nos moldes propostos na obra de Carl Gustav Jung, um dos maiores psicanalistas de todos os tempos, fundador da Psicologia Analítica.

É de se mencionar o interesse de Carl Jung, tão condenado por Freud, pelo esoterismo, espiritualidade e artes ocultas, que temia pelo comprometimento da credibilidade da Psicanálise.

Carl Jung foi muito importante para a comunidade psicanalítica, chegando a presidir a Associação Internacional de Psicanálise. Fez significativas contribuições para esse ramo do conhecimento, como a elaboração do conceito de “Complexo de Édipo”, chamado por ele de “Complexo de Electra”; da noção de “inconsciente coletivo”; da hipótese dos “arquétipos”; além de outras. Uma teoria famosa de Carl Jung é a dos “tipos psicológicos”, por meio da qual ele propôs os conceitos de introversão e extroversão.

Pois bem, o texto do capítulo anterior é uma alegoria, utilizada para propor a hipótese de que, ao longo do tempo, não faltou quem defendesse ser a história da humanidade constituída pelas ideias e ações daqueles que, de uma forma ou outra, enquanto “heróis” ou “bandidos”, louvados ou condenados, ao resolverem seguir em frente, impulsionaram a história.

No que diz respeito aos “heróis”, respeitados Homero, Heródoto, Tucídides, Hesíodo, Ésquilo, e tantos outros antecessores, Thomas Carlyle foi um dos principais pensadores a defender diretamente o papel fundamental por eles exercidos.

Seu livro Os Heróis, o mais notório de quantos escreveu, publicado em 1841, reuniu seis conferências por ele realizadas desde 1837, e é imediatamente posterior à História da Revolução Francesa, e, nele Carlyle discorreu acerca dos heróis, do culto dos heróis, do heroísmo na história, e expôs sua teoria fundamental, qual seja a de que o conhecimento da história do mundo resulta do estudo da vida de homens como Maomé, Dante, Shakespeare, Lutero, Knox, Samuel Johnson, Jean Jacques Rousseau, Cromwell e Napoleão.

Deve-se ressaltar, entretanto, que uma exegese atualizada do seu texto exige uma abrangência maior quanto a quem impulsiona, com suas ideias e ações ou omissões, a história universal, para englobar tanto aqueles que possam merecer os elogios dos seus contemporâneos e da posteridade, quanto aqueles que mereceriam o opróbrio da humanidade:

Porque, como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm laborado. Eles foram os condutores de homens, estes grandes homens, os modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir; todas as coisas que nós vemos efetuadas no mundo são propriamente o resultado material externo, a realização prática e a incorporação dos pensamentos que habitam nos grandes homens mandados ao mundo: a alma de toda a história universal, pode justamente considerar-se, seria a história destes[4].

É de Carlyle a avançada teoria, para a época, de que os patrões, que ele apontava como um dos tipos de heróis, viriam a pensar, algum dia, que é (seria) “possível e necessário conceder a seus empregados um interesse permanente nas suas empresas”[5].

Não é possível deixar de comparar o trecho anterior, com outro, do romance Demian, de Hermann Hesse:

Para isso levamos o sinal, como Caim o trazia para infundir medo e ódio e arrancar a humanidade de então de um mundo idílico e limitado, conduzindo-a a horizontes mais amplos e perigosos. Todos os homens que influíram na marcha da humanidade, todos eles, sem exceção ou diferença, puderam fazê-lo porque estavam sempre prontos para o destino. Tanto Moisés quanto Buda, Napoleão ou Bismarck. Ninguém pode escolher a onda a que obedecerá nem o polo pelo qual será atraído. Se Bismarck tivesse compreendido os social-democratas e acolhesse suas inspirações, teria sido um político prudente, mas não um homem do destino. O mesmo se passou com Napoleão, com César, com Inácio de Loyola, com todos eles. Essas coisas devem ser consideradas sempre do ponto de vista biológico e evolutivo[6].

Mais que à noção de “heróis”, no sentido proposto por Thomas Carlyle, é melhor estar atento, portanto, aos que ele nomina de “condutores”, “modeladores”, “padrões”, “criadores” de tudo quanto “a massa geral dos homens (ou mulheres) imaginou fazer ou atingir”.

Seriam os “grandes homens” de Carlyle os mesmos “homens do destino” aos quais aludiu Hermann Hesse, pela boca de seu personagem Demian, todos eles, enfim, heróis” ou bandidos”, “santos ou hereges”, “estadistas” ou “terroristas”, a depender, um ou outro qualificativo, de como os seus contemporâneos e pósteros os julgaram e julgam, formando a unidade primordial entre os opostos mencionada pelo Zoroastrismo e Heráclito de Éfeso e constituindo a história da humanidade.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

[1] CARLYLE, Thomas. Os Heróis. São Paulo: Melhoramentos. 1956.

[2] NIETZSCHE, F. O anticristo. São Paulo: Martin Claret. 2015.

[3] Demian, O.a.c.

[4] Os Heróis, O.a.c.

[5] Idem.

[6] Demian, O.a.c.

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quarta-feira - 19/10/2022 - 18:44h
Reflexão

Bem assim…

carneiros-e-lobo-121430964Por Honório de Medeiros

No começo, Rousseau disse que nascemos iguais. Muitos acreditaram.

Voltaire, não.

Depois, veio Marx e disse que a superestrutura ideológica, em última instância, emana da infraestrutura econômica, como se o fato antecedesse a ideia de sua existência. Muitos acreditaram.

Popper, Hayek, Aron, Mises, os anarquistas, não.

Deu no que deu…

As ideias são armas.

Os lobos sabem disso, os carneiros, não.

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sábado - 24/09/2022 - 16:14h
Luto

Mary Cantídio, símbolo da distinção das grandes damas de Mossoró

Por Honório de Medeiros

Com o falecimento de Mary Cantídio, perdemos um símbolo da distinção que caracterizava as grandes damas da antiga Mossoró.

Mary Cantídio: boas lembranças (Foto: redes sociais)

Mary Cantídio: boas lembranças (Foto: redes sociais)

Elegante, discreta, requintada, Mary foi casada com Aldo Fernandes, primo “legítimo” – como dizemos por aqui – de minha mãe, o filho caçula de Ezequiel Fernandes, grande condutor de Alfredo Fernandes e Cia. Ltda., nos áureos tempos da riqueza que o algodão proporcionou.

Mary Cantídio e Aldo estão em minhas mais antigas lembranças de menino adolescente atrevido, sempre carinhosamente recebido na residência deles, quando voltava da missa dominical na Catedral de Mossoró. Ambos, sentados em cadeiras de palhinha Gerdau, tomando o frescor da noite na entrada da casa que possuíam em frente à lateral da Praça do Codó, vizinha a de Dix-neuf Rosado, simpaticamente me acolhiam para alguns dedos de prosa.

Conversávamos basicamente acerca de livros: Aldo, amante da leitura, teve, inclusive, uma plaquete publicada pela Coleção Mossoroense, que eu já tentei localizar, mas não consegui. De Mary, não esqueço os livros de M. Delly, paixão de minha mãe, que com ela se abastecia regularmente em visitas semanais em minha companhia.

Nos veraneios em Tibau do Norte, para chegarmos à praia, nós, os primos que lotávamos a casa de Tio Chico Sena, tínhamos que passar por entre as casas de Aldo e Mary e a de Seu João Cantídio, pai dela, onde Coconha, seu irmão, viveu até a morte.

Sempre havia tempo e gentileza para acolherem uma ou outra palavra do menino atrevido. A distinção característica de Mary é algo que o tempo está levando, portanto rara, atualmente. Está circunscrita a uma época que desaparece lentamente, consumida pela vulgaridade, a falta de educação, a sofisticação vazia baseada em consumo desenfreado.

Dizem alguns que é assim porque houve uma democratização nos costumes. Que a realidade, hoje, é outra. Pode ser. Se assim o é, para mim faz muito sentido dizer “Oh tempos!; Oh costumes!”, parodiando Cícero, em seu discurso no Senado, nas célebres Catilinárias.

Concordo com ele, e, pelo meu lado, lamento muito o falecimento de Mary Cantídio neste sábado (24), em Mossoró, símbolo de uma época na qual a elegância era uma condição natural.

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sexta-feira - 09/09/2022 - 08:26h
Livro

‘Papo de Fogão Raiz’ junta o paladar regional com histórias deliciosas

As receitas da culinária regional coletadas diretamente de cozinheiros e cozinheiras, durante o programa de TV “Papo de Fogão Raiz,” realizado entre 2021 e 2022, ganham um registro inédito em livro. O trabalho será lançado no dia 15 de setembro, a partir das 17h, no Sesc Rio Branco em Natal. O livro de receitas “Papo Raiz” posteriormente será disponibilizado na Internet.

Livro transporta para o impresso o passeio gastronômico de Fernando Amaral (Foto: reprodução)

Livro transporta para o impresso o passeio gastronômico de Fernando Amaral (Foto: reprodução)

A publicação tem coordenação do publicitário e apresentador Fernando Amaral, organização da produtora Danielle Brito, com texto e revisão de Mariana Ranieri e fotografia de Humberto Lopes.

São 80 páginas em cores com receitas e histórias dos locais e dos seus participantes. São eles: Restaurante da Neide (Largo Allan Kardec/Mercado de Petrópolis), Bar do Zé Reeira, Buteco do Beco, Borogodó Bar, Bar do Pedrinho, Lama Bar e Bardallos ( Beco da Lama e Cidade Alta); Bar do Pernambuco (Canto do Mangue), Tempero da Dadá (Mercado do Peixe, Rocas), Bar e Restaurante Portal do Potengi e Dona Ivanize (Redinha); Bar e Restaurante da Simara, Maia Bar e Lanchonete Santa Maria (Mercado da Seis); Dona Francisca e Dona Cileide (Feira do Alecrim) e Zélia Pinheiro (Mercado das Quintas).

As receitas vão desde o ‘Bolinho de feijoada Deixe de Guerra’, criado pela cozinheira Heiza Cruz para o Borogodó, ao Chambaril da exímia cozinheira Neide da Silva, do Bar da Neide. Também estão lá os segredos do ‘Baião do Mar’ de Nélio Pedro, proprietário do Bar do Pedrinho, point cultural da Cidade Alta. Ou a receita da ‘Ova de peixe frito no dendê’, do tradicional Bar do seu Pernambuco, uma iguaria típica praieira.

Amaral: delícias também na cozinha de Dona Aldeíza e Chico Honório (Foto: arquivo)

Amaral: delícias também na cozinha de Dona Aldeíza e Chico Honório (Foto: arquivo)

Do tira-gosto ao bucho cheio

O livro está dividido de acordo com o menu: “Tira-gosto” e “Para encher o bucho”. O registo também incorpora belas fotografias de cenários ricos e coloridos do Mercado da Seis, Mercado das Quintas, Mercado do Peixe, Mercado de Petrópolis e as feiras do Alecrim, Quintas, São José e Rocas, além do Centro Histórico, onde está localizado o tradicional Beco da Lama.

Mais do que um livro de receitas, o “Papo Raiz” pode ser lido como um livro de histórias. Traz os ingredientes que fazem parte de uma cultura e, juntos, dão o sabor da nossa terra, o tempero da nossa gente.

Foi assim que o fruto do trabalho com o Papo de Fogão Raiz gerou um livro com 25 receitas, trazendo um conteúdo iconográfico através dos registros desses locais e seus cozinheiros.

“O livro foi pensado para eternizar não apenas receitas, mas também as histórias de um povo e suas tradições, que tanto acrescenta à cultura potiguar. E, claro, levar um pouco desses sabores para as mesas de quem  quiser se aventurar pelos segredos da cozinha potiguar de raiz”, comentou o apresentador  Fernando Amaral.

Nota do Canal BCS (Blog Carlos Santos) – Conheço a mão de Fernando Amaral para aguçar o paladar, o paulistano mais natalense que existe. Tive o privilégio de saborear seu talento, também no fogão. Foi na cozinha da antiga casa de Dona Aldeíza e do seu Chico Honório (in memoriam, pais de Maria Emília e Honório de Medeiros), nos arrabaldes da Capela de São Vicente, Centro de Mossoró, em junho deste ano. Um Cidade Junina que não estava na programação oficial. Muito mais do que você imagina.

Agora, momento de experimentar livro e suas histórias.

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  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 07/08/2022 - 11:46h

Sir Karl Raimund Popper

Por Honório de Medeiros

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Sir Karl Raimund Popper (Viena, 28 de julho de 1902 — Londres, 17 de setembro de 1994) foi, na minha opinião, o maior filósofo do século XX. Levo em consideração, para pensar assim, a importância de sua obra.

Matemático, físico, lógico, filósofo da ciência e filósofo político, historiador, músico, tradutor, um polímata, enfim, provavelmente o último, dado o crescimento avassalador do conhecimento após o epifenômeno da computação, que lhe foi praticamente posterior.

É muito difícil aquilatar o tamanho de sua contribuição intelectual, construído no embate contra a metafísica, o marxismo, positivismo e a psicanálise, mas, também, no estudo da relação entre teoria da evolução e epistemologia.

Suas análises de Platão e Parmênides são, no mínimo, monumentais: para tal, dominou o grego arcaico.

De sua vasta obra, talvez os mais impactantes livros sejam The Logic of Scientific Discovery, A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária, Lógica das Ciências Sociais, Conjecturas e Refutações (o progresso do conhecimento científico) e, post mortem, O Mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-socrático.

Creio ter sido Sir Karl Popper o último dos grandes, e o maior de todos.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
quinta-feira - 04/08/2022 - 20:24h
História

Livro ‘continua’ obra de Câmara Cascudo sobre governos do RN

Livro está à venda Foto: reprodução)

Livro está à venda (Foto: reprodução)

Em 1939, o historiador Luís da Câmara Cascudo apareceu com “Governo do Rio Grande do Norte”, reunindo a história e a trajetória dos governantes que andaram por aqui de 1597 até 1935. O tempo foi passando e ficou uma lacuna a ser preenchida com os que vieram depois.

Foi esta a deixa que levou André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros, em 2018, a reunir uma plêiade de pesquisadores e escritores, dentre eles, historiadores, juristas, jornalistas, professores e continuar até os dias de hoje. O resultado vem a público em e-book (Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p), apresentando a trajetória dos governantes do Rio Grande do Norte de 1935 a 2018.

O livro traz, a princípio, uma listagem organizada por ordem cronológica, contemplando cada um dos governos, a que se segue os perfis dos 25 governos que administraram o Estado neste período.

Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018), Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p.

Organizadores: André Felipe Pignatro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros. Autores: Adilson Gurgel de Castro; André Felipe Pignataro; Carlos Roberto de Miranda Gomes; David de Medeiros Leite; François Silvestre; Honório de Medeiros; Gustavo Sobral; Isaura Rosado; José Antônio Spinelli; Ludimilla Carvalho Serafim de Oliveira; Maria do Nascimento Bezerra; Ramon Ribeiro; Ricardo Sobral; Roberto Homem de Siqueira; Saul Estevam Fernandes; Sérgio Trindade; Tarcísio Gurgel; Thiago Freire Costa de Melo; Vicente Serejo; Walclei de Araújo Azevedo.

Para adquirir o livro acesse endereço clicando AQUI.

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domingo - 24/07/2022 - 14:28h

Irresignação perdoada – O Júri de Jararaca

Por Honório de Medeiros

No dia 9 de junho de 2017, a partir das nove horas da manhã, no Fórum Municipal de Mossoró, atuei como advogado de defesa no júri simulado sob a presidência do juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, que julgaria José Leite Santana (1901-1927), o notório cangaceiro Jararaca.

Era a comemoração do aniversário da resistência de Mossoró ante o ataque do bando de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião. A acusação ficou a cargo do advogado Diógenes da Cunha Lima.

Terminados os trabalhos, o Conselho de Sentença houve por bem inocentá-lo por seis votos a um. Segue, abaixo, o texto que norteou minha participação.

Júri de Jararaca aconteceu em 2017 em sala de julgamentos da justiça local (Arquivo)

Júri de Jararaca aconteceu em 2017 em sala de julgamentos da justiça local (Arquivo)

Esta é uma história de perdão, não de julgamento. “Quem tudo compreende, tudo perdoa”, disse-nos Tolstoi, citando Spinoza. Antes, entretanto, peço permissão às senhoras e aos senhores para mergulhar nas águas do meu próprio passado, pois foi aqui mesmo, nesta Mossoró libertária, que eu nasci e cresci, ao lado da Igreja de São Vicente.

Ali ficava a casa de Rodolpho Fernandes, depois a de Alfredo Fernandes e, em frente, a dos Hollanda. Do lado, a de Joaquim Perdigão. Atrás, a de Pacífico Almeida. No final, a de Ezequiel Fernandes. Era o chamado Bairro Novo, escassamente povoado. A todas essas casas dominava a Igreja, à sombra da qual jogávamos bola e brincávamos de bandeirinha, no mesmo chão que foi pisado pelos cangaceiros, dentre eles José Leite de Santana.

Por que estiveram ali? Por que atacaram Mossoró? Compilei quatro teorias.

José Leite de Santana é fundamental para que se entenda a quarta teoria. José Leite de Santana, Ferrugem e Mormaço disseram que Lampião nunca pensou em invadir Mossoró. José Leite de Santana abriu o jogo para Lauro da Escócia. José Leite de Santana quis falar com Rodolpho Fernandes e não deixaram. José Leite de Santana por isso mesmo foi morto.

Mas, como falar em José Leite de Santana sem falar no cangaço? Como falar no cangaço sem falar da época na qual o cangaço aconteceu? Como falar daquela época sem recordar as condições de vida do sertanejo nordestino, fonte de onde o cangaço emanou? Como falar dessa fonte sem entender a crucial diferença entre os resignados e os que não se submeteram? Como abordar essa questão sem perceber que dentre os que não se submeteram estão aqueles que tomaram o caminho do mal, enquanto outros, o do bem? Como não compreender que nem sempre a opção pelo caminho do mal foi algo ao qual se pudesse resistir, tamanha a incapacidade de se ter, nas próprias mãos, o próprio destino?

Esses são os outsiders, os irridentes, os insubmissos, os irresignados, os diferentes, os revolucionários. Esses são o sal da terra, para o bem ou para o mal. Trágico quando é para o mal, como no caso de José Leite de Santana; sublime, quando o é para o bem, como no caso de tantos aos quais devemos nosso avanço enquanto espécie.

O cangaço é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes. Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas existências acicate o nosso repouso envergonhado. O cangaço é a história de homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram serem escravos; de homens que optaram por sobreviver sem lei e sem rei, nos mesmos moldes dos desbravadores dos nossos sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de fera, a liberdade da qual nos falou Hobbes em “O Leviatã”.

O cangaço foi o último suspiro dos desbravadores do Sertão, aqueles mesmos que disputaram a terra com os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, numa guerra contínua e esquecida do resto do mundo. A guerra dos bárbaros.

José Leite de Santana foi assim. Percebemos isso em seu olhar na célebre fotografia tirada na prisão em Mossoró. Passei muito tempo olhando para a fotografia. Ali não estava apenas o olhar de quem está ferido. Ali estava, muito mais que isso, o olhar de quem foi subjugado à força, mais uma vez. É o olhar de uma fera de quem tiraram sua liberdade. É o olhar de quem vai morrer.

Jararaca teve "pena de morte" decretada e terminou sendo executado (Foto: reprodução)

Jararaca teve “pena de morte” decretada e terminou sendo executado (Foto: reprodução)

José Leite de Santana já nasceu subjugado, e contra essa subjugação lutou até o último instante: nasceu bastardo, pobre, preto e desvalido. Um infame. Infame antes mesmo de ser um homem mal. Não se trata de dizer que o meio fez a escolha dele. Não podemos cair nessa armadilha. Ele escolheu seu caminho. Outros fizeram opções diferentes. O comum dos mortais escolheu vergar sob o peso da escravidão diária. Pagou por isso. Mas antes mesmo da escolha, o destino já o tinha jogado na lata de lixo dos dejetos humanos.

Como julgar José Leite de Santana com os nossos olhos? Um homem que não tinha o que comer, se não chovesse, e não chovia; não tinha médico; não tinha dentista; não tinha transporte; não tinha estudo; não tinha dinheiro; não tinha passado, não tinha presente, não tinha futuro, não tinha nada.

Pois foi este homem, refugo da vida, que nos permitiu levantar um pouco a cortina, o véu que esconde a verdade dos fatos, morreu violentamente e o povo o transformou em herói e o santificou. Herói porque ousou a coragem da loucura ou a loucura da coragem de viver sem lei e sem rei, os últimos deles. Santo porque intercede, lá entre os acolhidos pela infinita bondade de Deus, pelos que sofrem, para assim purgar as dores que causou neste mundo de miséria e sofrimento.

Não é possível ver-se nas intercessões dessa alma torturada a quem o julga lá no Alto, em defesa dos que ficaram para lhes minorar a dor, um pedido de perdão por todo o sofrimento que causou quando vivo.

Não é ele um dos cainitas, dos quais nos falou Herman Hesse, um dos escolhidos por Deus para ser as trevas que valorizarão a luz? Por que não podemos perdoá-lo, se perdoamos São Paulo, padre Cícero, Santo Agostinho, Maria Madalena, São Longino, o chefe dos soldados romanos que, no caminho para a crucificação de Jesus, perfurou o peito dele com uma lança?

Somente a Santa Igreja pode, pelo Princípio Petríneo das Chaves, dizê-lo oficialmente santo. Mas assim como padre Cícero, para o povo, ele já o é. Se o condenamos hoje, condenamo-lo novamente; se o absolvemos estamos a ele ofertando o nosso perdão.

Jararaca: morte em Mossoró (Foto: reprodução)

Jararaca: morte em Mossoró (Foto: reprodução)

RECONSTITUAMOS OS ÚLTIMOS DIAS DE JOSÉ LEITE SANTANA: 13 de junho, final da tarde: é ferido; 14 de junho, pela manhã: é traído por Pedro Tomé; à tarde: concede a célebre entrevista a Lauro da Escócia para o jornal “O Mossoroense”; o ordenança do sargento Kelé tenta lhe arrancar o dedo, para ficar com um anel; 15 de junho: identifica os cangaceiros na foto de José Octávio; 16 de junho: o tenente Laurentino de Moraes viaja para Natal; 17 de junho: o tenente Laurentino volta de Natal; 18 de junho: o laudo cadavérico é assinado pelo Juiz Eufrásio Mário, pelo tenente Laurentino de Moraes e por Dr. João Marcelino; 19 de junho: manda pedir para falar em particular com Rodolpho Fernandes; 20 de junho, naquela noite tenebrosa, às 23 horas, mais ou menos, é assassinado sob a vista dos tenentes Laurentino de Moraes, Abdon Nunes e João Antunes; sargentos Pedro Sylvio, João Laurentino Soares, Eugênio Rodrigues; cabos José Trajano e Manoel; soldados Militão Paulo e João Arcanjo; e pelo motorista Homero Couto.

Coube aos soldados o trabalho sujo, como coube quando mataram Lampião, na degolação de Maria Bonita ainda viva. As volantes eram semelhantes ou piores que os cangaceiros.

Dirá depois Luiz da Câmara Cascudo: “Ferido de morte, acuado como uma fera entre caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta, herói-bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele, empoçado no sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa, orientada para o crime, dispersava-se lentamente…”.

Absolvamos o cangaço e perdoemos José Leite de Santana. Ou, melhor, perdoando José Leite de Santana, absolvamos o cangaço.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 17/07/2022 - 11:36h

Villaça, o estilista

Antônio Carlos Villaça, escritor, autor do Nariz de Cera, falecido em 2005 (Foto: arquivo)

Antônio Carlos Villaça, autor do livro “O nariz do morto”, falecido em 2005 (Foto: arquivo)

Por Honório de Medeiros

No cinza das horas, releio O Livro dos Fragmentos, de Antônio Carlos Villaça, soberbo estilista. Quem não lembraria de Novalis e Nietzche, ao lê-lo?

Foi muito amigo de Franklin Jorge, outro estilista, autor de O Spleen de Natal, um livro requintado, prêmio Câmara Cascudo por unanimidade, e de Gerardo Dantas Barreto, o filósofo, dono de uma “passionalidade desgrenhada”, ambos norte-rio-grandenses, e de Gilberto Amado, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Lacerda, não o político, o homem, e tantos outros, naqueles anos que começaram com Getúlio Vargas e se encerraram com a agonia do Movimento de 64.

Villaça ficou famoso com O Nariz do Morto, de 1970, obra de um niilismo trágico, tão elogiado. Lembra, lá para as tantas, que Gilberto Amado caracterizava Vargas muito bem: “Getúlio ou a arte de enganar. Enganava não apenas os bobos, o que é fácil e todos fazem. Enganava os sabidos.”

E também lembra, nesse livro, Raul Fernandes, não o potiguar, mas, sim, o político e diplomata carioca, que lhe dizia sempre: “a ênfase é uma improbidade intelectual”.

Em O Livro dos Fragmentos aponta o estranho fenômeno da desaparição de alguns escritores. Cita Osvaldo Alves, Carlos David, Lia Corrêa Dutra, a quem Drummond e Gilberto Amado admiravam e que sumiu da literatura.

Villaça especula: “Era uma forma de ceticismo ou de cansaço”. Recorda Maria Teresa Abreu Coutinho, “brilhantíssima. Casou-se com um operário italiano e foi morar no subúrbio. Nunca a reencontrei.”

Nada mais Enrique Vila-Matas e seu Bartleby e Companhia, no qual rastreia “a pulsão negativa ou a pulsão pelo nada que faz com que certos criadores, mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso), nunca cheguem a escrever, ou então escrevem um ou dois livros, e depois renunciam à escrita”.

As obras desses escritores que ele cita ocupam, penso eu, algum escaninho empoeirado do Cemitério dos Livros Esquecidos que Carlos Ruiz Zafón localiza na misteriosa Barcelona, em um beco ao qual me conduziu uma bela guia mineira que, ante o meu espanto com o que me deparei, pôs-se a rir, divertida.

O Cemitério não se deixava perceber assim tão fácil…

Antônio Carlos Villaça, bem como Gerardo Mello Mourão, reconheceu que o Brasil é barroco, uma eterna tensão entre o corpo e a alma.

Vivesse hoje, que diria ele? Termina O livro dos Fragmentos citando Machado, Iaiá Garcia: “Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”.

Estaria se referindo ao que escrevera?

Tomara.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 03/07/2022 - 12:38h

A semente do mal, uma alegoria

árvores, folhas secas3,3 Mas do fruto da aárvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.

3,5 Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos aolhos, e sereis como Deus, bconhecendo o bem e o mal.

Por Honório de Medeiros

No preciso momento no qual o Homem mordeu o fruto da proibido, a semente do mal tombou na terra fértil, e começou a germinar.

A semente cresceu vertiginosamente. Hoje, é uma floresta.

Houve um momento, há muito tempo, no qual Alguém veio e alertou o Homem.

O Homem não lhe deu ouvidos, assim como, no início de Tudo, também não o fizera quando fora alertado acerca do perigo de morder o fruto proibido.

Duas vezes o Homem desprezou o que lhe disseram. Haverá uma terceira oportunidade?

As folhas, os ramos, os galhos, as árvores, ou seja, os filhos da semente do mal estão em toda parte: no coração do Homem, no seio das Famílias, entre as Nações…

Desde há muito o Homem tenta entender as razões de sua presença, mas, desde a madrugada dos tempos, por mais que estude, nada conseguiu.

Sequer arranhou a superfície do Mal, pois não percebeu e aceitou que o fundamental, o primordial, o essencial, repousa naquela semente primitiva, da qual tudo é causa e consequência.

Não percebeu o Mal, como de fato ele é, pois muitas são suas faces.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 19/06/2022 - 11:36h

Do que você deve desconfiar quanto ao Direito

Por Honório de Medeiros

1) O Direito não é uma ciência.

Somente crê que o Direito é uma ciência quem não conhece filosofia da ciência ou defende sua cientificidade com propósitos indignos.Gato preto de olhos azuis

O corolário desse postulado é que cai por terra, assim, o uso do “argumento da autoridade” na defesa de interpretações cabotinas.

2) O Direito não tem qualquer relação com o Justo.

Como não se sabe o que é o Justo, ou a Justiça, não se pode afirmar, em qualquer circunstância, que o ordenamento jurídico seja um instrumento para a obtenção da justiça.

3) O ordenamento jurídico é um instrumento do Estado, não da Sociedade.

Tanto o é que pode se voltar contra a Sociedade. Quando a Sociedade dobra o Estado, como nas revoluções, cai o ordenamento jurídico.

4) O ordenamento jurídico é um instrumento de opressão.

Em todos os tempos e lugares o ordenamento jurídico é um instrumento de opressão do Estado sobre a Sociedade, entretanto vale o dito: ruim com ele, pior sem ele, havendo democracia.

5) O ordenamento jurídico reflete a estrutura de poder das elites dominantes, a correlação de forças políticas existentes em um determinado momento histórico.

Muito embora decisões esporádicas que contrariem o sistema político dominante possam surgir, elas dizem respeito a espasmos isolados que não comprometem sua lógica interna e externa de manifestação dos interesses das elites políticas dominantes.

6) A norma jurídica constitucional, ou os princípios constitucionais, por ser abstrata e difusa, quando da sua interpretação, refletirá ainda mais claramente a correlação de forças políticas existente em sua circunstância específica.

7) Não há qualquer parâmetro científico que possa nortear uma interpretação de normas ou princípios jurídicos. Os parâmetros existentes são puramente retóricos.

8) Os juízes, promotores, advogados, policias, enfim, os serventuários da Justiça são servidores do Estado, não da Sociedade e consolidam, ao agirem, enquanto correia de transmissão, sistemicamente, a repressão estatal.

9) Muito embora o Estado emerja da Sociedade, pode se voltar contra o ambiente social – e o faz – no qual foi concebido.

10) O ensino do direito positivo, com raras e honrosas exceções, ensina o manejo da norma jurídica, sem permitir o desenvolvimento das condições críticas necessárias para domina-lo, quanto aos seus fundamentos e finalidades, assegurando assim, a manutenção e reprodução do status quo.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 22/05/2022 - 09:30h

A noite, os mosquitos e a lua

Por Honório de Medeiros

Foto de Honório de Medeiros, paisagem nordestina,Fui visitar Seu Antônio de Luzia, lá no Feijão, Sítio “Canto”, Serra da Conceição, rumo quebrado para a Serra do Camará.

João, seu filho, João de Antônio de Luzia, a quem eu encontrei, antes, na Pedra do Mercado, me preveniu: “tá falando muito pouco e escutando demais.”

“Por quê?”

“Sei não. Eu pergunto o que é e ele, sentado naquela cadeira de balanço, estira a mão para cima e sacode os dedos como se estivesse espantando mosca.”

Seu Antônio estava lá no mesmo lugarzinho de sempre, cadeira de balanço, na calçadinha de sua casa de tijolos crus, olhando o tempo, cumprimentando os passantes com um balançar de cabeça para cima e para baixo.

“Boa tarde, Seu Antônio, como vão as cousas?”.

“Boa tarde!”.

Mandou, com um gesto, que eu tomasse assento na outra cadeira de balanço.

Então eu me danei a falar e ele só olhando, escutando e calando.

Lá para as tantas, me fiz de atrevido e perguntei: “o Senhor perdeu o gosto de falar?”

Ele ficou calado um tempão, pigarreou e disse: “tem muita gente sabendo de tudo, falando muito; eu, quanto mais vivo, menos sei das coisas.”

Parou, pigarreou de novo, tomou um gole de café, cuspiu no chão de barro, e rematou: “O pouco que sei é o que eu faço com as mãos: cortar um capim, debulhar um feijão, pegar um balde d’água no poço…”.

Mais não disse. Mais não perguntei.

Ficamos os dois, cismarentos, enquanto a tarde ia e a noite chegava.

A noite e os mosquitos. A noite, os mosquitos e a lua, que já se atrevia.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 24/04/2022 - 09:38h

Seu Antônio de Luzia e os tempos de ontem e de hoje

Por Honório de Medeiros

Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.Café coado - crônica de Honório de Medeiros

Fui vê-lo, era essa a intenção, quando resolvi passar uma semana no Sertão profundo, em busca do café coado na hora, adoçado com alfenim, o cheiro do orvalho nas caminhadas pelas madrugadas afora, ouvindo o canto dos sabiás, e a conversa boa de pé de calçada nos finais da tarde, onde todos os problemas são resolvidos, muito embora não saibam disso os homens que mandam neste mundo velho de Deus, Nosso Senhor, e meu Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, primeiro e único.

Encontrei, para começo de assunto, uma cizânia danada quando tomei assento após cumprimentar o patriarca e engolir o primeiro gole de café depois de uma mordida em um pedaço de alfenim. Pediram logo minha opinião, esperando meu comprometimento com um lado ou com o outro.

Eu pulei fora quando disse que para onde seu Antônio encaminhasse a bengala, eu seguiria seus passos. O velho patriarca deu um sorriso de esguelha, mais rápido que imediatamente.

A discussão era acerca dos tempos de hoje e os de outrora. Uns diziam que antes tudo era melhor, outros negavam e defendiam a “modernidade”.

Como sempre, Seu Antônio escutava tudo calado, enquanto os contendores esbravejavam, mas eu sabia que, no final, ele daria sua opinião. Fiquei aguardando, enquanto o sol descambava lentamente no rumo da ribeira do Encanto, deixando a Lagoa dos Ingás saudosa, e na escuridão.

Lá para as tantas, quando os mosquitos começaram a aperrear, ele pigarreou e disse: “vivemos uma era em que o pouco que vale muito, vale pouco na frente do muito que não vale nada”. Depois, se levantou e tomou rumo.

O silêncio caiu na calçada tal qual jaca madura encontrando o chão. Seu Antônio foi para a cozinha, onde nos aguardava uma coalhada adoçada com raspa de rapadura, enquanto a roda de conversa de desfazia, e a cambada de conversadores caía no mundo, matutando acerca do dito.

Pelo meu lado, não tive dúvida, segui a bengala de Seu Antônio, pensando mesmo na coalhada e dizendo para João, seu filho, que resmungava ao meu lado reclamando que cada dia que passava ficava mais difícil entender o “velho”.

“Ora, ora, João, vamos à coalhada: estamos aqui para isso, para isso, estamos aqui”. Puxei o tamborete e acomodei as costelas, água na boca.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 17/04/2022 - 12:30h

Borges e Dumas, passando por Carlyle

Por Honório de Medeiros

Em Ficções, Borges pondera:carta

“Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma ideia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em “Sartor Resatus” (…) Mais razoável, inepto, ocioso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários.” 

Borges cita Carlyle, de quem, possivelmente absorveu a técnica.

Entretanto Dumas pai, que foi contemporâneo do célebre ensaísta inglês, também a utilizou.

Em Os Quarenta e Cinco, lá para as tantas, ao relatar uma correspondência imaginária enviada por Chicot a Henrique III, e comentar a excentricidade do seu estilo, convida: “Quem quiser ter conhecimento dela encontra-la-á nas Memórias de l’Étoile”.

Ou, quem sabe, terão existido mesmo essas Memórias de l’Étoile e elas ocupam algum escaninho empoeirado do “Cemitério dos Livros Esquecidos” que Carlos Ruiz Zafón localizou em Barcelona, na saborosa e definitiva  tetralogia iniciada com A Sombra do Vento?

Só o vento sabe a resposta…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN.

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domingo - 27/03/2022 - 10:22h

Essência imutável, forma evanescente

Por Honório de Medeiros

Não há nada de novo sob o sol. Seguimos aparentemente em frente para destino ignorado, permanecendo os mesmos de tanto tempo atrás, enquanto as formas, os instrumentos, e os meios que são criação nossa, mas dos quais somos reféns para lidarmos conosco, os fenômenos e as coisas, tornam-se cada vez mais complexos e fugazes, em uma espiral, um “vir-a-ser”, como diria Nietzche, de proporções incalculáveis.sol no sertão

Essência imutável, forma evanescente.

Leio em Os Crimes de Paris, de Dorothy e Thomas Hoobler, acerca de Vidocq, um personagem maior que sua vida. “Depois de cometer vários crimes na juventude, trocou de lado e se aliou à polícia. Foi o primeiro chefe da Sureté, o equivalente francês do FBI, e modelo para vários personagens da literatura”, dizem-me eles.

Fascínio antigo esse meu por Vidocq. Camaleônico, sofisticado, indecifrável, também foi o criador da primeira agência de detetives do mundo, o “Bureau de Reinseignements”, ou Agência de Inteligência. Que outro, além de um francês, criaria uma agência de detetives com esse nome?

Vidocq inspirou Maurice Leblanc na criação do célebre “Arsène Lupin, O Ladrão de Casaca”, que eu lia, fascinado, na adolescência, graças à bondade de um colega de ginásio, na Mossoró, minha Macondo particular, que não existe mais, pelo menos neste plano.

Inspirou, também, além de muitos outros, tais como Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugène Sue, o ainda mais célebre personagem de Balzac, Vautrin, presente em vários livros da Comédie Humaine.

Vautrin, o mesmo que em certo momento, lá para as tantas, explica o mundo:

“- E que lodaçal! – replicou Vautrin. – Os que se enlameiam em carruagens são honestos, os que se enlameiam a pé são gatunos. Tenha a infelicidade de surrupiar alguma coisa e você ficará exposto no Palácio da Justiça como uma curiosidade. Furte um milhão e será apontado nos salões como um modelo de virtude. Vocês pagam 30 milhões à polícia e à justiça para manter essa moral… Bonito, não é?”

Assim falava minha mãe: “vão-se os anéis, permanecem os dedos…”

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 20/03/2022 - 11:36h

Aprender a aprender

Por Honório de Medeiros

1) APRENDEMOS quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele.

Como observa Karl Raimund Popper, “cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos.”Conhecimento, saber, aprender, aprendizado

  1. a) Esse problema pode ser inesperado, e não por outra razão a sabedoria popular diz: “a necessidade é a mãe da invenção”;
  2. b) ou esse problema pode ser provocado:

b.1) quando problematizamos as coisas e/ou os fenômenos pois, tal qual nos disse Gaston Bachelard, “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”;

b.1.1) sempre por intermédio da contra-argumentação, utilizando o contraexemplo, para testar nossas teorias que tentam solucionar o problema.

2) QUALQUER problema é, antes de tudo, algo puramente racional, uma questão intelectual, mesmo quando surge no âmbito de um trabalho puramente mecânico.

  1. a) Se constatamos a existência de um problema, é porque temos um conhecimento anterior a ele, que nos permite essa constatação.

3) Para tentar uma solução que resolva o problema, elaboramos teorias que são soluções provisórias a serem testadas.

  1. a) Os testes, ou o teste, dirão se erramos ou acertamos;
  2. b) Até mesmo o erro nos ensina, posto que não precisamos mais trilhar o mesmo caminho já tentado, e aprendemos o que não é certo para a solução do problema.

4) SE o conhecimento é retificável, ou seja, pode ser modificado, é evolutivo, no sentido de que caminha sempre do mais simples para o mais complexo.

5) O conhecimento pode, então, ser compreendido como um “vir-a-ser” de complexidade cada vez maior.

6) A recusa em problematizar tudo quanto percebemos como um problema, conduz a neuroses. Aqui se compreenda essa recusa como uma fuga do problema com o qual alguém se defrontou.

7) O como dizemos algo a nós mesmos, ou aos outros, acerca do que aprendemos é papel da Retórica: podemos tentar convencer ou seduzir tanto ao outro como a nós mesmos.

8) NÃO é possível comparar INFORMAÇÃO com CONHECIMENTO: quando conheço, estou informado, mas, nem sempre, quando estou informado, conheço. Posso estar informado de algo sem compreendê-lo.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 20/02/2022 - 10:42h

A verdade cambaleia

Por Honório de Medeiros

Michiko Kakutani, prêmio Pulitzer de 1998, crítica literária do The New York Times por mais de quarenta anos, em A Morte da Verdade (Notas Sobre a Mentira na Era Trump), conta que Steve Bannon, estrategista e conselheiro do ex-Presidente, certa vez descreveu a si mesmo como um “leninista”.

O mesmo Bannon, ainda segundo Kakutani, teria dito o seguinte: “Lênin queria destruir o Estado, e esse também é o meu objetivo. Quero acabar com tudo e destruir todo o establishment de hoje em dia.”verdade-mentira-1024x373

Lênin deve estar gargalhando em alguma das grelhas do inferno, apesar das dores. Ele é o patrono dessa maré de pós-verdade que se tornou praticamente hegemônica nos dias atuais, calcada no uso da retórica violenta, incendiária, em promessas simplórias e desconstrução da verdade, tudo potencializado pela internet.

O fundador da URSS explicou, certa vez, que sua retórica era calculada para provocar o ódio, a aversão e o desprezo, não para convencer, mas para desmobilizar o adversário, não para corrigir o erro do inimigo, mas para destruí-lo.

Quem quiser ler um pouco mais, está em Report to the Fifth Congresso of the R.S.D.L.P. on the St. Petersburg Split of the Party Tribunal Ensuing Therefrom.

É bom lembrar que Pilatos inquiriu Jesus, em uma das mais célebres passagens da Bíblia: “Então, tu és rei?”, ao que Ele lhe respondeu: “Tu dizes acertadamente que sou rei. Por esta causa, Eu nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar a verdade. Todos os que pertencem à verdade ouvem a minha voz.”

Pilatos, então, questionou: Quid est veritas? (“Que é a verdade”? João 18,38). E assim que disse isso, saiu de novo para onde estavam reunidos os judeus, e lhes disse: “Não encontrei qualquer falta nesse homem”.

Pilatos lhe fizera uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente era um cético, até mesmo um niilista quanto à moral, e somente acreditava no Poder pelo Poder, e como não escutou resposta, o silêncio de Jesus perturba os filósofos através do tempo.

De qualquer forma já somos todos perdedores. Em um mundo onde o princípio basilar da razão, qual seja o da Verdade Objetiva, não a de cada um, mas aquela que existe independente da vontade de quem quer que seja, desmorona lentamente, confrontada pelo relativismo das narrativas subjetivas, somente a luta, até mesmo física, nele encontra guarida.

Esquecemo-nos que onde tudo pode ser, nada é; onde nada é, tudo pode ser.

Se fôssemos minimamente sensatos, aproveitaríamos o que nos aproxima e deixaríamos de lado o que nos afasta. Esta é o ponto-de-partida para evitar o caos, a fragmentação, a insanidade.

Assim, mesmo descrente de tudo quanto estamos construindo, ainda cabe acreditarmos que é necessário sermos muito cautelosos com o que vemos, ouvimos, lemos, até mesmo tateamos.

As armas da manipulação estão cada vez mais sofisticadas. E não pode, não deve existir dúvida: o Poder somente se toma ou se mantém à custa da sedução, manipulação ou força. Dificilmente via convencimento.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do RN

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domingo - 13/02/2022 - 10:22h

De longe chegava a voz de Altemar Dutra cantando…

Janela, olhando da janela, janela de edifício, apartamento, iluminação externa, condomínio, cerca de proteção em janelaPor Honório de Medeiros

De longe chegava a voz de Altemar Dutra cantando “Tudo de Mim”, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Quem estaria escutando essa música, no último dia do ano, quando já era noite fechada e faltava pouco para os fogos subirem aos céus?

Enquanto desfrutávamos da nossa solidão a dois, preparávamos, a quatro mãos, nossa ceia. Eu e ela. Os meninos, ainda os chamamos assim, já tinham partido, para muito longe. Ficamos nós, aqueles cujas raízes são fundas demais para serem arrancadas.

Eles se foram, são o futuro, e, nós, cada dia mais, o passado.

Ela nota minha melancolia. Disfarço. Brinco. Não resolve. Não consigo mais engana-la. São muito anos de cumplicidade. Falo-lhe de Altemar Dutra, de quando o conheci ainda praticamente adolescente, uma noite, no “Casarão”, e emendo com uma confissão, dizendo-lhe que minha tristeza não vem da batida do passado na porta do meu coração.

Não é isso, digo-lhe. É a tristeza de quem sente que algo precioso está se perdendo, e não voltará. Estou, agora, falando acerca da maravilhosa letra da música que Altemar Dutra canta e que ouvimos vinda de longe, de alguma das casas que cercam nosso prédio, elas mesmas, as casas, antigas, desaparecendo para cederem seus lugares a prédios modernos, repletos de vidros e ausentes de história.

Essas músicas sobrevivem como espasmos e me quedo surpreso quando as escuto em algum lugar, por insistirem em abrir espaço, vindas do passado, em um futuro tão diferente. Como quando escutei uma melodia de Chiquinha Gonzaga, em um celular portado por uma adolescente no shopping onde almoçávamos.

Altemar Dutra segue desaparecendo lentamente da nossa memória, e fatos como esse sempre me lembram amigos que se foram, ao longo do tempo, de nossas vidas. Amigos que se afastam, aqueles velhos amigos, com eles desaparecem “a testemunha e o comentarista de milhares de lembranças compartilhadas, fiapos de reminiscências comuns que se desvaneceriam“(*). “All those moments will be lost in time, like tears in rain“(Todos esses momentos serão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva**).

Assim, concluo, enquanto ela põe a mesa, morre aquilo que o homem constrói, apaga-se, desaparece na neblina do tempo, pois o futuro e seu filho dileto, o esquecimento, algoz de todas essas lembranças, não se compadece do quanto já foi construído em todos os lugares e tempos. É preciso que chegue o novo, que se vá o passado.

Eu me calo. Muito antes, já se calara Altemar Dutra. Decerto, quem o escutava, já se aproximando do inverno da vida, resolveu dormir. Mal sabe ele que lhe fiz um brinde, com um copo de água, quando vinha a madrugada.

Para ele, Altemar Dutra, Evaldo Gouveia e Jair Amorim.

* Hereges, Leonardo Padura.
** O replicante Roy Batty, em “Blade Runner“.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN.

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domingo - 21/11/2021 - 12:44h

O que nos reserva cada caminho que não percorremos?

caminhos, dúvidas, veredas, encruzilhada, opções, dúvidasPor Honório de Medeiros

Cada um de nós, no presente, é refém das escolhas que fez no passado.

Bifurcações, encruzilhadas, caminhos com possibilidade única de retornar ou seguir em frente, veredas, qualquer opção tomada nos encaminhou a um futuro escolhido e desfez, naquele preciso instante, para sempre, a possibilidade de vivermos o que foi abandonado.

Muito embora às vezes pudéssemos ter uma pálida ideia do que viria quando a opção foi feita, são tantos os desdobramentos seguintes que qualquer certeza logo se desfaz, tal sua evanescência.

Angustia-nos saber que a opção foi um ponto-sem-volta, que nunca saberemos, concretamente, o que aconteceria se, no passado, tivéssemos seguido de forma diferente.

Aquela rua que não foi transposta, a esquina que não foi dobrada, o adeus que foi ou não dado, o não ou o sim que dissemos, há tanto tempo, o que nos reservava cada caminho que não percorremos?

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
quinta-feira - 18/11/2021 - 05:02h
IHGRN

Mais antiga entidade cultural do RN elege sua primeira presidente

Joventina: posse em março (Foto: reprodução BCS)

Joventina: posse em março (Foto: reprodução BCS)

A comissão eleitoral do Instituto Histórico e Geográfico do RN (IHGRN), presidida por André Felipe Pignataro Furtado de Mendonça e Menezes e formada também pelos membros Carlos Roberto de Miranda Gomes e Antônio Alberto Cortez, apresentou nessa quarta-feira (17) o resultado das eleições realizadas na última sexta-feira, dia 12 de novembro. Foi eleita a nova diretoria da entidade, para o triênio 2022-2025.

A posse está prevista, como de hábito, para a data do aniversário da instituição, em 29 de março de 2022.

A chapa, intitulada “Renovação”, é encabeçada pela advogada Joventina Simões, primeira mulher eleita para presidir o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. A chapa é formada pelos seguintes integrantes:

Diretoria

Presidente: Joventina Simões Oliveira

Vice-Presidente: Ormuz Barbalho Simonetti

Secretário-Geral: Renan Segundo de Pinheiro Pereira

Secretário-Adjunto: Francisco Alves Galvão Neto

Diretora Financeiro: Maria Elza Bezerra Cirne

Diretor Financeiro-Adjunto: Augusto Coelho Leal

Orador: Francisco Honório de Medeiros Filho

Diretor da Biblioteca, Arquivo e Museu: Pedro Simões Neto Segundo

Diretor da Biblioteca, Arquivo e Museu-Adjunta: Bernadete Batista de Oliveira

Diretor de Estudos Genealógicos: Sérgio Luiz Bezerra Trindade

Conselho Fiscal

Membro Titular: Francisco José Costa dos Santos

Membro Titular: Edgard Ramalho Dantas

Membro Titular: Tomislav Rodrigues Femenick

Membro Suplente: Manoel Marques da Silva Filho

Membro Suplente: Odúlio Botelho Medeiros

Joventina Simões nasceu em Boquim, Sergipe, em 6 de abril de 1946. Graduada em Direito/Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRN e especialista em Direito Imobiliário e Habitacional, graduada em Língua e Civilização Francesa, com título concedido pela Université de Nancy I, França, Joventina sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte desde 2016 e ocupa atualmente a vice-presidência.

O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande, fundado em 1902, é a mais antiga instituição cultural do Estado. Abriga a biblioteca, o arquivo e o museu mais longevos em atividade no solo potiguar.

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Categoria(s): Cultura
terça-feira - 16/11/2021 - 12:20h
Grandes Encontros

Câmara Cascudo – o homem, o sertão, o coronelismo e o cangaço

Câmara Cascudo - Grandes Encontros Cariri Cangaço - Honório de Medeiros, Daliana Cascudo, Manoel Severo - 17 de Novembro de 2021O Cariri Cangaço, movimento de cunho turístico, cultura, histórico e científico que reúne os mais destacados historiadores e pesquisadores das temáticas cangaço, messianismo, coronelismo, misticismo e correlatos do sertão do Nordeste brasileiro, tem promovido série de debates no ambiente virtual. Um novo está agendado.

A pauta para essa quarta-feira (17), em seu endereço no Youtube (veja AQUI), é com o tema “Câmara Cascudo – o homem, o sertão, o coronelismo e o cangaço”, a partir das 19h30.

Faz parte do projeto “Grandes Encontros Cariri Cangaço” terá o professor, pesquisador e escritor Honório de Medeiros e a psicóloga e neta do escritor e folclorista Câmara Cascudo, Daliana Cascudo, discutindo sobre a temática proposta.

Idealizador e curador do Cariri Cangaço, Manoel Severo é o moderador do debate.

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Categoria(s): Cultura / Gerais
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